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2. CAPÍTULO I: ALGUMAS PERSPECTIVAS DA HISTÓRIA DO CORPO FEMININO NO OCIDENTE

2.3 Concepções de corpo no Renascimento: da medicina popular ao saber científico.

2.3.1 O corpo feminino nesse contexto: algumas incursões

A emergência moderna do corpo liga-se a novos dispositivos, tendo em vista que a explicação é dada pelas leis das causas e efeitos, já que o mundo não se organiza mais segundo a velha ordem dos planetas e das matérias etéreas. Apenas as leis da mecânica atravessam as coisas e os objetos, com o corpo libertado da ordem cósmica.

Condições econômicas, sociais e políticas ligadas na pratica às possibilidades de alimentação, através do plantio de cereais, às condições de posses e aquisições de bens, à posição social e ao reconhecimento público, tudo isso vai marcando e gerindo padrões de beleza e gosto, além de novos modelos de sensualidade.

As mulheres passam a se preocupar com as partes do corpo desnudas, à mostra, externando a beleza física e ligando-a à higiene e ao zelo pessoal. A mulher renascentista, de acordo com Eco (2010), usa os embelezamentos disponíveis da cosmética e mantém-se atenta também aos cabelos, tingindo de cores claras e avermelhadas. Pescoços recebem arte pelas mãos dos ourives e revelam o ápice da beleza através da proporção e da harmonia. Tempos depois as maquiagens se somam à engenharia estética aos óleos, pós, lenços com unguentos, pomadas e essências. Porém, quando há velhice ou viuvez, a mulher recuaria aos adereços e incrementos de cor para a face.

As partes altas do corpo feminino serviam aos olhos alheios como sede da beleza e eram estimuladas à exposição, enquanto as partes de baixo, como pernas e pés, que não estavam à mostra deveriam ser escondidas (LOPES, 2008). Se de um lado o belo está ligado aos cuidados estéticos, à boa conduta e à aparência, a feiúra era relacionada ao desleixo e deselegância, indicando inferioridade e má conduta.

Aos poucos, o corpo volta-se para apreciação pública, nos espaços de circulação e exposição onde a beleza reluz. Na verdade, já se demarcavam os limites do corpo nos espaços privados e nos públicos, pois o íntimo e o social agora são duas esferas diferentes. No caso da maquiagem, era tolerada como encenação pública, no jogo das aparências e da exibição, mas no espaço doméstico não cabia, tendo em vista que este era o lugar da revelação, da intimidade.

No encontro público, a beleza se fez cotidiana com um trabalho sobre o olhar e a curiosidade, reconstruindo o espaço urbano e, nesse sentido, a beleza corporal passa a ser levada em consideração como atributo. A beleza ideal “inatingível” delegada ao feminino, como fonte de exibição e contemplação está agora sobre influência das conquistas cientificas.

Com o afastamento do mundo cósmico e a orientação voltada para os fatos e às leis, a beleza passa a ser buscada e compreendida também na relação com a ordem física das coisas. Perde o esplendor misterioso que tinha até o século XV, XVI para, finalmente, ganhar inteligibilidade e clareza. Esse aspecto é relevante para que compreendamos um pouco a busca, extenuante nos dias de hoje, pela perfeição, pois que, como nos aponta Vigarello (2006), “essa descoberta é ainda principio de ação: não mais contemplar e sim transformar, segundo a especificidade dominante da consciência moderna” (p.58). A sedução não vem mais do plano ideal, mas da matemática, do

cálculo exato com simetrias e geometrias precisas. A perfeição não esta situada no sonho, no mundo das ideias, mas na lapidação do modelo a ser trabalhado e corrigido.

O modelo mecanicista aplicado ao corpo transforma-o em maquina e nessa lógica expandem-se os aparelhos e as ferramentas que corrigem o corpo. Reduzidas aos princípios da Física, as anatomias absorvem as montagens corretivas, sejam os aparelhos, espartilhos de ferro, corpetes, as cruzes que imobilizam ombros e pescoços, engenhos muitas vezes brutais e dolorosos que tinham a função inicial de retificar a ortopedia, mas que não tardaram em servir de instrumento pedagógico de imposição de norma e profilaxia. Eis o campo da mecânica se aliando ao da saúde e invadindo com seus tentáculos os diversos espaços de forma transversal.

Aparece uma nova cultura do corpo, que não deve ser mais buscada nos livros de civilidade, na expressão atenta das “belas maneiras” da qual o espartilho é ao mesmo tempo a garantia e a testemunha, e sim nos livros de higiene, no recenseamento e na declinação de forças que apenas o exercício pode aumentar e convocar. (VIGARELLO, 2005, p.32).

A construção da diferença não fica livre da hierarquia, emoldurada por metáforas patológicas e carregadas de negatividade. Assim, o corpo da mulher torna-se o campo de batalha com distintivos morais, com tecnologias de poder.

Nesse sentido, a Medicina e seus saberes associados – dentre eles anatomia, fisiologia e mais posteriormente a psiquiatria – produzem argumento que salientam a hierarquia de gênero. Seja pela pelve aumentada, determinando o destino à maternidade, ou pelo crânio diminuído, sugerindo menor capacidade intelectual, a mulher e seu corpo são investidos de uma anatomia política.

A diferença de natureza entre os corpos, tendo sempre como parâmetro o corpo do homem, deu particularidade à mulher, conferindo-lhe uma beleza vinculada à capacidade de gerar filhos. As marcas endócrina, biológica e fisiológica aproximam a mulher de uma natureza. Nesse cenário, o aparelho de reprodução feminino será base de sua função social, de suas características, mantendo-a frágil no ponto de vista físico, intelectual e emocional. A mulher então, passiva e fecunda, deve perpetuar a civilização por meio da maternidade.

Estamos aqui nós, trabalhando em uma tese, ao pé da letra uma posição, e os textos acabam por se tornarem nossos interlocutores. Assim, pensando no ranço de tais concepções sobre o corpo e o feminino que agora vimos, podemos nos perguntar sobre o quanto ainda persiste esse referencial de gênero que toma a mulher como contraponto

ao homem, que toma seu corpo na tensão que opõe masculino e feminino, em referência predominantemente biológica, organicista. Um corpo que é de madre, de maternidade, de procriação, portanto. Claro que diversos referentes corporais, dependendo de cada recorte social, político, ético, estético, se nos apresentam, mas ainda permanece no imaginário a visão do corpo arredondado, volumoso como associado à maternidade. Tomemos como exemplo que o próprio referencial do núcleo de assistência à saúde toma o eixo familiar e especialmente a mãe como representante feminino de cuidado com a prole.

Tentando problematizar um pouco essa questão, trazemos aqui a relação ambivalente da mulher com sua dupla condição de mãe/mulher. Em especial, as celebridades, pois são obrigadas a retornar às câmeras com seus corpos esbeltos, “em forma”, já nos primeiros dias após o parto e mesmo durante a gravidez é uma cobrança muito forte3 da mídia. O corpo, então, explica, justifica e solidifica as posições sociais pela fragilidade, irregularidades, imprevistos e intrusões.

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