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Discurso indireto livre ou semi-indireto

D ISCURSO I NDIRETO

4.0 Discurso indireto livre ou semi-indireto

Se os discursos direto e indireto, como formas de expressão peculiares ao gênero narrativo, são tão antigos quanto a própria linguagem, o chamado discurso ou estilo indireto livre é relativamente recente. O latim e o grego desconheciam-no. Charles Bally70 encontrou traços

dele no francês antigo, mas não no período do Renascimento. Rabelais dele se serviu ocasionalmente. Era, segundo ainda Bally, o processo favorito de La Fontaine. Mas os clássicos, dada a influência da sintaxe latina, não o empregaram. Na literatura luso-brasileira da era clássica, não há dele senão esporádicos exemplos, como, segundo nos lembra o Prof. Rocha Lima, o de Camões (Lus. VIU, 1):

Na primeira figura se detinha O Catual, que vira estar pintada, Que por divisa um ramo na mão tinha, A barba branca, longa e penteada: "Quem era e por que causa lhe convinha A divisa, que tem na mão tomada?"

Trata-se (versos quinto e sexto) de pergunta que faz o Catual a Paulo da Gama; portanto, discurso direto. No entanto, os verbos "era" e "convinha" (quinto verso), dada a situação, surgerem discurso indireto. O total da fala é, assim, um vestígio de discurso misto ou, pelo menos, de discurso direto livre.

O que é certo, porém, é que, a partir dos meados do século XIX, o estilo indireto livre começou a generalizar-se, por influência de Flaubert e Zola. No entanto, somente em 1912 foi que Charles Bally chamou a atenção para a nova técnica, até então ignorada pelas gramáticas,71 à qual deu

"Le style indirect libre en français moderne", artigo publicado na revista Germanisch-

Romanisch Monatschrift: em 1912.

71 Porque, diz Bally, "o estilo indireto livre é uma forma de pensamento, e os gramáticos

partem das formas gramaticais" (op. cit., p. 605). OT H O N M .

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o nome por que é mais conhecida: estilo indireto livre. Dez anos mais tarde, Albert Thibaudet faria um estudo sistemático desse processo na obra de Flaubert. Em 1926, Marguerite Lips escreveu sobre o assunto um ensaio que se tornou clássico: Le style

indirect libre (Paris, ed. Payot).

Como o nome sugere, o estilo ou discurso indireto livre ou semi-in-direto apresenta características híbridas: a fala de determinada personagem ou fragmentos dela inserem-se discretamente no discurso indireto através do qual o autor relata os fatos.

No indireto puro, o processo sintático é o da dependência por conectivo integrante; no direto, é o da justaposição, como verbo dicendi claro ou oculto; no indireto livre, as orações da fala são, de regra, independentes, sem verbos dicendi, mas com transposições do tempo do verbo (pretérito imperfeito) e dos pronomes (3â pessoa). Como não inclui nem admite

dicendi, não é cabível sua transformação em objeto direto do verbo transitivo — e é isto que

o distingue do direto e do indireto puro. Vejamos um exemplo de José Lins do Rego:

Os trabalhadores passavam para os partidos, conversando alto. Quando me viram sem chapéu, de pijama, por aqueles lugares, deram-me bons-dias desconfiados. Talvez pensassem que estivesse doido. Como poderia andar um homem àquela hora, sem fazer nada, de cabeça no tempo, um branco de pés no chão como eles? Só sendo doido mesmo.

(.Bangüê, p. 62)

Aparentemente, todo o trecho está em discurso indireto puro: no entanto, há expressões que não poderiam ser atribuídas ao Autor, senão a uma das personagens: a interrogação, por exemplo, não poderia ser feita por ele se se tratasse de estilo indireto.

O último período também: será do narrador, que fala na primeira pessoa, ou de um dos trabalhadores? A frase é ambígua, quanto a esse aspecto, e essa ambigüidade do indireto livre é mais freqüente quando a narração se faz na primeira pessoa, como é o caso de

Bangüê.

No seguinte trecho de Graciliano Ramos, os limites entre o indireto puro e o indireto livre estão nitidamente marcados pelas interrogações, exclamações e as reticências:

Se não fosse isso... An! em que estava pensando? Meteu os olhos pela grade da rua. Chi! que pretume? O lampião da esquina se apagara, provavelmente o homem da escada só botara nele meio quarteirão de querosene.

(Vidas secas, p. 39)

A oração condicional reticenciosa não pode ser atribuída ao narrador, pois denuncia o estado de espírito da personagem Fabiano, impotente na sua indignação, incapaz de reagir, porque, apesar de tudo, se sentia

preso à Sinhá Vitória, aos filhos, à própria Baleia, que o impediam de praticar desatino como reação natural contra a injustiça de que era vítima. O mesmo se pode dizer quanto aos demais trechos em itálico. Em todo o parágrafo, enfim, só há duas orações em discurso indireto puro: "Meteu os olhos pela grade" e "O lampião da esquina se apagara". Até mesmo a oração final, a partir de "provavelmente", está em discurso indireto livre, pois, como, no

caso, o narrador é onisciente, não seria admissível sua incerteza quanto à quantidade de querosene posta no lampião: a dúvida é da personagem Fabiano.72

Não cremos que haja outro romance brasileiro em que o discurso indireto livre seja tão freqüente e tão habilmente empregado como em Vidas secas. Essa técnica, o Autor já havia ensaiado timidamente em S. Bernardo (1934), desenvolvendo-a em Angústia (1936), até alcançar a sua plenitude na história dramática de Fabiano e Sinhá Vitória.

As vezes, os três processos se mesclam no mesmo parágrafo. E o que faz, por exemplo, Fernando Sabino:

Mafra o consolou, batendo-lhe nas costas: tirara o terceiro lugar [numa prova de natação]. Foi para casa sozinho, a cabeça num tumulto. Por que afinal tudo aquilo, Santo Deus? Que idéia descabida, que estranha teimosia aquela, esquecer tudo durante um mês, para dedicar-se como um louco a uma experiência tão dura que não lhe traria proveito algum! Vaidade, apenas? Solidariedade para com seu clube? Ora, sabia muito bem que essas coisas não existiam mais para ele. Por quê, então? O pai lhe dissera apreensivo: "Você está exagerando, meu filho. Isso não pode fazer bem".

(Encontro marcado, p. 127)

Os dois primeiros períodos estão em discurso indireto puro. A partir de "Por que afinal?" até "Por quê, então?" é discurso indireto livre, pois as interrogações e exclamações não denotam perplexidade do narrador, mas da personagem Eduardo, numa espécie de monólogo. A parte final encerra discurso direto claramente expresso, com verbo dicendi anteposto. Examinemos, porém, mais de perto, o período iniciado por "ora". Esta partícula, na acepção em que está empregada, é exclusiva do discurso direto, mas o pronome "ele" no fim do período indica que se trata de discurso indireto. A frase é assim híbrida. Ora, esse hibridismo é uma das características do indireto livre.

Na literatura brasileira contemporânea, a técnica do discurso indireto livre apresenta matizes estilísticos muito variáveis, como, aliás, também no francês e no inglês, para só citarmos as línguas que nos são mais

7 Mudando o tempo do verbo discurso direto.

— botara para botou

—, a estrutura passa a ser até mesmo de OT H O N M .

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familiares. Em alguns autores, ocorre apenas intercalação de discurso direto (às vezes, até mesmo entre aspas, acompanhado de dicendi ou de vicário seu) dentro de um parágrafo de narração feita em discurso indireto puro. Em outros, um parágrafo inteiro assume a feição do

monólogo, em geral, introduzido ou seguido por um verbo de elocução ("disse comigo", "disse consigo") ou um vicário ("pensou", "pensei"). Mas, nesses casos, não se pode falar de indireto livre, recurso de que o narrador se serve não só para minimizar a monotonia dos diálogos intermináveis mas também — e aqui está a sua mais relevante função — para exteriorizar fragmentos do fluxo de consciência de determinada personagem. Então, no relato dos fatos e na análise das reações psicológicas da personagem, traduzidos em palavras do Autor, inserem-se frases ou expressões transpostas do discurso direto mas sem o auxílio dos conectivos integrantes. Só quando "as reflexões expostas são tão intensas que justifiquem uma formulação verbal nítida"73 é que o Autor se serve do discurso direto. Assim

faz Rachel de Queiroz:

E aquele caso da cabra em que — Deus me perdoe! — pela primeira vez tinha botado a mão em cima do alheio... E se saíra tão mal, e o homem o tinha posto até de sem-vergonha (...)

( O quinze, p. 79)

A intercalada "Deus me perdoe" não pode ser atribuída ao narrador; .mas seria descabido, dada a sua escassa relevância, abrir com ela um parágrafo em discurso direto, a que Rachel de Queiroz só recorre mais adiante, quando as reflexões das personagens são mais intensas, porque mais dramáticas as peripécias do relato feito pelo vaqueiro Chico Bento com palavras da Autora. O parágrafo que precede imediatamente o diálogo entre Conceição e Chico Bento inclui um fragmento de discurso indireto livre:

Agora felizmente estavam menos mal. O de que carecia era arranjar trabalho; porque a comadre Conceição bem via que o que davam no Campo mal chegava para os meninos. Conceição concordou:

— Eu sei, eu sei, é uma miséria! Mas você assim, compadre, lá agüenta um serviço bruto, pesado, que é só o que há para retirante?!

(p. 80)

O primeiro parágrafo está, todo ele, em discurso indireto puro, como o denunciam os pronomes da terceira pessoa e os verbos no pretérito im-

73 CÂMARA JR, J. Matoso. "O estilo indireto livre em Machado de Assis", in: MISCELÂNEA

de escudos, em honra de Antenor Nascentes, Rio, 1941.

perfeito; mas nele se insinua sutilmente um vestígio do indireto livre naquele "comadre", que a Autora, se falasse por si mesma, não poderia de forma alguma empregar: a comadre é de Chico Bento, e não de Rachel de Queiroz. Esse exemplo, aliás, é semelhante ao que

assinala Matoso Câmara (Zoe. cit., p. 21) em Quincas Borba, a propósito de "comadre Angélica".

Em Josué Monteio (A décima noite), o monólogo dramático de feitio tradicional e o discurso indireto livre freqüentemente se mesclam em longos parágrafos de discurso indireto; mas o Autor distingue sistematicamente o primeiro do segundo, pondo-o entre aspas, precedidas às vezes por travessão. No primeiro dos dois trechos dados abaixo, há intercalação de indireto livre (em itálico); no segundo, o que aparece é mesmo discurso direto sob a forma de monólogo indicado por travessão e aspas:

Voltou-se então para o fundo da casa, atravessou a varandinha que acompanha o correr dos quartos e saiu à copa. Alaíde estaria ainda no jardim? Saltou ao quintal e veio contornando a casa (...)

(p. 193)

Na iminência da crise, Abelardo não perdia o domínio de si mesmo. E dizia consigo, sereno, confiante, cigarro esquecido na ponta dos dedos: — "Daqui a pouco terás de deitar-te, Alaíde. E eu também. Crês que poderás fugir de mim, como se eu fosse um estranho? (...)" (p. 205)

A interrogação, no primeiro trecho, não expressa dúvida do Autor, mas da personagem: trata-se de discurso indireto livre. Os períodos entre aspas, precedidos por um travessão, no segundo, denotam monólogo dramático, em discurso direto puro, com um verbo dicendi claro ("dizia consigo"). Mas, quando o Autor quer impregnar suas palavras de certa tonalidade afetiva própria do discurso direto, quando, enfim, Autor e personagem como que se fundem numa espécie de interlocutor híbrido, então aparece o legítimo indireto livre, sem aspas nem travessões:

Por vezes, adiantava o braço, para ajudá-la a descer. E ela baixava sozinha, não raro saltando o último degrau com os pés unidos, como a dizer-lhe que só mais tarde, quando fossem marido e mulher, aceitaria o amparo que ele lhe oferecia. E por que melindrar-se

com os longos silêncios dela? Por acaso, ali junto ao relógio, com o seu livro e a sua caixa de costura, Sinharinha não fora também assim, esquiva e cismarenta?

(p. 158)

Quanto à sua natureza e sentido, os trechos em itálico seriam verdadeiros monólogos, não fosse a presença daquele pronome de terceira pessoa, "se", em vez de "me". Por isso, não aparecem as aspas: o fluxo do pensamento da personagem Abelardo, o Autor como que o surpreendeu in

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natura, exteriorizando-o como se o tivesse apenas gravado sem interferir na sua formulação

verbal.

Em suma, o discurso indireto livre é uma técnica de narrativa muito fértil em recursos estilísticos. Os estudiosos encontrariam aí um veio rico para pesquisas capazes de revelar novas dimensões no romance brasileiro dos nossos dias. Os principiantes poderiam abrir caminho com a obra de Marguerite Lips, o artigo de Charles Bally e o artigo de Matoso Câmara atrás citados.

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