• Nenhum resultado encontrado

N EGAÇÃO NA SUBORDINADA

2.3 Frase entrecortada

Confrontando-se página de novelista ou cronista contemporâneo com a de qualquer de seus "colegas" do passado — de Castilho e Herculano para trás — nota-se diferença tão grande quanto à organização do período, que quase se pode dizer que a língua é outra. Em vez de períodos longos, caudalosos, enleados nas múltiplas incidências da subordinação, característicos do classicismo e de certa fase do romantismo, o que distingue o estilo moderno é a brevidade da frase, predominantemente coordenada.

Essa preferência pela coordenação, pelos períodos curtos, pela frase esportiva, desenleada, desenvolta, vem-se acentuando a partir da última fase do romantismo e dos primórdios do realismo, em toda a literatura ocidental, e não apenas na brasileira.

No que nos diz respeito, os primeiros sinais de reação contra a frase centopeica do classicismo já se encontram na obra de José de Alencar. No pós-escrito à 2- edição de

Iracema, em 1870, o Autor de O guarani assim se manifestava, por instinto ou por influência

de leituras, a respeito do período clássico:

No conceito do distinto literato [Henriques Leal, escritor maranhense que, em artigo, censurara o "estilo frouxo e desleixado" do autor de O guarani], os nervos do estilo são as partículas, especialmente as conjunções, que teciam a frase dos autores clássicos, e serviam de elos à longa série de orações amontoadas em um só período.

Para meu gosto, porém, em vez de robustecer o estilo e dar-lhe vigor, essa acumulação de orações ligadas entre si por conjunções relaxa a frase, tornando o pensamento difuso e lânguido.

As transições constantes, a repetição próxima das partículas que servem de atilhos, o torneio regular das orações a sucederem-se umas às outras pela mesma forma, imprimem em geral ao chamado estilo clássico certo caráter pesado, monótono e prolixo, que tem sua beleza histórica, sem dúvida, mas está bem longe de prestar-se ao perfeito colorido da idéia. Há energias do pensamento e cintilações do espírito, que é impossível exprimir com semelhante estilo.

Para documentar a sua tese, o Autor escolhe um trecho de O guarani ("A tarde ia morrendo. O sol declinava no horizonte...") caracterizado pelos períodos curtos, com parcimônia de subordinação, citando a seguir exemplos de alguns autores clássicos, que, "em certos casos, sentiram a necessidade de abandonar esse estilo tão alinhavado de conjunções por uma frase mais simples e concisa" (o Autor transcreve a seguir um trecho de Lucena). Essa reação, de que José de Alencar se faz porta-voz declarado, viria a acentuar-se, de modo geral, no realismo, sensivelmente em Machado de Assis, comedidamente em Aluísio de Azevedo, ocasionalmente em Raul Pompeia, que, aliás, é, antes, impressionista.

Todavia, foi depois do nosso movimento modernista que essa preferência pela frase curta, incisiva, desenleada, se tornou — digamos assim — avassaladora, passando a constituir mesmo padrão de excelência estilística. Nos áureos tempos da primeira fase desse

movimento, período longo subordinado era uma espécie de tabu estilístico, era coisa velha que lembrava o parnasianismo, que lembrava Rui Barbosa, que lembrava Coelho Neto (que, diga-se de passagem, também se servia com freqüência dos períodos curtos coordenados). Basta passar os olhos pelas obras — não apenas do gênero de ficção — das décadas de 1920 e 1930 para se ter uma idéia dessa ojeriza à frase acumulada de subordinações. Tomemos como exemplo Os condenados (1922), de Oswald de Andrade, um dos porta- estandartes do modernismo. Nas 266 páginas da primeira edição, raros, raríssimos são os períodos compostos por subordinação; o que lá se encontra, em absoluta maioria, são períodos curtos coordenados, que se adicionam uns aos outros em unidades muito breves:

Passou [o escultor] o dia estirado em um quarto de hotel. E a noite veio e foi... Ficou até meio-dia na cama alva e desconhecida. Fazia um calor de porto sul-americano. Levantou- se,' vestiu-se com dificuldade, tomou o trem das duas horas, de regresso.

No começo da serra chovia. Uma retardada fadiga caiu sobre ele. Olhou pela janela do "wagon"; embaixo, entre águas, viu uma casa de tijolos com chaminé e leu um letreiro longo até o fim.

Um mosquito trouxe-lhe uma ferroada ardida à mão. (Os condenados, p: 201)

Amostras ainda mais expressivas desse feitio de frase asmática, pontilhada e telegráfica, despojada daquelas sinuosidades do período clássico, torneado e envolvente, austero e cerimonioso, apresenta-nos, a cada passo, a obra de Antônio de Alcântara Machado. No trecho a seguir, depois de admitir que o movimento modernista não teria provocado a reação indignada dos seus opositores, se tivesse despontado no Brasil "muito mais tarde como eco remoto do europeu", escreve o autor de Brás, Bexiga e Barra Funda:

OT H O N M , 127

Mas tal como rebentou não. Os bocós estranharam. Sentiram-se mal. Davam-se tão bem com as velharias. Era tudo tão cômodo e tão fácil. Nem precisava pensar mais. A coisa já saía sem esforço. O realejo era herança de família e estava à disposição de qualquer um. Bastava estender a mão e virar a manivela. Pronto. A ária mil vezes ouvida contentava todos os ouvidos. Sem cansá-los nunca. Uma beleza.

(Cavaquinho e saxofone, p. 306)

Mesmo quando a estrutura do período é de legítima subordinação, o Autor procura disfarçar- lhe os enlaces sintáticos, isolando, entre pontos, termos e orações dependentes:

A relação se fez de chofre. Sem ser esperada. De um momento para outro. Foi uma surpresa. Pregou um susto tremendo. O pessoal ficou espantado. Nunca havia visto coisa igual na vida. Nem sabido ou sonhado que pudesse existir.

(Idem, p. 305)

Desprezadas as redundâncias, que a estrutura fragmentária da frase parece disfarçar ou atenuar, o trecho assumiria a seguinte feição, se reduzido a um só período de molde clássico:

A reação, que foi uma surpresa, se fez de chofre, sem ser esperada, de um momento para outro, de modo que pregou um tremendo susto, e o pessoal ficou espantado, pois nunca havia visto coisa igual na vida nem sabido ou sonhado que pudesse existir.

É evidente que nessa versão quase nada subsiste da leveza bem-humorada que se insinua na frase de Alcântara Machado. É que a austeridade engravatada do período de feitio tradicional talvez não se ajuste bem ao tom irônico e esportivo com que o assunto é tratado pelo Autor, para quem "até então no Brasil a preocupação de todo escritor era parecer grave e severo. O riso era proibido". (Op. cit., p. 309.)

Os trechos transcritos dão uma idéia satisfatória do que era a frase entrecortada e soluçante tão ao gosto da primeira fase do nosso movimento modernista. Moldada à imagem da

phrase coupée dos franceses, ela foi alvo de chacotas e acerbos ataques dos críticos e

representantes da literatura anterior ao modernismo, como José Oiticica, que a chamava, com incontida indignação, de "estilo picadinho" ou "frase picadinha".

Essa atomização do pensamento apresenta, é certo, a vantagem de lhe tornar mais fácil a compreensão. O leitor apreende prontamente o enunciado de cada unidade nas pausas que se intercalam. Se não há necessidade de mostrar a coesão íntima entre as idéias, suas relações de mútua dependência, esse tipo de construção se torna bastante expressivo. Por isso é que se ajusta satisfatoriamente às narrações e descrições, em que o autor focaliza de maneira sumária as fases de uma cena ou incidente ou os elementos de um quadro. Daí decorre, por certo, a sua predominância no romance e no conto

modernos assim como na crônica. Mas será difícil encontrar exemplos de frase soluçante no ensaio crítico ou filosófico, na argumentação, nas dissertações doutrinárias, a não ser ocasionalmente.

No seguinte exemplo, de Érico Veríssimo, a frase entrecortada de pontos é forma adequada à descrição da cena e aos propósitos do Autor:

Cheguei em casa e perdi o sono. Li um pouco e depois fui deitar. Era mais de meia-noite e eu ainda não havia dormido. Ouvi um barulho na rua. Uma pessoa vinha meio cantando meio chorando. Parecia uma voz conhecida.

(Op. cit., p. 161)

É claro que não se trata de nenhuma obra-prima digna de ser imitada. Mas a situação é por si mesma muito simples para a adoção de frase mais complexa. Seria forma inadequada transmitir as mesmas idéias num período subordinado pomposo, cheio de enleios, como na seguinte versão parafrástica:

Cheguei em casa, mas, como perdera o sono, li um pouco, indo depois deitar e, embora já passasse da meia-noite, ainda não havia dormido, de forma que ouvi um barulho na rua, onde uma pessoa, cuja voz me parecia conhecida, vinha meio cantando meio chorando.

Entre um extremo e outro, i.e., entre a frase chã e o período pomposo e petulante, a virtude deve estar no meio.

Quando fragmentos de frase, frases nominais e frases soluçantes se misturam, o resultado é um estilo como que estertorante ou convulsivo:

Sou um homem, pensou. Riu satisfeito. O silvo. A mata escura que de repente se fechou sobre ele. Um homem. Maura deitada a seu lado, o corpo nu. As veiazinhas azuis nas virilhas. O ventre arredondado. Como é estranho e fechado um ventre que a gente alisa de mansinho. Pela primeira vez. Brilhante, os pelinhos eram como pele de pêssego. Precisava voltar lá. E se começasse a gostar dela? Parecia diferente das outras. Amanhã mesmo vou levar para ela um vidro de cheiro. Gostam dessas coisas.

(Autran Dourado, A barca dos homens, p. 225)

A frase entrecortada ou soluçante é muito comum no discurso semi-indireto livre, uma forma híbrida dos discursos direto e indireto (ver 4.0):

Irritou-se. Porque seria que aquele safado batia os dentes como um caititu? Não via que ele era incapaz de vingar-se? Não via? Fechou a cara. A idéia do perigo ia-se sumindo. Que perigo? Contra aquilo nem precisava facão, bastavam as unhas. (...) Fabiano pregou nele os olhos ensangüentados, meteu o facão na bainha. Podia matá-lo com as unhas. Lembrou-se da surra que levara e da noite passada na cadeia. Sim senhor. Aquilo ganhava dinheiro para maltratar as criaturas inofensivas. Estava certo?

(Graciliano Ramos, Vidas secas, p. 129) OT H O N M .

Em maior ou menor dose, quase todos os escritores — sobretudo romancistas e cronistas — que surgiram entre a eclosão da Semana de Arte Moderna (São Paulo, fevereiro de 1922) e, praticamente, o advento da geração dita "de 45", revelaram acentuada preferência por essa estrutura de frase, que ainda hoje perdura — mas desbastada dos seus excessos — como um dos grandes legados do nosso modernismo.