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Frase caótica e fluxo de consciência: monólogo e solilóquio

N EGAÇÃO NA SUBORDINADA

2.7 Frase caótica e fluxo de consciência: monólogo e solilóquio

Como se sabe, o século XX se tem caracterizado por acontecimentos que lhe vêm alterando radicalmente as estruturas políticas, econômicas, sociais e culturais herdadas do passado. A literatura não poderia ficar à margem dessas transformações; antes, pelo contrário, teria de refleti-las em grau acentuado, como espelho que é da própria sociedade.

Dos movimentos ou correntes literárias que proliferaram na primeira metade da presente centúria, alguns deixaram sinal mais duradouro do que outros, como a renovação estilística que se seguiu à Primeira Grande Guerra e repercutiu no Brasil por volta de 1920, eclodindo dois anos mais tarde na celebérrima Semana de Arte Moderna (São Paulo, 1922).

Com o advento do Modernismo, a língua literária sofreu tremendos abalos, que, para muita gente, se configuraram como verdadeiros "cataclismos" lingüísticos. Embora esse movimento "sísmico" no território das letras não tenha tido seu "epicentro" nestas Terras de Santa Cruz, sua repercussão aqui — e José Oiticica, entre outros, o assinalou alarmado — foi a de legítimo "terremoto", que surpreendeu, chocou, irritou, desesperou uma legião de críticos desarmados, e, sobretudo, de gramáticos muito afeitos ainda à disciplina rígida do purismo em moldes parnasianos.

Mas depois a atmosfera se desanuviou um pouco, e os "tremores" deixaram de assustar a maior parte; demais, já não era novidade, e os excessos dos primeiros "abalos" já havia perdido bastante a sua intensidade inicial.

Uma das heranças deixadas pelo Modernismo foi a renovação da própria língua literária — da literária, porque a popular, essa está se renovando todos os dias. O resultado disso é que a frase pós-modernista, como ninguém ignora, já era "outra coisa", muito diversa da que vigorava até a segunda década do século: diferente na estrutura, no vocabulário, nos padrões rítmicos. Alguns espécimes dessa frase rebelde aos moldes tradicionais (casti- lhianos, digamos assim) seriam inconcebíveis na literatura brasileira anterior a 1920. Hoje, passam como coisa corriqueira, sem alarma nem protesto, a não ser daqueles críticos desarmados ou de alguns ferrenhos tradicionalistas, que acham que a língua portuguesa da segunda metade deste século devia trazer ainda o signo camoniano para ser tida como padrão de excelência.

Em tópicos anteriores já comentamos alguns desses espécimes. Resta-nos agora dizer alguma coisa sobre a frase caótica, denominação que não tem nenhum sentido depreciativo. Trata-se de uma frase que muito nos lembra "depoimento" feito em divã de psicanalista, como expressão livre, desinibida, desenfreada, de pensamentos e emoções.

Sua feição mais comum é a do monólogo interior, em que o narrador (ela só aparece no gênero de ficção ou de literatura intimista) apresenta as reações íntimas de determinada personagem como se as surpreendesse in natura, como se elas brotassem diretamente da consciência, livres e esponta-

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neas. O autor "larga" a personagem, deixa-a entregue a si mesma, às suas divagações, em monólogo com seus botões, esquecida da presença de leitor ou ouvinte. Daí, o seu feitio incoerente, incoerência que pode refletir-se tanto numa ruptura dos enlaces sintáticos tradicionais quanto numa associação livre de idéias aparentemente desconexas. O autor tenta assim traduzir o "fluxo de consciência", que Robert Humphrey estuda em Stream of

consciousness in the modem novel (University of Califórnia Press, 1959).

Apesar do seu freqüente e intencional primarismo sintático, sua ascendência é das mais ilustres (Ulysses e Finnegans' Wake, de James Joyce, Mrs. Dalloway, de Virgínia Woolf, The

sound and the fury e As I lay dying, de William Faulkner), constituindo mesmo, em certos

círculos, padrão de excelência estilística no gênero de ficção.

Esse aspecto alógico, incoerente ou difuso é o que distingue, segundo Robert Humphrey, o

monólogo interior do solilóquio dramático do tipo hamle-tiano, que é coerente e lógico por

presumir a presença de leitor ou ouvinte, a quem. indiretamente se dirige. Mas tanto um quanto outro se servem de preferência do discurso direto ou do indireto livre (ver adiante 3.0).

Ainda que o solilóquio seja freqüente no romance brasileiro contemporâneo, o seu revestimento lingüístico nem sempre é caótico ou incoerente. Em geral, o fluxo do pensamento da personagem se exterioriza numa forma verbal mais ou menos policiada pelo

autor, sendo os vestígios de alogismo sintático decorrentes, na maioria dos casos, de um critério de pontuação não ortodoxo.

Não seria cabível num capítulo como este rastrear a incidência do monólogo interior e do solilóquio dramático em toda a literatura brasileira contemporânea; por isso, temos de limitar-nos a algumas referências e a uma ou duas amostras comentadas com propósito didático.

Uma das obras de maior densidade introspectiva, de que se tem notícia na literatura brasileira dos últimos cinqüenta anos, é sem dúvida Fronteira (1933), de Cornélio Pena. Nesse romance, realmente magistral sob vários aspectos, há muitos trechos de solilóquio inseridos nas falas dos diálogos. Sua estrutura, entretanto, nada tem de caótica no que respeita à sintaxe, apesar do seu molde de introspecção em profundidade raramente alcançada na literatura brasileira dos nossos dias. Por isso é solilóquio dramático, e não propriamente monólogo interior, distinção que desenvolveremos mais adiante.

Outro romancista igualmente introspectivo, em quem, aliás, se podem assinalar algumas semelhanças com o Autor de Fronteira, é Clarice Lispector. Sua novela — Perto do coração

selvagem — oferece-nos vários exemplos de monólogo em frases permeadas de relativo

alogismo, mas não caóticas do ponto de vista sintático, se bem que, às vezes, fragmentárias (cf., p. ex., páginas 19, 23, 31, 44, 102, 134, da edição da Livraria Francisco Alves, Rio, 1963). Em obra mais recente —A legião estrangeira, 1964 — a Autora depura e requinta essa técnica do monólogo interior, marcado de alogismo sintático e com interpolação freqüente de frase fragmentária, como se pode ver, por exemplo, no conto que dá título ao volume.

Também Antônio Callado, em Assunção de Salviano, recorre ao monólogo interior como expressão do fluxo do pensamento, em frases até certo ponto caóticas. Para traduzir melhor a torrente de idéias que se vão avolumando na mente de Salviano (principalmente a partir da sua prisão, acusado de haver assassinado um americano), o Autor põe seu herói a monologar, mas policiando-lhe sempre a linguagem, para evitar, pelo menos, os excessos que redundariam numa frase totalmente caótica. No caso de Callado, os exemplos de monólogo como expressão do fluxo do pensamento ou torrente da consciência revelam acentuada interferência do Autor, que peneira o que deveria ser o legítimo solilóquio de um nordestino agitador e meio místico, com vocação para o auto-sacrifício. O máximo que faz o romancista é expor o pensamento de Salviano numa frase simples, solta, assim como que de embolada ou de ladainha, despovoada de vírgulas:

Mas danação era outra coisa muito diferente danação era raiva de cão danado na alma da gente danação era ódio de Deus vontade de morder e de estraçalhar Deus como se fosse possível era enterrar as unhas e rasgar de ponta a ponta o céu de modo que à noite se pudesse ver o listrão de sangue latejando entre as estrelas e de dia a ferida se abrisse ao

sol para que o danado tentasse entrar para estraçalhar Deus um verdadeiro horror. Não danação era o pecado que não aparecia em estampas porque morre em si mesmo e não agüentaria seu reflexo em espelho ou santinho não agüentaria cópia de si mesmo porque mesmo sua sombra arde escarlate onde pousa.

(Assunção de Salviano, p. 108)

Como se vê, a frase é sobriamente caótica: basta colocar nos devidos lugares algumas vírgulas e alguns pontos para que resulte sintaticamente bem ordenada. É monólogo de fluxo de consciência, mas fiscalizado muito de perto pelo Autor, depurado, enfim, numa linguagem culta. O pensamento é de Salviano; as palavras, nem todas.

Também Josué Monteio (A décima noite, 1960) recorre com freqüência ao solilóquio, servindo-se, entretanto, de uma estrutura de frase que nada tem de caótica, dado o tipo mental da personagem, que fala mais pelo Autor do que por si mesma. Ao contrário do que fazem Callado e muitos outros, Monteio põe sempre entre aspas os trechos monologados, principalmente quando se serve de verbos dicendi (disse, dizia consigo, pensava):

Na iminência da crise, Abelardo não perdia o domínio de si mesmo. E dizia consigo, sereno, confiante, cigarro esquecido na ponta dos dedos: — "Daqui a pouco terás de deitar-te, Alaíde. E eu também. Crês que poderás fugir de mim, como se eu fosse um estranho? De modo algum. Teremos de partilhar a mesma cama, ali na alcova. Só nós dois ficaremos aqui. E então? Não usarei de violência contigo. Por esse lado, fica tranqüila. Sei o que devo fazer. Se me quisesses ouvir com serenidade, eu te diria que esse receio de te entregares não é caso único no mundo. (...)"

(A décima noite, p. 205)

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Vê-se que, mesmo sendo homem de certa cultura, Abelardo fala pela boca do Autor, numa frase coerente, lógica, escorreita. Nada tem propriamente do fluxo de consciência; não se trata assim de monólogo interior, mas de solilóquio dramático de feição tradicional.

Poderíamos citar ainda outros autores que se servem ou do monólogo interior ou do simples solilóquio, como, por exemplo, Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Lúcio Cardoso (sobretudo em A luz no subsolo, 1936) e, mais perto de nós, Fernando Sabino (Encontro

marcado, 1960).

. Entretanto, em nenhum deles a estrutura da frase em monólogo ou em solilóquio (estamos adotando a distinção que faz Robert Humphrey) é incoerente ou caótica em tão acentuado grau como em Autran Dourado, autor que dispõe de grandes recursos de fabulação e

introspecção, e no qual se sente nítida influência de Joyce e Faulkner — sobretudo do Faulkner de The sound and the fury, que nos oferece uma visão do mundo através da sensibilidade elementar de um idiota ou débil mental, semelhante ao Fortunato de A barca

dos homens.

Seu romance A barca dos homens (1961) é, em síntese, a crônica de um semilouco, de um desajustado mental — Fortunato — que perambulava mais ou menos inocentemente pela ilha de Boa Vista, recanto de veraneio, onde nascera e se criara. Certo dia, tendo-se apossado de um revólver, viu-se acossado pelos policiais da ilha, cuja população se mantinha justamente alarmada com o perigo que significava uma arma de fogo em mãos de um desequilibrado. Ferido numa queda, Fortunado refugiara-se num recanto da praia. A partir daí, a história se desenrola em dois planos (técnica semelhante à adotada por Aldous Huxley em Point counter point, 1928, e seguida também, com adaptações, por Érico Veríssimo em Olhai os lírios do campo, 1938): o dos habitantes da ilha, principalmente Luísa, mãe de Fortunato, e Tonho, seu amigo, e o do drama íntimo de Fortunato com suas aflições entremeadas por evocações de experiências recentes.

As divagações do herói débil mental, os fiapos difusos das suas lembranças, tudo, enfim, que lhe vai passando pela mente conturbada e atônita, todo esse fluxo de consciência ou torrente do pensamento de Fortunato, Dourado simula reconstituí-lo em fragmentos de frases soltas e incoerentes, que se vão encadeando por simples associação livre de idéias. O Autor serve-se, então, do legítimo monólogo interior, sob a forma de discurso direto, indireto e semi-indireto livre, tal, exatamente tal, como faz James Joyce em Ulysses, sobretudo nas suas quarenta e cinco últimas páginas (738 a 783 da edição de The Modern Library New York, 1961, na tradução de Antônio Houaiss, para a Civilização Brasileira, 1966, páginas 791 a 846), onde aparece o singular monólogo de Molly deitada na cama, enquanto Leopold, seu marido, ressona ao lado.

Em, A barca dos homens é o fluxo da consciência de Fortunato que se exterioriza como se o narrador o surpreendesse "por dentro" e não "por fora" em expressão lingüística. Mesmo numa personagem de tipo mental

equilibrado, essa torrente de pensamentos e emoções íntimas já se revestiria de uma roupagem idiomática fragmentária ou desconexa: na mente de um retardado, sua configuração assume aspectos surpreendentes, tipicamente joycianos. E, diga-se em abono do Autor, esse revestimento lingüístico adequa-se perfeitamente à situação e à natureza do conflito íntimo do protagonista.

Mas Autran Dourado "ajuda" o leitor, assinalando os trechos de stream of consciousness com uma linha pontilhada, trechos que em geral se alongam por uma página e meia, constituindo um total de cerca de vinte, intercaladas no texto do primeiro plano. Desde a de número 147, onde se inicia o monólogo interior, até a de número 236, onde termina, há, se não nos enganamos, treze interpolações, mas o trecho é um só, não interrompido por ponto

(no monólogo de Molly, não há pontuação de espécie alguma: Dourado pinga pelo menos algumas vírgulas).

Vejamos um exemplo, colhido ao acaso para dar uma idéia do que é a frase caótica em monólogo interior como exteriorização do fluxo de consciência:

Dizer muitas vezes seguidas paizinho, seu pai, muito mais que pai, porque tem gente que tem pai e não gosta dele, anda a vida inteira buscando um pai para gostar e seguir, era assim que devia ser um pai, como To-nho, quando saía com ele na Madalena pelo mar adentro, lhe dizia escolhe uma para sua madrinha, é bom, no mar sempre faz companhia, por que ele não vinha, meu Jesus, como a mãe dizia, está doendo muito a perna, levou a mão no lugar que mais doía, estava inchado, os urubus voando em torno dele, quando o dia clareasse, o cheiro da gangrena chamava muita atenção, nem precisava cheiro, que de longe não podiam sentir, os urubus tinham um faro muito fino, podiam ver de longe que tinha carne podre por perto, meu Jesus, não deixa eles chegarem primeiro que o Tonho, não deixa os soldados chegarem primeiro, não podiam chegar, ninguém sabia daquela grota, daquele esconderijo, só ele e Tonho, será que Tonho se lembraria, se lembraria, não podia esquecer (...)

Essa é uma amostra de frase caótica, em grau muito mais acentuado do que a do exemplo de Assunção de Salviano. Note-se que a linguagem do herói é cândida, de pura inocência, não porque ele seja ainda jovem, mas porque o monólogo interior, a "conversa com os nossos botões", se faz sempre revestida duma forma verbal de escassa contaminação de hábitos lingüísticos socializados. E o pensamento na sua essência, na sua fluidez, em quase estado de inocência, desinibido, desordenado. Quem divaga em colóquio consigo mesmo não pensa de maneira coerente, não coordena suas idéias numa estrutura sintática rígida, em períodos e parágrafos pontuados: o pensamento simplesmente flui entregue a si mesmo, sem cogitar de ouvinte atento.

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As três características desse fluxo de idéias que, por assim dizer, controlam a associação livre, estão, presentes no monólogo de Fortunato: primeiro, a memória (evocação do pai e aventuras marítimas com Tonho); segundo, a imaginação (idealização de "um, pai para gostar", a antevisão dos urubus voando quando o dia clareasse, a perspectiva de gangrena); terceiro, os sentidos (a perna inchada doendo). São esses, de fato, os três ingredientes do monólogo interior em frase caótica. Da hábil manipulação deles pode resultar obra de mérito, ainda que insólita para quem está habituado aos padrões tradicionais.

Aparentemente fácil, a frase caótica exige do autor amadurecimento, experiência e alto grau de capacidade de introspecção. Com esses dons contaram certamente James Joyce,

Virgínia Woolf, Conrad Aiken, William Faulkner58 para a criação da obra que nos legaram.59

Autran Dourado, se não foi o primeiro entre nós a exercitar-se nesse tipo de frase caótica de monólogo interior (temos o exemplo, mais comedido, de Antônio Callado),60 foi quem,

entretanto, a praticou com maior ousadia, e não ficou longe de realizar obra de mérito.