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N EGAÇÃO NA SUBORDINADA

2.4 Frase de ladainha

Variante da frase de arrastão é a que poderíamos chamar frase de ladainha. Dosado às vezes de certo lirismo ingênuo, em tom coloquial ameno, mas caracterizado por um primarismo sintático à outrance, esse tipo de construção, quando manejado por principiantes, pode tornar-se monótono e cansativo na sua interminável sucessão de orações coordenadas por "e", com pouquíssimas subordinadas que não sejam adjetivas introduzidas por "que".

No entanto, o molde dessa frase está na Bíblia, especialmente no Velho Testamento; parece ser traço da sintaxe hebraica, menos enleada em subordinação do que a grega ou latina:

E ele encarará contra as ilhas, e tomará muitas delas; e fará deter o autor do seu opróbrio e o seu opróbrio virá a cair sobre ele;

E voltará o seu rosto para o império da sua terra, e tropeçará e cairá e não será achado. (Daniel, XI, 18-9)

Um cronista muito apreciado por certa camada de leitores — José Carlos Oliveira — proporciona-nos um exemplo vivo desse estilo bíblico, numa crônica a que ele, certamente por sugestão do exemplo evangélico em que se teria inspirado, deu o título de "Ladainha", denominação de que nos apropriamos:

íamos num automóvel em alta velocidade ao longo da praia de Ipanema e era uma tarde meio cálida e meio cinza e meio dourada e estávamos alegres e o vento desenrolava os nossos cabelos e o ciciante mar estava da cor de um sabre visto no momento final pela própria pessoa em cuja carne está sendo enterrado — um sabre talvez manejado por um japonês que se submete ao haraquiri — e tudo era musicalidade e tudo de certo modo era triste como ficam tristes as coisas no momento mais agudo da felicidade e nós vimos sobre uma duna as freiras e eram cinco freiras que usam chapeuzinho com uma borla ou bordado branco e vestido marrom e eram cinco freiras alegres...

(In: Jornal do Brasil, 15/5/63)

E a "ladainha" prossegue, nesse tom, sem um só ponto, ao longo de duas colunas, num total de oitenta e cinco linhas e cerca de quinhentas palavras, em que entram trinta e sete

conjunções "e", dezessete orações adjetivas, quatro reduzidas de gerúndio, três comparativas, uma temporal e uma substantiva (os dados estatísticos servem apenas para dar uma idéia do que é o estilo de ladainha levado ao extremo). Na pena de um inexperiente, esse primarismo sintático tem por vezes conseqüências deploráveis.

Mas, se o autor que dele se serve por fastio da sintaxe habitual, ou como exercício de estilo ou até mesmo com o propósito de épater a burguesia gramaticalizada, tem imaginação e vocação lírica, dispõe de agilidade mental e capacidade de associação livre, o resultado pode ser bastante apreciável. Desses dons dispõe sem dúvida o Autor da crônica citada, mas receamos que os tenha malbaratado simplesmente porque não cuidou da resistência da atenção do leitor.

Espécie de frase de ladainha que se aproxima em certo grau da caótica está no trecho que transcrevemos abaixo. Para nos dar uma idéia do ra-merrão da labuta doméstica, na sucessão monótona dos dias de par com um tempo que não flui, Aníbal Machado recorre a esse tipo de estrutura frasal:

EMBOLADA DO CRESCIMENTO — Enquanto a criança crescia a mãe arrumava a casa

esperava o marido dormia ia à igreja conversava dormia outra vez regava as plantas arrumava a casa fazia compras acabava as costuras enquanto a criança crescia as tias chegavam à janela olhavam o tempo estendiam os tapetes imaginavam o casamento ralavam o coco liam os crimes e os dias iam passando enquanto a criança dormia crescia pois o tempo parou para esperar que a criança crescesse.

(João Ternura, p. 16)

A criança é o João Ternura, herói erótico e irônico, parente espiritual, primo-irmão de Macunaíma. Concebido sob o signo do amor, esperado e nascido com anseio e ternura, era natural que João Ternura fizesse parar o tempo enquanto mãe e tias só pensavam em vê-lo adulto. E os dias passam, sucedem-se iguais, mas o tempo mesmo é de expectativa, o tempo mesmo estava parado à espera de que "a criança crescesse".

Essa idéia de sucessão dos dias está habilmente sugerida numa forma verbal eficacíssima para expressar continuidade: uma série de orações em fileira, em ladainha, justapostas, sem conjunções — na sua maior parte — nem vírgulas. Mas só os dias correm: o tempo, não. O tempo está "parado", o tempo é de expectativa, está em compasso de espera. Tudo isso está insinuado nas três orações iniciadas por "enquanto", orações que indicam tempo concomitante, duração: "enquanto a criança crescia", "enquanto a criança dormia crescia". A atmosfera que aí se cria é como que "surrealista", ou melhor, bergso-niana: nela se distingue o tempo verdadeiro, o tempo psicológico ou interior ("o tempo parou para que a criança crescesse"), da sua tradução em espaço, i.e., do tempo matemático, expresso em

horas e dias sucessivos. A idéia de duração, a durée bergsoniana, sugerida nas orações de "enquanto", reflete o esta-

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do de espírito da mãe e das tias de João Ternura, ansiosas por que o menino se faça homem, entregues quase maquinalmente, quase sonambúlicas, às tarefas caseiras "com um olho muito vivo" no tempo que não flui, e com outro, "meio míope", nos dias que correm. Arrumar a casa, esperar o marido, dormir, ir à igreja, regar as plantas, fazer compras, acabar as costuras, estender os tapetes, chegar à janela, pensar no casamento, ralar coco, ler os crimes, tudo isso eram atividades corriqueiras de que a mãe e as tias nem se davam quase conta, de atentas que estavam no crescimento da criança.

Por trás desse "tempo-hora", desse tempo exterior, flui lentamente o outro, o tempo duração, o tempo interior. Essa dicotomia, Aníbal Machado expressa-a, com uma habilidade sortílega, num período de oito linhas, em que os dois planos da idéia de temporalidade se entrecruzam. Ao titular esse pequeno parágrafo de "embolada", teria o Autor pensado em sugerir a idéia de "dois tempos", de compasso binário, que caracteriza a embolada nordestina? A estrutura da frase lembra nitidamente o ritmo e o tom dessa forma poético- musical do Nordeste. Mas o curioso é que, por associação com "embolada de coco", ou simplesmente "coco", de que há inúmeras variedades, o Autor se tenha referido a "ralar coco", especificando uma atividade das tias, que não é característica da região (Minas) onde o herói João Ternura nascera e crescia.

De qualquer modo, a frase de "ladainha" constitui, no caso, uma eficaz forma de expressão para a idéia de dois tempos a fluir... "embolados".