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N EGAÇÃO NA SUBORDINADA

1.6.8.1.1 METÁFORA E IMAGEM

Em psicologia, a palavra imagem designa toda representação ou reconstituição mental de uma vivência sensorial que tanto pode ser visual — caso mais comum — quanto auditiva, olfativa, gustativa, tátil ou, mesmo, totalmente psicológica. Em semiologia e comunicação, é a "representação concreta que serve para ilustrar uma idéia abstrata".1 Em teoria literária, é

freqüente o uso dessa palavra com um sentido equivalente ao de metáfora ou de símile. John Middleton,2 por exemplo, julga preferível seu emprego com esse sentido abrangente,

para pôr em relevo a identidade fundamental entre aqueles dois tropos.

Mas vários autores — como Herbert Read, C. Day Lewis, Wellek, War-ren e outros — têm tentado estabelecer diferença entre imagem, por um lado, e metáfora e símile, por outro, tentativa, ao que nos parece, infrutífera, pois, na realidade, a distinção é antes psicológica do que propriamente formal. Paul Reverdy citado por H. Read, diz que a imagem "é pura criação mental" e "não pode emergir de uma comparação mas apenas da associação entre duas realidades mais ou menos distantes." Para C. Day Lewis,3 "a imagem poética é mais

ou menos uma representação sensorial, traduzida em palavras até certo ponto metafóricas". Como se vê, esses dois autores se mostram imprecisos na conceituação de imagem ("é

mais ou menos", "até certo ponto").

I. A. Richards4 preceitua que "aquilo que confere eficácia a uma imagem (...) é seu caráter

de evento mental peculiarmente relacionado com um sensação". Essa é outra conceituação puramente psicológica que, necessariamente, não inclui nem exclui a possibilidade de

imagem abranger ou não abranger a metáfora e o símile.

Em face da opinião desses autores, será válido dizer que a imagem a) é uma representação (reconstituição, reprodução) mental de resíduos5

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de sensações ou impressões predominantemente mas não exclusivamente visuais, que o espírito reelabora, associando-as a outras, similares ou contíguas, e b) pode assumir a forma de uma metáfora ou de um símile e, mesmo, de outros tropos (metonimia, alegoria,

Cf. LALANDE, André, Vocabulaire technique et critique de la philosophie, verbete image, C.

2Shakespeare criticism, p. 227, apud MARQUES, Oswaldino, op. cit., p. 27. 4 Poetic image, p. 18 e 22.

4Principles of literary criticism, p. 119.

5"A imagem é a persistência do que desapareceu" (Jean-Louis Schefer, "L'image: le sens 'investi'". Communications, n9 15, 1970, p. 219).

símbolo). Assim, com maior ou menor rigor, é perfeitamente cabível empregar — e geralmente empregamos — a palavra imagem para designar qualquer recurso de expressão de contextura metafórica, comparativa, associativa, analógica, através do qual se representa a realidade de maneira transfigurada.

1.6.8.2 Catacrese

Quando a translado (transferência ou transposição, sentido etimológico de metáfora) do nome de uma coisa (A) para com ele designar outra (B), semelhante, se impõe por não existir termo próprio para a segunda (B) e/ou resulta de um abuso no emprego da palavra "transferida", o que se tem é uma catacrese (que, etimologicamente, significa "abuso"). O fundamento e o processo de formação dessa figura (tropo) são os mesmos da metáfora: ambas se baseiam numa relação de similaridade; mas a diferença entre ambas reside ainda no fato de que a catacrese, além de estender o sentido de uma palavra além do seu âmbito estrito e habitual, deixa de ser sentida com metáfora, dado o seu uso corrente.

Se não se dispõe de palavra própria para designar com exclusividade as colunas que sustentam o tampo da mesa, que fazer? Criar um neologismo ou aproveitar palavra já existente que designe coisa semelhante, como a perna ou o pé que sustentam o corpo humano; daí a catacrese perna (ou pé) da mesa. Assim também, faz-se catacrese quando se diz: enterrar uma agulha na pele (pele não é terra), embarcar no trem (trem não é barco),

espalhar dinheiro (dinheiro não é palha), o avião aterrissou em alternar (mar não é terra) o azulejo é branco (azulejo deveria ser sempre azul), sacar dinheiro do banco (banco não é saco), encaixar uma idéia na cabeça (cabeça não é caixa), amolar a paciência (paciência

não é instrumento cortante para ser amolado)... Faz-se ainda catacrese quando se diz bico da pena, folha de zinco, de papel, braço da cadeira...

A catacrese é, portanto, uma espécie de metáfora morta, em que já não se sente nenhum vestígio de inovação, de criação individual e pitoresca. É a metáfora tornada hábito lingüístico, já fora do âmbito estilístico.

1.6.8.3 Catacrese e metáforas naturais da língua corrente

Além da metáfora estética, revivificadora da linguagem, há outro tipo muito comum: o das

metáforas naturais da língua corrente, em geral, clichês metafóricos, que podem ser ou não

ser catacreses. Comuns e nume

rosas em todas as línguas, elas têm como fontes geradoras o próprio homem, seu ambiente e seu cotidiano. Formam-se geralmente com nomes de:

—■ partes do corpo humano (catacreses na sua maioria): boca do túnel, olho d'água, cabeça do prego, cabelo do milho, língua de fogo (labareda), mão de direção, pé da mesa,

pé de árvore, dente de alho, braço de rio, barriga da perna, costa(s) do Brasil (litoral), coração da floresta, miolo da questão, ventre da terra....

— coisas, objetos e utensílios da vida cotidiana: tapete de relva, cortina de fumaça, espelho da alma (olhos), roda da vida, berço da nacionalidade, leito de um rio, laços matrimoniais... — animais: esta mulher é uma víbora, uma piranha, uma raposa, uma fera, ele é um touro, uma águia, um quadrúpede, um cão...

— vegetais: este menino é uma flor, tronco familiar, raízes da nacionalidade, ramo das ciências, árvore genealógica, maçã do rosto, fruto da imprevidência, pomo da discórdia... — fenômenos físicos, aspectos da natureza, acidentes geográficos: aurora, primavera,

ocaso da vida, explosão de sentimentos, torrente de paixões, vale de lágrimas, monte, montanha de (papéis, absurdos, asneiras...), tempestade de injúrias, dilúvio de

impropérios... (ver 10. Ex., 209 a 217 e 508 a 509).

1.6.8.4 Parábola

A parábola é também uma forma de comparação (para os antigos retóricos, esses termos eram até sinônimos). Fala-se por parábolas, como fez Jesus, quando os elementos de uma ação se referem ao mesmo tempo a outra série de fatos e objetos. E uma espécie de alegoria que sugere por analogia ou semelhança uma conclusão moral ou uma regra de conduta em determinado caso. As parábolas mais conhecidas são as do Evangelho: a do filho pródigo, a do joio entre o trigo, a do bom Samaritano, a do juiz iníquo, a da palha e da trave, e outras.

Chama-se "corpo" da parábola a narrativa imaginada, ao passo que a lição moral que dela se tira é a sua "alma". Na parábola que transcrevemos a seguir, "trave" está por defeito que não percebemos em nós mesmos, e "palha" por aquele que estamos sempre apontando nos outros:

Como vês a palha no olho do teu irmão, e não vês a trave no teu?

Ou como ousas dizer a teu irmão: Deixa que eu tire a palha do teu olho, tendo tu uma trave no teu?

Hipócrita: tira primeiro a trave do teu olho, e então tratarás de tirar a palha do olho do teu irmão.

(Mateus, VII, 3-5) GA R C I A ♦ 113

O "corpo" dessa parábola é a narrativa cujos elementos são a palha, a trave e o olho: sua "alma" é a regra de conduta, que se pode traduzir em "olha primeiro o teu defeito, e aponta depois o alheio". Numa versão moderna, abrasileirada, isso significa: "macaco, olha o teu rabo e deixa o rabo do vizinho" — que é também uma parábola.

1.6.8.5 Animismo ou personificação

Há uma infinidade de metáforas constituídas por palavras que denotam ações, atitudes ou sentimentos próprios do homem, mas aplicadas a seres ou coisas inanimadas: o Sol nasce, o dia morre, o mar sussura, mar furioso, ondas raivosas, dia triste... E uma espécie de "animismo" ou personificação. O poema brasílico Cobra Norato, de Raul Bopp, está repleto de metáforas desse tipo: "um riozinho vai para a escola estudando geografia", "os rios vão carregando as queixas do caminho", "águas assustadas", "águas órfãs fugindo", arvorezinhas "bocejam sonolentas" e "grávidas cochilam", as árvores "mamam luz escorrendo das folhas" e "nuas tomam banho".45

1.6.8.6 Clichês

Quando a metáfora se estereotipa, se vulgariza ou envelhece, acaba como que embotada, perde a sua vivacidade expressiva tal como perde o gume uma faca muito usada. Surge então o clichê metafórico, que caracteriza o estilo vulgar o medíocre dos principiantes ou dos autores sem imaginação: a estrada serpenteia pela planície, o mar beija a areia, brisa

rumore-jante, luar prateado, silêncio sepulcral, aurora da vida, flor dos anos, primavera da vida, mais uma página da vida...

Muitas vezes, o clichê não tem estrutura metafórica:45 é uma simples "série usual" ou

"unidade fraseológica" — como diz Rodrigues Lapa — i.e.,

Cf. Othon M. Garcia, Cobra Norato, o poema e o mito, p. 44, onde se arrolam outros exemplos. 46 Não se deve confundir o clichê metafórico (metáfora surrada do tipo "o Sol é o

astro-rei" ou "a Lua é a rainha da noite") e o fraseológico (do tipo "virtuoso prelado") com a

fi'ase-feita (locuções, ditados, rifões) de genuíno sabor popular e tradicional, do tipo "alhos e

bugalhos", "onde a porca torce o rabo", "coisas do arco-da-velha", "falar com o seus botões", "camisa de onze varas", "cavalo de batalha", "cobras e lagartos", "fôlego de sete gatos" e muitas outras expressões populares de origem desconhecida ou hermética, em que se refletem a alma, a filosofia e os costumes populares. O leitor curioso há de achar interessante e muito pro-veitosso o livro de João Ribeiro, Frases feitas, de que existe uma edição recente da Livraria São José. Muitas expressões de gíria poderiam ser igualmente incluídas na área da metáfora, já que quase todas têm sentido figurado, às vezes até mesmo sibilino ou hermético, só compreendido pelos membros do grupo social em que circulam. E o caso da gíria dos malfeitores, cuja característica é camuflar o verdadeiro sentido, de forma que só os "iniciados" possam entendê-las (e não outros, principalmente, et

por cause, a polícia...).

um agrupamento de palavras surrado pelo uso, constituído quase sempre por um substantivo mais um adjetivo: doce esperança, amarga decepção, virtuoso prelado, ilustre

professor, eminente deputado, infame caluniador, poeta inspirado, autor de futuro, viúva inconsolável, filho exemplar, pai extremoso, esposa dedicada...6

1.6.8.7 Sinestesia

Nos dois primeiros exemplos (doce esperança e amarga decepção) há vestígios de uma variedade de metáfora que recebe o nome de sinestesia. A sinestesia consiste em atribuir a uma coisa qualidade que ela, na realidade, não pode ter senão figuradamente, pois o sentido por que é percebida pertence a outra área. Por exemplo: doce e amargo são sensações do paladar, ao passo que esperança e decepção são sentimentos. Há sinestesia, portanto, quando se cruzam sensações: rubras (sensação visual) clarinadas (sensação auditiva); voz (auditiva) fina (tátil); voz áspera (tátil), cor berrante (auditiva). A poesia de Carlos Drummond de Andrade oferece uma infinidade de sinestesias singularíssimas, de que damos a seguir alguns exemplos colhidos em Fazendeiro do ar & poesia até agora, Rio, Livraria José Olímpio Editora, 1955 (os números entre parênteses indicam as páginas): insolúvel flautim (87), as cores do meu desejo (95), séculos cheiram a mofo (20), sino toca fino (27), sonata cariciosa da água (44), balanço doce e mole das suas tetas (63), cantiga mole (69), sombra macia (118), cheiro de sono (134), olhos escutam (149), áspero silêncio (279)...

1.6.8.8 Metonimia e sinédoque

Duas outras figuras de significação (ou de pensamento) são a metonimia e a sinédoque. A distinção entre ambas sempre foi muito sutil; por isso, nem todos os autores concordam na conceituação de uma e de outra. Heinrich Lausberg7 ensina que elas se baseiam numa

relação real e não mentada, portanto, não comparativa, como é o caso da metáfora. Na metonimia essa relação é qualitativa, e na sinédoque, quantitativa. Para outros, tais relações são de contiguidade na metonimia, e de causalidade, na sinédoque. Outros ainda só vêem em ambas relação de contiguidade. Augusto Magne8 não se refere

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a esse tipo de relações, limitando-se a definir a metonímia como "a substituição de um nome por outro em virtude de uma relação extrínseca, qual é a que existe entre duas partes de um mesmo todo, ou duas modalidades de uma mesma coisa", e a sinédoque como "a figura que alarga ou restringe o sentido normal de uma palavra". F. Lázaro Carreter diz ser a metonímia a figura que responde "a la fórmula lógica pars pro parte" (a parte pela parte), e a sinédoque a que responde à fórmula upars pro tato" (a parte pelo todo). Para Rene Wellek e

Alguns desses exemplos e muitos outros encontrará o leitor no excelente livro de M. Rodrigues Lapa — Estilística da língua portuguesa, cap. 5, "Fraseologia e clichê" — obra que recomendamos com entusiasmo. A primeira edição (Seara Nova, Lisboa), data de 1945. Mas há outra mais recente.

7Manual de retórica literária, trad. esp., vol. II, 565-573. 8Princípios elementares de literatura, vol. I, 82-85.

Austin Warren,51 as relações que expressam a metonímia e a sinédoque ("figuras de

contiguidade tradicionais") são "lógica e quantitativamente analisáveis".

À luz das lições desses autores, o que parece certo é que essas figuras apresentam como traço comum uma relação real de contiguidade, e que a diferença entre ambas não é de todo relevante. Por isso, a maioria prefere — como faz Roman Jakobson52 — adotar apenas

o termo "metonímia", raramente referindo-se à sinédoque. Essa é a orientação que seguimos, quando tratamos do símbolo em 1.8.8.9, o que não impede que, com propósito didático, tentemos indicar as características desses dois tropos.