• Nenhum resultado encontrado

D ISCURSO I NDIRETO

2. VOC 0 vocabulario

1.3 Polissemia e contexto

A linguagem — seja ela oral ou escrita, seja mímica ou semafórica — é um sistema de símbolos,5 signos ou signos-símbolos, voluntariamente produzidos e convencionalmente

aceitos, mediante o qual o homem se comunica com seus semelhantes, expressando suas

idéias, sentimentos ou desejos. Suas três primordiais funções são, assim, a representação

(idéias), a exteriorização psíquica (sentimentos) e o apelo (desejos, vontade), ou, como quer Karl Bühler, (op. cit., p. 41), "expressão, apelo e representação".

4 Cf. Language in general education; A report to the Committee on the Function of English in

General Education, p. 48.

5 Para C. K. Ogden e I. A. Richards, no seu hoje clássico The meaning of meaning (O

significado de significado), símbolo corresponde ao que Saussure (op. cit., p. 98-9) chama

de significante, e referente, ao que o mestre genebrino denomina significado. A combinação do significante (imagem acústica) com o significado (conceito) constitui o signo.

A linguagem ideal seria aquela em que cada palavra (significante) designasse ou apontasse apenas uma coisa, correspondesse a uma só idéia ou conceito, tivesse um só sentido

natureza, enganosas, porque polissêmicas ou plurivalentes. Muitas constituem mesmo uma espécie de constelação semântica, como, por exemplo, ponto e linha, que têm (segundo o

Dicionário de Laudelino Freire) cerca de cem acepções.

Isoladas do seu contexto ou situação,12 as palavras quase nada significam de maneira

precisa, inequívoca (Ogden e Richards são radicais: "as palavras nada significam por si mesmas"): "...o que determina o valor (= sentido) da palavra é o contexto. A palavra situa-se numa ambiência que lhe fixa, a cada vez e momentaneamente, o valor. É o contexto que, a despeito da variedade de sentidos de que a palavra seja suscetível, lhe impõe um valor 'singular'; é o contexto também que a liberta de todas as representações passadas, nela acumuladas pela memória, e que lhe atribui um valor 'atual'. Mas, independentemente do emprego que dela se faça, a palavra existe no espírito com todos os seus significados latentes e virtuais, prontos a surgir e a se adaptarem às circunstâncias que a evoquem".13

Assim, por mais condicionada que esteja a significação de uma palavra ao seu contexto, sempre subsiste nela, palavra, um núcleo significativo mais ou menos estável e constante, além de outros traços semânticos potenciais em condições de se evidenciarem nos contextos em que ela apareça.14 Se, como querem Ogden e Richards, as palavras por si

mesmas nada significam, a cada novo contexto elas adquiririam significação diferente, o que tornaria praticamente impossível a própria intercomunicação lingüística.

Geralmente, quando queremos saber o sentido de uma palavra recorremos ao dicionário; mas pode acontecer: a) que ela não esteja averbada; b) que a definição dela não se ajuste ao sentido da frase que ouvimos ou lemos; c) que o dicionário dê mais de um significado ou acepção. Em qualquer hipótese, só mesmo o contexto é que nos pode ajudar.

No seguinte passo de Manuel Bernardes, só o contexto verbal nos permite saber em que sentido estão empregadas as palavras "explicando", "remos" e "golfo":

177

Depois de um espaço, a seu parecer [do monge] mui curto, explicando o passarinho os breves remos de suas ligeiras peninhas, foi cortando esse golfo de ares, e desapareceu, deixando ao seu ouvinte assaz magoado, porque nada do que se possui com gosto, se perde sem desconsolação (...)9

A narrativa é conhecida (aparece em várias antologias): um religioso, reparando no Salmo 89, onde diz que "mil anos diante de Deus são como o dia de ontem", saiu para um pomar

12Ao tratarmos de frase de situação (1. Fr., 1.2), adotamos a definição de contexto que nos dá J. Matoso Câmara Júnior: "ambiente lingüístico onde se acha a

frase". Todavia, outros autores preferem atribuir a esse termo sentido mais amplo, incluindo nele o que Matoso Câmara chama de "situação" ("ambiente físico- social onde a frase é enunciada") e acrescentando ainda, alguns, o fator "experiência". Existem assim três espécies de contexto: o verbal, o da situação e o da experiência (do emissor e do receptor). Seja como for, é usual o emprego do termo contexto com o sentido amplo de qualquer ambiência em que se encontre a palavra.

13VENDRYES, Le langage, p. 211.

14Aos traços significativos mínimos que entram na constituição de uma palavra dá a semântica estrutural o nome de semas. Há os semas básicos (núcleo

significativo estável e constante) e os virtuais (ou potenciais), que indicam as possibilidades de aplicação num determinado contexto. O conjunto dos semas básicos e virtuais constitui o semema (também dito semantema).

ou jardim a fim de "penetrar o espírito desta admirável sentença". Estava o monge entregue às suas meditações, quando um passarinho se pôs a cantar tão maviosamente, que ele se esqueceu do tempo. Quando regressou ao mosteiro, ninguém o reconheceu. Re-correndo- se então "à fé das crônicas e memórias antigas", lá se achou nomeado que, no tempo do abade a que ele se referia, realmente desaparecera um monge, e, feito o cômputo dos anos, verificou-se que se tinham passado trezentos.

Não cremos que qualquer dicionário elucide o leitor quanto ao sentido das três palavras grifadas no trecho transcrito. Vejamos o "dicionário do Aurélio":

Explicar: tornar inteligível ou claro (o que é ambíguo ou obscuro); justificar; lecionar; ensinar,

significar; expressar; expor; explanar; dar a conhecer a origem ou o motivo de; exprimir-se; dar razão das suas ações ou palavras; dar satisfação ou explicação; pagar (gíria brasileira).

Remo: instrumento de madeira que serve para fazer avançar na água pequenas

embarcações; indígenas da tribo dos Remos (Javari).

Golfo: porção de mar que entra profundamente pela terra e cuja abertura é muito larga;

nome de planta.

Tomadas no seu sentido literal, referencial ou denotativo (ver a seguir), essas palavras deixariam o leitor perplexo. Só o contexto poderia esclarecê-lo, levando-o a tomar

explicando no sentido de desdobrando, abrindo e a ver em remos e golfo duas metáforas

(sentido figurado, conotativo ou afetivo) com que o Autor procurou tornar mais vivas e pitorestas as idéias de asas e imensidão do espaço aéreo.

Estamos vendo assim que as palavras são elos numa cadeia de idéias e intenções, interligadas umas às outras por íntimas relações de sentido: dissociá-las da frase é desprovê-las da camada do seu significado virtual, i.e., contextual. Isso é o que ocorre na língua viva, na língua de todos os dias, quer falada ou coloquial, quer escrita ou literária. Conhecer-lhes o significado dissociado do contexto não é suficiente. Portanto, exercícios de vocabulá-

Como passam mil anos diante de Deus, segundo o texto comentado por Jesus Belo Galvão

(Coimbra, 1964, p. 21), onde, aliás, se fazem, com erudição e argúcia, oportunas observações sobre a importância do contexto como pauta para os valores semânticos das palavras.

rios que constem de listas de palavras para decorar pouca utilidade têm. Só através da leitura e da redação é que se pode construir um vocabulário vivo e atuante, incorporado aos hábitos lingüísticos. Isso, entretanto, não impede, antes, pelo contrário, justifica se lance mão de artifícios capazes de permitir a simulação de situações reais, de uma espécie de contexto ad hoc. É o que se faz às vezes, se bem que nem sempre com a necessária

freqüência, quando se abrem lacunas em frases completas para preencher, ou quando se propõem séries de palavras sinônimas ou não para escolha da(s) que se adapte(m) ao contexto verbal. Outro tipo de exercício também eficaz consiste em se criarem situações globais em torno de certas áreas semânticas, como, por exemplo, as dos sentidos, para a expressão de impressões (cores, formas, sons, odores, etc). No entanto, o melhor processo para a aquisição de vocabulário é aquele que parte de uma experiência real e não apenas simulada, pois só ela permite assimilar satisfatoriamente conceitos e idéias que traduzam impressões vivas. E inútil ou, pelo menos, improfícuo tentarmos traduzir impressões ou juízos que a experiência, lato sensu, não nos proporcionou.