• Nenhum resultado encontrado

Generalização e especificação o concreto e o abstrato

D ISCURSO I NDIRETO

2. VOC 0 vocabulario

2.0 Generalização e especificação o concreto e o abstrato

Darwin, em seu livro Sobre a origem das espécies (1959), distribui os seres em filos, classes, ordens, grupos, famílias, gêneros, espécies e variedades. Mas, fora da sistemática,

i.e., da classificação racional, essa hierarquização não costuma ser assim tão rígida:

normalmente designamos as coisas pelo gênero (ou classe) ou pela espécie. Quando temos de nomear um objeto ou ser, podemos servir-nos de um termo próprio, i.e., que se aplique apenas a cada um deles de maneira tanto quanto possível inconfundível — palmeira, sabiá — ou indicá-los pela classe ou gênero que inclua também seus assemelhados — árvore,

pássaro. Se, ao descrever ou evocar um aspecto da paisagem campestre, o autor se limita a

uma referência generalizadora, falando apenas em "árvores onde cantam os pássaros", terá assinalado somente traços indistintos, comuns a uma classe muito ampla de coisas ou seres. Sua referência é incaracterística. Mas, se fizer como o poeta que se serviu de termos específicos, terá caracterizado de maneira mais precisa aquele aspecto da paisagem: "palmeiras onde canta o sabiá". No primeiro caso, empregou palavras de sentido geral; no segundo, serviu-se de termos de sentido específico. Ora, quanto mais geral é o sentido de uma palavra, tanto mais vago e impreciso; reciprocamente, quanto mais específico, tanto

mais concreto e preciso. Cabe aqui o testemunho valioso de Paulo Rónai: "Quanto ao conhecimento do vocabulário concreto, será preciso encarecer-lhe a importância num país como o Brasil, mostruário imenso de espécies animais e vegetais, ao mesmo tempo que repositório de variado patrimônio sociológico e cultural, incessantemente ampliado pela contribuição das correntes imigratórias e do intercâmbio comercial?" (artigo citado). Se, pelo menos, os professores encarecêssemos bastante a importância do vocabulário concreto, específico, nossos alunos talvez aprendessem a "dar nome aos bois", evitando nas suas redações generalidades inexpressivas.

Há palavras que são mais específicas do que outras; cão policial é mais específico do que simplesmente cão; mamífero, mais do que vertebrado, e este, mais do que animal; palmeira

imperial é mais específico que palmeira, e palmeira mais do que árvore, e árvore mais do

que planta ou vegetal. Trabalhador é termo de sentido geral, muito amplo: constitui uma classe;

operário tem sentido mais restrito; adaptando-se à escala de Darwin, seria o gênero; metalúrgico seria a espécie, e soldador, a variedade. Ao descrever uma cena de rua, posso

referir-me indistintamente a transeuntes (sentido geral), ou particularizar em escala descendente (do mais geral para o mais específico): homens, jovens, estudantes, alunos do colégio tal.

No entanto, generalização e especificação têm sentido relativo. A palavra mesa, por exemplo, tem sentido específico, quando com ela designamos ou apontamos determinado tipo de móvel constituído geralmente por um tampo sustentado por três ou quatro pés ou colunas; mas terá sentido geral, vale dizer muito próximo da abstração, quando se referir a uma classe de objetos assemelhados, sem se fixar em nenhum deles isoladamente. Existe acentuada diferença entre esse tipo de abstração e aquele outro em que as gramáticas incluem os substantivos abstratos propriamente ditos, como liberdade, justiça, amor, dever,

virtude, caridade, nomes de entidades que não têm existência física, criadas que são pela

mente humana como resultado da experiência em situações muito complexas. Por isso, preferem alguns teóricos a denominação sugerida por Bentham: "entidades fictícias" ou "nomes fictícios", reservando-se o termo "abstrato" para os nomes que designam

qualidades, ações ou estados (formosura, adoração, morte).

O grau de generalização ou de abstração de um enunciado depende do seu contexto. Na série de declarações que se seguem, a primeira, por ser de ordem geral, encerra um juízo falso ou inaceitável em face da experiência; no entanto, os termos essenciais que a constituem são os mesmos da última que, por ser mais específica, se torna incontestável. 1. A prática dos esportes é prejudicial à saúde.

2. A prática dos esportes é prejudicial à saúde dos jovens.

3. A prática dos esportes é prejudicial à saúde dos jovens subnutridos.

5. A prática indiscriminada de certos esportes violentos é prejudicial à saúde dos jovens subnutridos.

As especificações expressas pelos adjuntos dos jovens, subnutridos, violentos, certos,

indiscriminada tornam absolutamente aceitável a última declaração.

A linguagem é tanto mais clara, precisa e pitoresca quanto mais específica e concreta. Generalizações e abstrações tornam confusas as idéias, traduzem conceitos vagos e imprecisos. Que é que expressamos realmente com o adjetivo "belo", de sentido geral e abstrato, aplicável a uma infinidade de seres ou coisas, quando dizemos uma bela mulher, um belo dia, um belo caráter, um belo quadro, um belo filme, uma bela notícia, um belo exemplo, uma bela cabeleira? E possível que a idéia geral e vaga de "bele-

187

za" lhes seja comum, mas não suficiente para distingui-los, para caracterizá-los de maneira inconfundível. Praticamente quase nada se expressa com esse adjetivo aplicado indistintamente a coisa ou seres tão díspares. Seria possível assinalar-lhes traços singularizantes por meio de outros adjetivos mais especificadores: mulher atraente,

tentadora, sensual, arrebatadora, elegante, graciosa, meiga...; dia ensolarado, límpido, luminoso, radiante, festivo...; caráter reto, impoluto, exemplar...; rapaz esbelto, robusto, guapo, gentil, cordial, educado... E certo que, ainda assim, o resultado não seria grande

coisa, pois muitos dos adjetivos propostos são ainda bastante vagos e imprecisos, se bem que em menor grau do que "belo". No caso, o recurso a metáforas e comparações teria maiores possibilidades de salientar os traços mais característicos e pitorescos do que a simples adjetivação.

As palavras abstratas apelam menos para os sentidos do que para a inteligência. Por traduzirem idéias ou conceitos dissociados da experiência sensível, seu teor se nos afigura esmaecido ou impreciso, exigindo do espírito maior esforço para lhes apreender a integral significação. A sentença de Aristóteles, vulgarizada pela frase de Locke — Nihil est in

intellectu quod prius non fuerit in sensu — é incontestável: realmente, nada nos chega à

inteligência sem passar antes pelos sentidos. Isso não significa, entretanto, que a linguagem humana deve prescindir de abstrações para se fazer clara; muitas vezes, mesmo traduzida em termos exclusivamente concretos, ela se torna também obscura. Portanto, o que se aconselha é uma conjunção dos dois processos. É o que ocorre, por exemplo, nas ciências experimentais, em que hipóteses, conclusões, generalizações — vale dizer, abstrações — se apoiam, se esclarecem, se fundamentam em especificações — vale dizer, em fatos concretos. Tudo depende da natureza do assunto, do propósito da comunicação e do nível mental do leitor ou ouvinte.

A propósito da conveniência de se usar linguagem abstrata ou linguagem concreta, vale a pena citar a opinião de um grupo de professores e educadores expressa num relatório sobre o papel da língua inglesa na educação em geral, publicado em Language in general

education, há pouco citado:

"Os estudantes são aconselhados a evitar 'palavras de sentido geral' e a usar 'palavras de sentido específico', sem levar em consideração o que está sendo dito, como se isso fosse uma regra para todos os casos, e sem mesmo deixar claro o que é que se entende por 'geral' ou 'específico'. Sir Arthur Quiller-Couch (On the art of writing, Nova York, G.E Putman's Sons, 1916, p. 122-4), por exemplo, no seu ensaio 'On jargon' ('Sobre o jargão') diz que é um cânon da retórica preferir o termo concreto ao abstrato, o particular ao geral. Mas não se adverte que isso é verdade apenas em certos casos e com propósitos particulares; não se esclarece que em certas circunstâncias o geral talvez seja preferível; tampouco se chama a atenção para o fato de que o particular e o geral não são termos absolutos, já que um pode ser geral em relação a outro, e particular em relação a um terceiro (como, por exemplo, quadrúpede, particular em relação a animal, mas geral no que respeita a cão); mas, acima de tudo, não se adverte também que em quase todas as formas de discurso que não a simples descrição ou enumeração de detalhes físicos, o relativamente particular e o relativamente geral se entrosam, antes em harmonia do que em oposição, tanto nas palavras do autor quanto na mente do leitor. A habilidade em passar fácil e seguramente de um para outro, sendo como são fonte de pensamento claro, base do raciocínio tanto indutivo quanto dedutivo, seria do maior proveito no estudo adequado de qualquer língua" (p. 159-50).

Mesmo no estilo literário propriamente dito, essa conjunção é ou deve ser freqüente. E os bons escritores sabem disso, e por sabê-lo é que recorrem, em maior ou menor grau, a comparações e metáforas de teor concreti-zante. O conceito de vida, por exemplo, é muito abstrato, ou muito vago para ser facilmente apreendido em toda a sua extensão; traduzido, entretanto, em linguagem concreta, torna-se mais claro. Foi o que fez o padre Antônio Vieira: "Que coisa é a vida, senão uma lâmpada acesa — vidro e fogo? Vidro, que com um assopro se faz; fogo, que com um assopro se apaga?" As idéias abstratas de fragilidade e fugacidade da vida aparecem aí expressas em termos concretos, de sentido metafórico (vidro, lâmpada acesa, assopro, fogo, se faz, se apaga), que nos lembram sensações físicas, oriundas da experiência do cotidiano; graças a isso, como que se materializam, tornando-se-nos mais familiares, mais conhecidas, mais facilmente apreensíveis.

A sabedoria popular traduzida nos provérbios é um exemplo de linguagem concreta, concisa, freqüentemente metafórica e pitoresca. A sentença "onde impera a mediocridade ou a ignorância, os que têm algum merecimento se destacam facilmente" não tem o mesmo

vigor nem a mesma concisão do conhecido provérbio "em terra de cego, quem tem um olho é rei". Confrontem-se a concisão, a exatidão e o pitoresco dos seguintes provérbios com a vaguidade e a imprecisão das sentenças que procuram traduzi-los ou interpretá-los em linguagem abstrata: