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N EGAÇÃO NA SUBORDINADA

2.6 Frase fragmentária

Como assinalamos em 1.2, as frases de situação, do ponto de vista estritamente gramatical, poderiam ser consideradas como fragmentos de frase, se o contexto não lhes restaurasse a integridade semântica, i.e., se não lhes desse um sentido completo.

Entretanto, o verdadeiro fragmento de frase é de outra ordem. Examinemos o seguinte trecho de Jorge Amado:

Há muito que os médicos haviam descoberto que aquela febre que matava até macacos era o tifo.

Existem aí quatro orações mas uma só frase íntegra, que, no âmbito restrito da análise sintática, se chama, como sabemos, período. Nenhuma dessas orações encerra um pensamento completo, pois qualquer delas é parte de outra. Isoladamente, constituem fragmentos de frase:

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— Há muito [tempo] é uma oração, sem dúvida, mas não uma frase (rever 1.1), pois não é suficiente por si mesma para estabelecer comunicação, já que seu sentido só se completa no resto do período, especialmente na oração imediata, dita "temporal" "que [= desde que] os médicos haviam descoberto...", etc. Portanto, é um fragmento de frase, a expressar apenas uma circunstância de tempo, apesar de ser a oração da qual dependem sintaticamente as demais do período.

— que os médicos haviam descoberto é também uma oração mas não uma frase, pois seu sentido só se completa no resto do período, onde está o seu objeto direto ("que aquela febre... era o tifo"). Outro fragmento de frase.

— que matava até macacos é, da mesma forma, parte de outra oração, ou melhor, de termo ("febre", sujeito) de outra, funcionando como adjunto adnominal. Fragmento de frase.

— que aquela febre... era o tifo é, como vimos, o objeto direto de "haviam descoberto". Fragmento de frase.

Donde se conclui que toda oração subordinada é um fragmento de frase, tanto quanto os adjuntos.

Encaremos agora o fragmento de frase como resultado de uma estrutura verbal malograda, frustrada nos seus intentos por causa de falhas palpáveis de pontuação ou de vícios de raciocínio:

O povo carioca pode gabar-se dos seus quatrocentos anos de vida. Vida bem vivida. Tendo por prêmio a natureza e o clima ameno. (Redação de aluno.)

O primeiro período constitui uma frase íntegra. O segundo — "Vida bem vivida" — é aposto de "vida", aposto por reiteração, com propósito enfático. Poderia estar entre vírgulas, como é de regra, mas o autor deu-lhe maior realce, separando-o por ponto. É, em essência, um fragmento de frase, mas não vicioso, dada, inclusive, a possibilidade de entendê-lo também como construção elíptica ou como frase nominal. Entretanto, parece mais natural encará-lo como um recurso de estilo que se resolveu satisfatoriamente numa frase fragmentária. Mas o terceiro trecho — de "tendo" até o fim — é um fragmento de frase, tido como vicioso pelos cânones gramaticais, já que se trata de uma oração dependente desligada da sua principal — que é também a principal do período ("o povo carioca pode gabar-se..."). Muitos veriam aí, pelo menos, uma falha de pontuação (ponto em lugar de vírgula), e falhas de pontuação dessa ordem é que provocam a maioria dos fragamentos de frase de feição anacolútica. No ensino fundamental, são freqüentíssimas construções semelhantes a essa, constituídas por períodos a que falta a oração principal, porque o ponto está indevidamente colocado.

Ora, o estilo da literatura moderna, brasileira ou não, principalmente a do período entre as duas grandes guerras, distingue-se pelo feitio da sua frase fragmentária, em conseqüência quase exclusiva de um critério de pontuação não ortodoxo. Não obstante, são formas de expressão legítimas sob o aspecto estilístico e não estritamente gramatical. Quando intencionais e praticadas com habilidade, constituem virtudes estilísticas; quando resultam de incúria ou ignorância, tornam-se vícios lastimáveis.

No exemplo que acabamos de comentar, o fragmento de frase vicioso decorreu do isolamento da oração gerundial "tendo...", isolamento feito com inabilidade ou incúria. No trecho a seguir, de Gilberto Amado, há também uma série de gerúndios desacompanhados de oração principal, mas a habilidade e a experiência do Autor deram como resultado uma frase bastante expressiva:

A gente andando, comendo, bebendo, dormindo, vivendo, indo ao banho no rio, passeando na rua, procurando furtar os figos da velha Merenda, paralisando-se de admiração diante do velho Faria, branco, com uma expressão de eternidade, e aquele rapaz bonito, de cabelos cacheados, deitado ali dormindo para sempre.

(História da minha infância, p. 30)

Sob o aspecto gramatical, há nesse trecho dois grupos de fragmentos de frase: o primeiro constituído pela série de gerúndios, e o segundo, pela parte final, a partir de "e aquele rapaz...", cujo núcleo é o participio passado "deitado". Falta aí pelo menos uma oração

independente que sirva de principal do conjunto. O "remendo" mais fácil consistiria em enxertar um auxiliar ("vivia", ou "estava", por exemplo) para os gerúndios, e outro para o participio passado ("continuava"). Com isso, o trecho se tornaria íntegro, ficaria sendo realmente um período, mas teria perdido grande parte do seu sortilégio, que provém do contraste entre o dinamismo daqueles gerúndios desacompanhados de auxiliar e a idéia de repouso daquele "deitado". Confronte-se a versão íntegra com a fragmentária, e ver-se-á quanto perdeu com isso o trecho:

A gente estava (ou vivia) andando, comendo, dormindo, vivendo, indo ao banho no rio, passeando na rua, procurando furtar os figos da velha Merenda, paralisando-se de admiração diante do velho Faria, branco, com uma expressão de eternidade, enquanto aquele rapaz bonito, de cabelos cacheados, continuava deitado ali, dormindo para sempre.

E um caso de conflito entre a rigidez gramatical e a excelência estilística. Só os autores experimentados, só os grandes escritores sabem quando e como desprezar certos preceitos gramaticais para obter efeitos estilísticos abonadores. Por isso, o melhor compêndio ou manual de redação é obra dos grandes escritores.

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Rachel de Queiroz, naquele estilo todo seu, estilo delicioso no seu co-loquialismo espontâneo, com as suas peculiaridades de expressão e de vocabulário, oferece-nos sempre exemplos de fragmentos de frase preciosos como recursos de estilo, muitos, dignos de imitar:

Viver podia ser tão bom. Ou bom não digo total, mas podia ser sofrível. Cada dia que

amanhece. Cada noite com as suas estrelas. E os matos e os bichos e suas flores... E gente dos morros, igualmente com seus passarinhos. Porque tem muita gente de morro que,

embora na cidade, leva a sua existência natural, como índios. Morando naqueles ninhos

empoleirados nas pedras, cozinhando em trempe, apanhando água onde encontra, sem conhecer veículo que chegue lá em cima, nem luz elétrica... Vivem em' condições sub-

humanas, alega-se. E, sub-humanas e sobre-humanas, lá em cima, tão alto. E não gostam, naturalmente.

(O Cruzeiro, 28/3/64)

Grande parte do trecho é constituída por fragmentos de frase (grifados na transcrição). Examinemos, por exemplo, aquele iniciado por "porque" depois do sexto ponto. A gramática "mandaria procurar" a oração principal desse período. Mas o trecho é, quanto a esse aspecto, inanalisá-vel segundo os cânones gramaticais; não obstante, constitui forma de expressão legítima no Português moderno. É tão usual essa maneira de pontuar, deixando

num pseudo ou quase-período só orações subordinadas, cuja principal pode vir ou não vir em período precedente, tão usual, que nem mesmo o mais caturra dos puristas, o mais ferrenho adversário dos anacolutos, teria coragem de censurá-la (a menos que se tratasse de exercício de redação).

O trecho que damos abaixo, adaptado de redação de aluno, dá bem uma idéia do que é frase fragmentária.

A festa da inauguração da nova sede estava esplêndida. Gente que não acabava mais. Todos muito animados. Mas uma confusão tremenda. E um calor insuportável. De rachar. De modo que grande parte dos convivas saiu muito antes de terminar, muito antes mesmo da chegada do Governador. Porque não era possível agüentar aquele aperto, aquela confusão. E principalmente o calor.

Está aí um exemplo de linguagem coloquial entrecortada, fragmentada ao extremo. Muitos trechos postos entre pontos são pedaços de períodos, "aparas" ou "lascas" de frase. Esse estilo ajusta-se perfeitamente à língua falada: é vivaz, espontâneo, desinibido. Mas seria necessário, ou pelo menos conveniente, "reajustá-lo" ao estilo da língua escrita, podando- lhe os excessos resultantes em grande parte de uma pontuação heterodoxa.