• Nenhum resultado encontrado

Posição do verbo dicend

D ISCURSO I NDIRETO

3.5 Posição do verbo dicend

No discurso direto de moldes tradicionais, vale dizer, vigorantes até os primordios da escola realista, o verbo dicendi vem em geral no meio ou no fim da fala, e excepcionalmente antes. No fim, evidentemente, quando a fala é muito breve e/ou constitui uma unidade com entoação íntegra que lhe torne desaconselhável a ruptura em dois fragmentos com intercalação do dicendi:

— Quem morreu é rezar-lhe pela alma — atalhou com má gramática, mas com piedosa intenção, o tio padre Hilário.

(Camilo, op. cit., p. 37)

— Isto é um insulto a todos — exclamou D. José de Noronha.

(Id. ibid., p. 94)

OT H O N M . 159

Nos exemplos supracitados, as duas falas têm entoação tal, que seria inadmissível sua partição, a menos que o autor quisesse dar maior ênfase a um desses fragmentos:

— Quem morreu — atalhou... — é rezar-lhe pela alma.

— Isto — exclamou D. José de Noronha — é um insulto a todos.

caso em que a primeira parte da fala, posta em suspenso porque seguida de uma pausa longa, sobressairia no discurso como o elemento mais enfatizado.

Além dessa intercalação entre dois termos mutuamente dependentes (como sujeito e predicado, verbo e seu complemento, nome e seu adjunto) com propósito enfático, o dicendi aparece com freqüência logo após as duas ou três palavras iniciais a que na corrente da fala se segue uma pausa natural:

— Sr. Pereira, disse Cirino recostando-se a uma sólida marquesa, não se incomode comigo de maneira alguma (...)

— Pois então, retorquiu o mineiro, deite-se um pouco enquanto vou lá dentro ver as novidades (...)

(Taunay, Inocência, p. 80)

O vocativo — "Sr. Pereira" — e a partícula de valor conclusivo — "pois então" — vêm sempre seguidos de uma ligeira pausa na língua falada.

Da mesma forma se interpõe o verbo dicendi entre duas unidades independentes ou dois períodos:

— Pudera! — exclamava o meu Príncipe. — Um livro escrito por judeus, por ásperos semitas (...)

— Não está cá! — acudiu Jacinto. — Vim a Tormes expressamente por causa do avô Galião (...)

— É curioso! — exclamou Jacinto. — Parece o meu presépio...

— Isto por aqui está lindo! — gritou ele de baixo. — E o teu palácio tem um soberbo ar... (Eça, A Cid., p. 266, 247, 367, 339 e 305)

Mas, quer intercalado quer posposto, o verbo dicendi raramente ultrapassa a terceira linha da fala;59 o normal é vir na primeira, como pude-

69 No monólogo não é raro. Lembramo-nos de pelo menos um exemplo, em Cornélio Pena

(Fronteira, 157), com verbo dicendi na sétima linha.

mos verificar em alguns milhares de amostras em algumas dezenas de autores, desde o romantismo até os nossos dias.

As vezes, com o propósito de reavivar a naturalidade e espontaneidade características da língua oral, o narrador intercala curtas orações do verbo dicendi nas falas muito longas, mas raramente o faz depois de mais de uma unidade de entoação, quer dizer, depois de um grupo de força, como se diz em fonologia.

Nos diálogos filosóficos, do tipo socrático ou platônico, raramente aparece verbo de elocução, talvez por se tratar de dissertações doutrinárias que nada têm que ver com a naturalidade da língua falada. Nesse caso, a indicação do interlocutor se faz como no gênero dramático, antepon-do-se-lhe o nome à fala, tal como se pode ver em toda A

República e na quase-totalidade de O banquete, de Platão, pelo menos na versão de que

disponho.

Muitos escritores contemporâneos, principalmente a partir do modernismo, preferem antepor o verbo dicendi ou um vicário seu, o que nos parece ser mais comum. Esse vicário é, de regra — como já assinalamos —, um verbo com que se apontam sintomas de reação psicológica: o gesto, a expressão do olhar, o tom de voz, a atitude, a posição do corpo:

O meu Príncipe espreguiçara longamente os braços: — Não está claro! eu é que hei de visitar teu tio (...)

(Eça, op. cit, p. 297)

Jacinto franzia o nariz enervado:

— Mas, ao menos, estão feitos os estudos? (...)

(Id., op. cit, p. 77)

O doido espalmou a mão no ar, com o braço enfiado através da grade:

— Vá! Vá com Deus!... com Deus, não, que eu já acabei com a necessidade de Deus... (Rachel de Queiroz, João Miguel, p. 170)

Eça de Queirós foi quem, em língua portuguesa, mais explorou, com primazia, os recursos dessa técnica, principalmente em seu romance póstumo A cidade e as serras. Mas o precursor parece ter sido Flaubert, em Madame Bovary (1857), com a diferença de que, no estilista francês, o que se antepõe mais freqüentemente é mesmo um verbo de elocução, e não um vicário, veículo do conteúdo psíquico.

De qualquer forma, parece certo que a predominância da antepo-sição dos verbos dicendi data do realismo. Numa novela tipicamente romântica como Valentine (1832), de George Sand, ou na série de três narrativas que constituem Servidão e grandezas militares (1835), de Alfred

de Vigny ambas da fase do apogeu do romantismo francês, menos de 5% dos verbos

dicendi vêm antepostos à fala. Também Le rouge et le noir (1832), de Stendhal, assim como Le Colonel Chabert (1832), de Balzac, apesar de já considerados como de fase inicial do

realismo, oferecem igualmente uma percentagem mínima de anteposições: mais ou menos 5%. No entanto, Madame Bovary_ já apresenta cerca de 45% de anteposições. No nosso José de Alencar, a percentagem é aproximadamente a mesma de Valentine: 5%. Mas em Manuel Antônio de Almeida, precursor do nosso realismo, apesar de contemporâneo de Alencar ( O guarani é de 1857 e As memórias de um sargento de milícias, de 1855), encontramos já o verbo dicendi anteposto em mais de 25% dos casos. Entretanto, em Machado de Assis, mesmo nos romances e contos da fase realista, a proporção não vai além de 25% em Memórias póstumas de Brás Cubas (1881) e D. Casmurro (1900).

Essa preferência pela anteposição parece que se acentuou mais ainda a partir de 1930, e de tal forma, que em João Miguel (1932), de Rachel de Queiroz, Os Corumbas (1933), de Amando Fontes, O boqueirão (1935), de José Américo de Almeida, Música ao longe (1935), de Erico Veríssimo, e Eurídice (1947), de José Lins do Rego, a percentagem de dicendi antepostos é de cerca de 65%.