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M AIS A BST RAT O , MAIS V AGO | (denotativo ou não figurado)

4.1 Paráfrase e resumo

A paráfrase constitui exercício dos mais proveitosos, pois não só contribui para o aprimoramento do vocabulário mas também proporciona inúmeras oportunidades de reestruturação de frases, sobretudo se ela se limita — como não deve, de fato, limitar-se — a simples substituições de palavras de um texto A {explicandum, isto é, o original a ser parafraseado) por outras, sinônimas, num texto B (explicatum, i.e., a paráfrase propriamente dita).

Na Antigüidade clássica, assim como na Idade Média latina, a paráfrase consistia — segundo nos ensina Curtius —20 essencialmente em transpor em prosa um texto em verso,

ora desenvolvendo-o (amplifica-tio, amplificação) ora abreviando-o (abbreviatio, abreviação, isto é, concisão). No seu sentido usual — ou num deles — a paráfrase consiste no desenvolvimento explicativo (ou interpretativo) de um texto. E nesse sentido que se fala em "paráfrase(s) dos Evangelhos". Alguns autores, entretanto (estamos pensando em alguns autores americanos), empregam a palavra como sinônimo de condensação ou resumo; mas a maioria a entende mesmo como "desenvolvimento explicativo" de um texto, de uma expressão e, até, de outra palavra (neste último caso, a própria definição lexicográfica — que consta dos dicionários — pode ser entendida como uma paráfrase da... palavra- verbete). Entre nós (estamos agora pensando naqueles professores que ocasional ou habitualmente propõem esse tipo de exercício a seus alunos), paráfrase corresponde a uma espécie de tradução dentro da própria língua, em que se diz, de maneira mais clara, num texto B o que contém um texto A,21 sem comentários marginais, sem nada acrescentar e

sem nada omitir do que seja essencial, tudo feito com outros torneios de frase e, tanto quanto possível, com outras palavras, e de tal forma que a nova versão — que pode ser sucinta sem deixar de ser fiel — evidencie o pleno entendimento do texto original.

O português arcaico pode prestar-se a esse tipo de exercício, embora se exija do "parafraseador" o conhecimento da história da língua. Mas convém não confundir, no caso, paráfrase com simples atualização, ou modernização (gráfica, morfológica, sintática e semântica) de um texto arcaico. É atualização o que faz Leodegário de Azevedo Filho22 de

uma cantiga de amor de Joan Garcia de Guilhade (trovador do séc. XIII), da qual transcrevemos, para servir de exemplo, apenas a primeira estrofe:

20 CURTIUS, Ernest Robert. Literatura européia e Idade Média latina, p. 153 e 528.

21 Reduzida à fórmula "o texto B contém o texto A", a paráfrase constitui um dos fundamen-

tos da gramática gerativa.

22 Didática da língua portuguesa, p. 102.

Amigos, non poss'eu negar a gran coyta que d'amor ey, ca me vejo sandeu andar e con sandeçe o direy

Os olhos uerdes que eu ui me fazen or'andar assi.

Versão atualizada:

Amigos não posso negar

a grande mágoa de amor que sinto, pois me vejo como louco

Foram uns olhos verdes que vi que me fizeram ficar assim.

Quando a paráfrase se distingue por sua versão de um texto em termos mais simples para facilitar a sua compreensão, dá-se-lhe também o nome de "metáfrase" (termo empregado igualmente para designar a tradução de poesia, e, a nosso ver, com grande propriedade, pois poesia não se traduz: "recria-se" numa língua o que em outra se "criou").

O exemplo a seguir não é simples atualização de outra cantiga medieval, mas verdadeira paráfrase (ou metáfrase, se quiserem):

Como morreu quen nunca ben ouve da ren que mais amou e quen viu quando receou d'ela e foi morto por én:

Ay, mha senhor, assi moyr'eu! (Pai Soares de Taveiros)

Como aquele enamorado que morreu de desgosto por amar a quem não lhe tinha a menor afeição, o que ele tanto receava e foi causa do seu grande sofrimento, assim, minha amada, morro eu.

Como se vê, a paráfrase segue, pari passu, com o máximo de fidelidade, a ordem das ideias contidas no original mas expressas em linguagem mais clara e, na medida do possível, com vocabulário e estrutura de frase que não sejam a repetição do que está no texto parafraseado. Mais ainda: paráfrase não é condensação, e o fato de não o ser é que a distingue do resumo. O conhecidíssimo soneto de RAI M U N D O CO R R E I A:

Se a cólera que espuma, a dor que mora N'alma e destrói cada ilusão que nasce; Tudo o que punge, tudo o que devora O coração, no rosto se estampasse;

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Se se pudesse o espírito que chora Ver através da máscara da face, Quanta gente, talvez, que inveja agora Nos causa, então, piedade nos causasse.

Quanta gente que ri talvez consigo Guarda um atroz, recôndito inimigo, Como invisível chaga cancerosa!

Quanta gente que ri talvez existe, Cuja ventura única consiste Em parecer aos outros venturosa.

Se tudo quanto nos faz sofrer intimamente se refletisse na expressão do rosto, se traduzisse em gestos ou atitudes, veríamos que muitas pessoas que hoje nos causam inveja nos despertariam compaixão, tanto é certo que para elas a única felicidade consiste apenas em parecerem felizes.

4.2 Amplificação

Como figura de retórica, a amplificação (amplificatio) parece não ter desfrutado de grande prestígio entre os antigos, como não desfruta também entre os modernos (o que não significa a sua ausência em textos de todas as épocas). Uma espécie de "primo rico" da prolixidade e da redundância, ela consiste, essencialmente, em repetir, alongar, estirar uma idéia ou tema, por meio de circunlóquios, de diferentes torneios de frases, definições sinonímicas, metáforas e símiles excessivos e ociosos, além de outros adornos de linguagem que se esgotam em si mesmos. Levada a extremos na pena daqueles escritores verborrágicos (ou na boca de oradores ricos de palavras mas parcos de idéias), ela pode disfarçar-se em variadas formas de redundância (perissologia, tautologia, macrologia, pleonasmo). Opõe-se, assim, à concisão (brevitas, abbreviatio) e à sobriedade. Não obstante, podem-se encontrar — em todas as línguas, aliás — amplificações que não são puro exercício estéril de estilo: a mesma idéia é torneada, sim, mas com recursos de expressão de inegável valor estético-estilístico. Mas, seja como for, praticar amplificações pode ser útil ao "aprendiz de escritor" por levá-lo a tentativas de dizer a mesma coisa de maneiras diferentes, o que — e é isto que importa aqui neste tópico — acaba contribuindo para o enriquecimento do seu vocabulário. Os exemplos que a seguir apresentamos e comentamos (louvando ou censurando) podem dar uma idéia do que é a amplificação. A vida é o dia de hoje, A vida é o ai que mal soa, A vida é nuvem que voa. A vida é sonho tão leve, Que se desfaz como a neve E como o fumo se esvai. A vida dura um momento. Mais leve que o pensamento, A vida, leva-a o vento.

A vida é folha que cai. A vida é flor na corrente, A vida é sopro suave, A vida é estrela cadente, Voa mais leve que a ave. Nuvem que o vento nos mares, Uma após outra lançou, A vida — pena caída Da asa de ave ferida — De vale em vale impelida, A vida, o vento a levou.

(João de Deus, "A vida", Campos de flores)

Nesse belo exemplo de João de Deus, a amplificação se faz através de uma série de metáforas de "vida" e mais duas ou três comparações.

Exemplo de amplificação redundante típica (versos grifados) está na conhecida "Canção do tamoio" (in: Últimos cantos), de Gonçalves Dias:

Não chores, meu filho; Não chores, que a vida E luta renhida: Viver é lutar A vida é combate, Que os fracos abate, Que os fortes, os bravos, Só pode exaltar.

Não é outra coisa senão amplificação da idéia de "amor" o célebre soneto de Camões — "Amor é fogo que arde sem se ver", tão conhecido, que nos escusamos de aqui transcrevê- lo. Também o é a primeira estrofe de outro, que começa assim:

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, Muda-se o ser, muda-se a confiança; Todo o mundo é composto de mudanças, Tomando sempre novas qtialidades.

Muitos parágrafos são verdadeiras amplificações feitas através de exemplos, ilustrações, confrontos, analogias, metáforas e comparações; mas o pará-

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grafo se distingue da amplificação porque inclui idéias secundárias de ordem diversa da idéia-núcleo, mas a ela logicamente associadas. São amplificações os dois exemplos de parágrafos seguintes, nos quais se desenvolve a mesma idéia-núcleo de "pátria":

A pátria não é ninguém, são todos; e cada qual tem no seio dela o mesmo direito à idéia, à palavra, à associação. A pátria não é um sistema, nem uma seita, nem um monopólio, nem uma forma de governo: é o céu, o solo, o povo, a tradição, a consciência, o lar, o berço dos filhos e o túmulo dos antepassados, a comunhão da lei, da língua e da liberdade. Os que a servem são os que não invejam, os que não infamam, os que não conspiram, os que não sublevam, os que não delatam, os que não emudecem, os que não se acobardam, mas resistem, mas esforçam, mas pacificam, mas discutem, mas praticam a justiça, a admiração, o entusiasmo.

(Rui Barbosa)

A pátria não é a terra; não é o bosque, o rio, o vale, a montanha, a árvore, a bonina: são-no os atos, que esses objetos nos recordam na história da vida; é a oração ensinada a balbuciar por nossa mãe, a língua em que, pela primeira vez, ela nos disse: — Meu filho! (A. Herculano)

Na Bíblia — sobretudo nos Salmos ■— encontram-se freqüentes exemplos de amplificações feitas com o propósito de evitar interpretações equívocas, de mostrar a validade de uma declaração ou a veracidade de um fato — e a lição que dela se tira — e com a intenção de dar ênfase ao que se diz.

Senhor, ouve a minha oração, e chegue a mim o teu clamor. Não apartes o teu rosto de mim. Em que qualquer dia que me achar atribulado, inclina para mim o teu ouvido. Em que qualquer dia em que te invocar, ouve-me prontamente.

(Salmo [Davi], 101, 2-3)

Às vezes, a amplificação degenera em pura tautologia, pecado em que incorrem mesmo os melhores autores. O próprio Rui Barbosa — apesar de sua riqueza de idéias e dos seus incomensuráveis recursos de expressão — ou justamente por isso — dá mostras freqüentes de deliciar-se na prática de amplificações que raiam pela perissologia:

O sertão não conhece o mar. O mar não conhece o sertão. Não se tocam. Não se vêem. Não se buscam.

Política e politicalha não se confundem, não se parecem, não se relacionam uma com a outra. Antes se negam, se excluem, se repulsam mutuamente.

E uma tentação a que devemos resistir, essa de tomar a mesma idéia e repeti-la, repeti-la, apenas torneada e revestida de roupagem diferente, pelo simples deleite de manipular palavras que nada acrescentam ao que tenha sido dito antes, nem mesmo ênfase. Reduzida à condição de mero encadeamento emplumado de palavras e expressões sinonímicas, a amplificação só pode mesmo servir ao "aprendiz de escritor" como exercício de vocabulário e de reestruturação de frases.2