• Nenhum resultado encontrado

I NTERROGAÇÃO I NDIRET A

(discurso indireto)

...o simpático informante (...) per-guntou-me por que não se ouvia a Se-1 cretaria de Propaganda, em Roma.

(Perguntou) quem acreditaria em sua consciência.

A esses verbos que, no discurso direto, indicam o interlocutor e, no indireto, constituem o núcleo do predicado da oração principal, chamam os gramáticos verbos "de elocução",

dicendi ou declarandi, e, a muitos dos seus vicários, sentiendi.64

No discurso direto, o narrador "emerge do quadro da história visualizando e representando o que aconteceu no passado, como se o tivesse di-

64 Dicendi, declarandi e sentiendi sao genitivos do gerundio dos verbos dicere, declarare e

sen-tire, respectivamente, e significam: de dizei; de declarar, de sentir.

149

ante de si". Por isso é "amplamente utilizado pelos romancistas modernos, convictos da vantagem da evocação integral dos fatos narrados sob a forma de quadros concretos, que se vão sucedendo, em contraste com o método de narração, abstraída de um momento e um lugar, definidos, em que se compraziam os primeiros novelistas do séc. XVffl".9 O

discurso direto permite melhor caracterização das personagens, com reproduzir-lhes, de maneira mais viva, os matizes da linguagem afetiva, as peculiaridades de expressão (gíria, modismos fraseológicos, etc.). No discurso indireto, o narrador incorpora na sua linguagem a fala das personagens, transmitindo-nos apenas a essência do pensamento a elas atribuído.

3.2 Verbos dicendi ou de elocução

Os verbos dicendi, cuja principal função é indicar o interlocutor que está com a palavra, pertencem, gi'osso modo, a nove áreas semânticas, cada uma das quais inclui varios de sentido geral e muitos de sentido específico:

a) de dizer (afirmar, declarar); b) de perguntar (indagar, interrogar); c) de responder (retrucar, replicar); d) de contestar (negar, objetar); e) de concordar (assentir, anuir); f) de exclamar (gritar, bradar); g) de pedir (solicitar, rogar);

h) de exortar (animar, aconselhar); i) de ordenar (mandar, determinar).

Esses são os mais comuns, de sentido geral; mas muitos autores, especialmente na literatura do nosso século, costumam servir-se de outros, mais específicos, mais

caracterizadores da fala.10 Chegam mesmo, os mais imagi

nativos, a empregar verbos que nenhuma relação têm com a idéia de elocução, o que, do ponto de vista da sintaxe, poderia ser considerado como inadmissível pois os dicendi deveriam ser, teoricamente pelo menos, transitivos ou admitir transitividade. Mas a língua não é rigorosamente lógica, principalmente a falada, cuja sintaxe é ainda menos rígida. Nem precisa sê-lo para tornar-se expressiva; pelo contrário, quanto mais expressiva, quanto mais viva, quanto mais espontânea, tanto menos logicamente ordenada. A carga de expressividade, os matizes afetivos tão característicos na língua oral não teriam veículo adequado, se os ficcionistas se limitassem, por uma questão de rigidez lógico-sintática, aos legítimos verbos dicendi.

E verdade que às vezes a "heresia lógico-sintática" em nada contribui para a expressividade dos diálogos, como é o caso, para citar apenas um exemplo, do emprego do verbo "fazer" como se fosse vicário de qualquer dicendi (ver 4.0 "Disc. ind. livre"): 'Já era tempo, fez Carlos..." (Lima Barreto, Triste fim..., p. 274), certamente por influência do francês.

Outras vezes, a situação que se cria chega a ser estranha, quando não absurda, como é o caso daquele autor que em vez de "disse Fulano" empregou "mergulhou Fulano seu biscoitinho no chá" (exemplo que cito de segunda mão e de memória, sem que me seja possível no momento identificar a fonte). Marouzeau,68 comentando o abuso no emprego de

variantes dos verbos dicendi, cita um exemplo de Alphonse Allais: "— Quel système? nous

interrompîmes-nous de boire." Clarice Lispector usa alguns estranhos: "— A tortura de um

homem forte é maior do que a de um doente — experimentara fazê-lo falar." (Perto do

coração..., p. 102); "— Mas não se assuste, a infelicidade nada tem a ver com a maldade, rira Joana." (Id., p. 130). C. Heitor Cony, que, aliás, usa poucos verbos dicendi, às vezes se

serve de alguns insólitos: "— Hotel Inglês — atendem" (em vez de respondem ao telefone) "— Hotel Inglês? — Cláudio decifi-a a charada." Com freqüência emprega apenas um auxiliar: "Cláudio senta-se no meio da cama, abaixa a cabeça e começa (i.e., começa a dizer): — Um anão era o Sol, outro o Vento" (Tijolo de segurança, p. 101 e 189). B. Lopes

10Eis alguns deles em lista caótica: sussurrar, murmurar, balbuciar, ciciar, cochichar, segredar, explicar, esclarecer, sugerir, soluçar, comentar, tartamudear,

propor, convidar, cumprimentar, repetir, estranhar, insisir, prosseguir, continuar, ajuntar, acrescentar, arriscar, consentir, dissentir, aprovar, acudir, intervir, repetir, rosnar, berrar, vociferar, inquirir, protestar, contrapor, desculpar, justificar(-se), largar (M. Rebelo, Mar., p. 168), tornar, concluir, escusar-se, ameaçar, atalhar, cortar (J. Amado, Pastores..., p. 61), bramir, mentir (E. Ver.), respirar (M. de A., Mem. póst, p. 218), suspirar (Id., D. Casm., p. 277), rir ("-rira Joana", C. Lispec-tor, Perto do cor, p. 130), lembrar... A língua portuguesa é riquíssima em verbos de elocução, ou vicários deles.

65 JESPERSEN, Otto. The philosophy of grammar, p. 258, ap.

Câmara Jr., M. "Estilo indireto li-

vre em Machado de Assis", in: MISCELÂNEA de estudos em honra de Antenor Nascentes.

serviu-se de um dicendi metafórico bastante expressivo: "Sim — violinara..." (em Plumário, p. 47).

Mas há uma classe bastante numerosa de verbos de elocução, empregados com freqüência a partir do realismo, que não são propriamente "de dizer" mas "de sentir", e que, por analogia, podem ser chamados sentiendi: gemer, suspirar lamentar (-se), queixar-se, explodir, encavacar, e outros, que expressam estado de espírito, reação psicológica de personagem, emoções, enfim:

— Qual! gemia ele, desamparam-me (M. de A., Mem. póst., p. 319). Damasceno ouviu calado, abanou outra vez a cabeça, e suspirou:

— Mas viessem! (Id. ibid., p. 330).

Précis de stylistique française, p. 158.

OT H O N M . GA R C I A ♦ 151

— O coitadinho tem andado tão aborrecido! — lamentase ela (E. Veríssimo, op.

cit., p. 129).

Mas João de Deus, vendo que Vasco não lhe dá atenção, explode:

Você pensa, seu Vasco, que estou disposto a aturar suas malcriações (sic)?

(Id. ibid., p. 155).

... o bom Silvério encavacou:

— Ah! V Exãs riem?... (Eça, A Cid., p. 290).

Esses e seus similares constituem uma espécie de vicários dos dicen-di, com função predominantemente caracterizadora de atitudes, de gestos ou qualquer manifestação de conteúdo psíquico, e quando o narrador sente que não admitem de forma alguma a idéia de transitividade, eles vêm, de regra, antepostos à fala, como no caso de "encavacou" e "explode". Do ponto de vista lógico-sintático, esses verbos sentiendi presumem a existência de um legítimo dicendi oculto: "...o bom Silvério encavacou, dizendo", ou "explode, dizendo". Mas tal só é possível quando antepostos. Pospostos, é inadmissível, a menos que se alterne a forma dos verbos, pondo-se o sentiendi no gerúndio: "— O coitadinho tem andado aborrecido! — disse ela lamentándose (seria insólito "lamenta-se ela dizendo").

Outra função dos dicendi — a principal, já anotamos, é a de indicar o interlocutor que está com a palavra — é permitir a adjunção de orações adverbiais (quase sempre reduzidas de gerúndio) ou expressões de valor adverbial com que o narrador sublinha a fala das personagens, anotando-lhes a reação física ou psíquica:

(M. de A., D. Casm., p. 373)

Está bom, acabou, disse eu finalmente.

(Id. ibid., p. 161)

O narrador hábil, que seja observador e analista da alma humana, saberá tirar proveito dessas oportunidades que lhe oferecem os verbos dicendi e sentiendi, juntando-lhes orações ou expressões breves e concisas com que vai pouco a pouco retratando o caráter de suas personagens. Mas convém não sobrecarregar todas as falas com essas adjunções, que não só cansam ou enfadam o leitor mas também prejudicam a espontaneidade dos diálogos.

3.3 Omissão dos verbos dicendi

Nem sempre os verbos dicendi estão expressos. É norma generalizada, por exemplo, omiti- los nas falas curtas entre apenas dois interlocuto

res, bastando, para orientar o leitor, a abertura de parágrafo precedido por travessão, como é de praxe na maioria das línguas modernas, com exceção do inglês, que usa aspas antes e depois de cada fala ou de cada fragmento de fala. O seguinte exemplo, de José de Alencar, é típico dessa norma; são apenas dois os interlocutores, e, com exceção da inicial, acompanhada do "perguntou", todas as falas vêm sem dicendi:

— Quantos são? perguntou o homem que chegara. — Vinte ao todo. — Restam-nos... — Dezenove. — Bem. A senha? — Prata. — F, o fogo? — Pronto. — Aonde?

— Nos quatro cantos. — Quantos sobram? — Dois apenas.

{Guar., p. 180)

A brevidade das falas e a tensão nervosa das duas personagens tornariam importuna a inclusão desses verbos: — imagine-se a monotonia da série "perguntou", "respondeu", "perguntou", "respondeu", repetição absolutamente desnecessária por se tratar de apenas

dois interlocutores, cujo estado de espírito o narrador se "julga" incapaz de retratar, tão rápidas são as palavras que trocam na expectativa de um acontecimento dramático.

Nas falas longas, os verbos dicendi usuais, i.e., os de sentido mais geral, aparecem quando o narrador acha conveniente sublinhar o estado emotivo das personagens, ou então quando lhe parece necessário ajudar o leitor a identificar o interlocutor.

Portanto, a inclusão pura e simples de apenas verbos dicendi de sentido geral, do tipo "disse ele", "perguntou ele", desacompanhados de orações ou adjuntos adverbiais, só se justifica quando tem propósito esclarecedor. Fora disso, o diálogo torna-se enfadonho.

Alguns autores modernos chegam ao extremo de omiti-los quase sistematicamente, como Carlos H. Cony: nas 237 páginas de Tijolo de segurança eles não vão, talvez, a três dezenas, quase todos insólitos. Outros contemporâneos, como Ciro dos Anjos, em Abdias, ou Érico Veríssimo, nos romances da primeira fase, deles se servem sem parcimônia. Entre os mais

153

recuados do nosso tempo, Machado de Assis é mais parcimonioso do que José de Alencar no que respeita aos de sentido geral, e mais fértil quanto aos de sentido específico. Sob esse aspecto, Machado e Eça se aproximam bastante.

3.4 Os verbos e os pronomes nos discursos direto e indireto

I — Verbos

Salvo os casos sujeitos a variações decorrentes de torneios estilísticos da frase, em contextos singulares, a correspondência entre os tempos e os modos verbais nos discursos direto e indireto apresenta regularidade suficiente para permitir uma tentativa de sistematização com propósitos didáticos. E isso que se procura fazer nos tópicos seguintes. Quando o verbo da fala está no presente do indicativo e o da oração justaposta, no pretérito perfeito, o primeiro vai para o pretérito imperfeito do mesmo modo, mas o segundo não sofre alteração: