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O “redemunho” do Nome-do-Pai

Retornando ao leitmotiv “... O diabo na rua, no meio do redemunho...”, já fizemos sobressair a percepção de Utéza (1994) do eco que nos remete do “redemunho” ao demônio. Acontece, porém, que, por esta percepção, não podemos deixar de notar um outro aspecto: esta frase nos depara com o demônio e com o diabo e o que é preciso atentar nisto é que os dois não são a mesma coisa.

O termo Demônio, originário do grego, (daimónion), esclarece-nos Brandão (1993, p.187) refere-se “a deus, divindade, deus de categoria inferior, destino, como por vezes aparece em Homero. [...] Em princípio, portanto, demônio não tem conotação alguma pejorativa”.

Por outro lado, o Diabo, etimologicamente também vindo do grego

Diaballein, significa, conforme Utéza (1994, p.57), a divisão e implica um movimento

que estabeleceria uma diferenciação numa massa amorfa, condensada, o que vai conduzir Utéza a associá-lo ao redemoinho: “mostrando-se no centro do Turbilhão, na origem das mutações, a besta multiforme aparece, pois, também como o animador infatigável daquilo que, sem ele, seria apenas uma massa amorfa”.

Além disto, mostra-se oportuno lembrar que, apesar de misturados, a aproximação entre Deus e o Demônio foi modificada, mas apenas posteriormente, quando as concepções sobre o demônio passaram a associá-lo às divindades inferiores ou subordinadas (ABBAGNANO,2000). Segundo Brandão (1993, p.187), o demônio, na acepção de Satanás, “não é documentado no Antigo Testamento. Ao que parece, com a acepção que hodiernamente se lhe atribui, o ‘demônio’ surgiu a partir dos

Septuaginta16 (Séc. III e II a.C.), generalizando-se depois no Novo Testamento”.

16

Septuaginta é denominação dada ao grupo 72 rabinos reunidos por Ptolomeu II que realizaram em Alexandria nos séculos II e III a tradução grega da Bíblia Hebraica (PORGE: 1998, p.172).

Feitas estas considerações, observamos que o Grande Sertão se inicia pelo relato de um assassinato: “[...] determinaram – era o demo. Povo prascóvio. Mataram”. Este assassinato sucede à determinação de que se tratava do Demo, poderia, portanto, também se tratar de Deus, se consideramos a afinidade primordial entre Deus e o Demo. Desta forma, temos, logo nas primeiras linhas desta narrativa, o avesso do relato do assassinato de Deus, do assassinato do Pai.

Ora, essas mesmas observações nos servem para abordar a questão em torno do pai pelo viés da psicanálise. No texto de 1913, intitulado Totem e tabu, Freud se utiliza da noção de complexo de Édipo para forjar o mito do pai da horda primitiva cuja característica era a de poder gozar de todas as mulheres. Em decorrência desta prerrogativa paterna, os filhos teriam se insurgido e assassinado o pai. No lugar deste, Freud então argumenta que teria surgido Deus. Este seria, portanto, um substituto nostálgico do pai assassinado e um recurso ao qual se recorreria na tentativa de expiação da culpa pelo crime cometido.

Esta construção freudiana foi, no entanto, posteriormente criticada por Lacan: para ele, no mito de Totem e tabu, Freud restringe o pai à potência do falo e isto não exaure o que se pode dizer sobre o pai. É assim, que já no primeiro seminário realizado por Lacan em sua própria residência no ano de 1951 - um seminário dedicado ao estudo do caso relatado por Freud intitulado como o Homem dos lobos – ele irá propor uma nova perspectiva ao entendimento do problema em torno do pai.

Segundo Porge (1998, p.26), que dispõe das notas inéditas deste seminário de 1951, é nele que aparece pela primeira vez o termo Nome-do-Pai. Em relação a este, Porge comenta inclusive que “Lacan não explica a introdução deste novo termo no campo analítico. A única indicação que nos dá é a de sua proveniência, a religião, e ainda por cima não precisa qual”. Além disto, ainda com Porge, na interpretação do caso do Homem dos lobos, Lacan entende o termo Nome-do-Pai como um produto de degradação do pai simbólico: “Ele [o homem dos lobos] nunca teve pai que simbolize e encarne o pai, deu-se-lhe o Nome-do-Pai em lugar disso”.

Portanto, parece-nos essencial tecer uma breve apreciação dos desdobramentos desta noção dentro do corpo teórico modelado por Lacan.

Neste, a noção de Nome-do-Pai ganha um destaque especial: primeiro, trata- se de um recurso teórico criado por Lacan. Isto implica em reconhecermos, junto com Roudinesco e Plon (1998, p.541), que estamos diante de um conceito distinto dos demais por não ter sido “retirado de um corpus” teórico pré-existente.

Segundo, apoiando-nos no minucioso estudo realizado por Porge (1998) sobre a origem, incidências e repercussões deste termo - não apenas no plano teórico, mas inclusive pessoal e institucional -, vamos constatar sua relevância ao longo de toda a elaboração lacaniana.

Como já expusemos, a noção de Nome-do-Pai aparece pela primeira vez em 1951, no seminário sobre o Homem dos lobos. No ano seguinte, em um seminário realizado ainda em sua residência, Lacan recorre às categorias de real, simbólico e imaginário para estudar o caso do Homem dos ratos. Segundo Julien (1999, p.33), Lacan inventou os três adjetivos, real, simbólico e imaginário, para promover a passagem do Édipo freudiano “para algo de estrutural ao invés de cultural”. Desta forma, inicialmente, estes três adjetivos “qualificavam o pai: o pai simbólico, o pai imaginário e o pai real”. Mais à frente, retornaremos a estas categorias.

Por hora, gostaríamos de ressaltar que, no seminário de 1951, o Nome-do- Pai é, segundo Porge, mencionado de forma muito passageira. Este autor conjectura, então, sobre a existência de um hiato inicial entre o Nome-do-Pai e os registros real, simbólico e imaginário que, ao mesmo tempo, indica a íntima ligação tecida entre estes no decorrer das ulteriores elaborações de Lacan. Porge demonstra inclusive a alternância de aparição entre o Nome-do-Pai e o registro ternário nos seminários de Lacan que resultará num entrelaçamento a uma outra noção introduzida por ele que é a de sujeito suposto saber.

Terceiro, seguindo as indicações de Porge (1998, p.46), mostra-se imprescindível frisar que pela concepção do Nome-do-Pai, Lacan realizou uma “inversão metodológica” no que diz respeito à concepção freudiana do mito de Totem e

tabu: enquanto para Freud, Deus seria um substituto nostálgico do pai assassinado, para

Lacan, o que está em primeiro lugar é a questão de Deus. A partir da primazia desta questão, Lacan realizou o esforço de apresentar cientificamente o Nome-do-Pai. Com isto, ele visava substituir a teoria do complexo de Édipo segundo Freud, pela noção de Nome-do-Pai que, segundo Porge (1998, p.41), “contém o germe de uma desconstrução da teoria de Freud” sobre o Édipo. Assim é que, no seminário transcorrido entre os anos de 1956 e 1957, intitulado A relação de objeto, Lacan (1995, p.215) justifica que Freud teve de forjar o mito de Totem e tabu, “um mito moderno [...], para explicar o que permanecia em hiância em sua doutrina, a saber – Onde está o pai?”.

Por último, temos de ressaltar que esta percepção de Lacan nos interessa sobremaneira, pois, neste seminário de 1956, ele deixa evidente a lacuna teórica que é,

ao mesmo tempo, o ponto de orientação da pesquisa freudiana: “- toda a interrogação freudiana se resume no seguinte: O que é ser um pai? Este foi para ele [Freud] o problema central, o ponto fecundo a partir do qual toda sua pesquisa realmente se orientou” (Lacan, 1995, p.209).

Daí parece-nos que, quando nos voltamos para o Grande Sertão, também encontramos um narrador que tenta perscrutar os segredos de Deus, do Demo e, por conseguinte, do Nome-do-Pai. A nosso ver, ele parte, tal como Freud e Lacan, da incerteza sobre o pai, “pater incertus”, de forma que sua fala entretece certo discurso sobre um lugar incerto: o Sertão17.