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Um Menino-Moço e o amor vindo “de um-que-não-existe”

Deixemos as margens do de-Janeiro. Ainda mais que depois deste encontro de Riobaldo com o Menino, a vida daquele e, por conseguinte seu relato, “mudou para uma segunda parte” (GSV, p.87).

Muitos eventos marcam esta mudança. Citamos alguns: A mãe de Riobaldo - que se chamava apenas “Bigrí” (GSV, p.87, grifo do autor) -, morreu. Desta morte Riobaldo herdou umas “miserinhas – miséria quase inocente” (GSV, p.87). Como ele não soubesse quem era seu pai e não conhecesse nenhum outro parente, um dia, um “vizinho caridoso” (GSV, p.87) o levou “para a Fazenda de São Gregório” (GSV, p.87). Esta fazenda era de seu padrinho Selorico Mendes, que o recebeu com “grandes bondades” (GSV, p.87) dizendo-lhe: “De não ter conhecido você, estes anos todos, purgo arrependimentos...” (GSV, p.87).

Sob sua tutela, Riobaldo freqüentou escola, tornou-se “rapazinho” (GSV, p.89), urdiu os primeiros namoricos com “meninas por nomes de flores” (GSV, p.89) e aprendeu com Rosa’uarda, “moça feita” (GSV, p.89) mais velha que ele, “as primeiras bandalheiras, e as completas” (GSV, p.90) que juntos fizeram com “anseio e deleite [...] no fundo do quintal” (GSV, p.90).

Riobaldo “não gostava [...], nem desgostava” (GSV, p.90) de Selorico Mendes. Porém, como “não soubesse [se] acostumar” (GSV, p.90) com ele, um dia fugiu da fazenda.

Todavia, antes disto, ainda na São Gregório, “um grande fato se deu” (GSV, p.90): durante uma madrugada chegaram uns homens que “não eram caçadores” (GSV, p.90), mas jagunços. Vinham pedir a Selorico Mendes “recanto oculto” (GSV, p.91) para suas tropas. Entre eles havia um que “[s]ó de ouvir o nome, [Riobaldo] parou, na maior suspensão” (GSV, p.91). Tratava-se de Joca Ramiro, “chefe dos jagunços, o principal” (GSV, p.91). Dias depois, “[s]e foram” (GSV, p.94). Com a partida do bando, Riobaldo achou que “tudo tinha perdido a graça, o de se ver” (GSV, p.94), mas guardou “no giro da memória [...] aquela madrugada dobrada inteira” (GSV, p.95).

Num outro dia, alguém disse a Riobaldo “que não era à-toa que [suas] feições copiavam retrato de Selorico Mendes” (GSV, p.95). Ao ouvir isto, e apesar “de algum encoberto jeito” (GSV, p.95) ele já saber que Selorico Mendes era seu pai, Riobaldo achou que “o mundo todo [lhe] produzia desonra” (GSV, p.95), e fugiu da São Gregório. Tornou-se jagunço (GSV. 90).

Conheceu o bando de Zé Bebelo. Aí chegou como professor pensando que iria dar aulas “para os filhos dum fazendeiro” (GSV, p.100). Engano. Era ao próprio Zé Bebelo que ele teria de ajudar a “botar na cabeça o que os livros dão e não” (GSV, p.100). Assim ele desempenhou esta tarefa tal como Lacan (1997, p.212) nos faz notar: “o professor se define como aquele que ensina sobre os ensinamentos: ele recorta nos

ensinamentos”. Deste contexto, vivendo junto com o bando de Zé Bebelo - que por esse tempo lutava contra o bando de Joca Ramiro -, Riobaldo mais uma vez fugiu. Foi parar na casa de um tal “Manoel Inácio, Malinácio dito” (GSV, p.106).

Nesta casa se deu um encontro que muito nos interessa: chegaram três homens, três tropeiros. Depois destes, mais um. Ao avistar este último, Riobaldo “agüentou aquele nos [...] olhos, e [recebeu] um estremecer, um susto desfechado. Mas era um susto de coração alto, parecia a maior alegria” (GSV, p.107). De imediato Riobaldo conheceu:

O moço, tão variado e vistoso, era, pois sabe o senhor quem, mas quem, mesmo? Era o Menino! O Menino, senhor sim, aquele do porto do de-Janeiro, [...], o que atravessou o rio comigo, numa bamba canoa, toda a vida. E ele se chegou, eu do banco me levantei. Os olhos verdes, semelhantes grandes, o lembrável das compridas pestanas, a boca melhor bonita, o nariz fino, afiladinho. Arvoramento desses, a gente estatela e não entende [...]. Eu queria ir para ele, para abraço, mas minhas coragens não deram. Porque ele faltou com o passo, num rejeito, de acanhamento. Mas me reconheceu, visual. Os olhos nossos donos de nós dois. [...] O Menino me deu a mão [...]. E ele como sorriu. Digo ao senhor: até hoje para mim está sorrindo. Digo. Ele se chamava o Reinaldo (GSV, p.107-108).

Então era isto: o Menino do de-Janeiro se chamava Reinaldo. Este, agora, era um “Menino-Moço” (GSV, p.109). Sua aparição teve o poder de reacender o amor e os dilemas de Riobaldo: “o amor assim pode vir do demo? [...] Pode vir de um-que-não-existe?” (GSV: p.108).

Assim, refletindo sobre as procedências do amor, Riobaldo teceu comparações entre algumas mulheres que passaram por sua vida: uma, Otacília, aquela que depois veio a ser sua esposa, tinha “estilo dela, era toda exata, cinturas de belezas” (GSV, p.109). Outra, a mocinha Nhorinhá, uma prostituta por quem Riobaldo não supriu “outro amor, nenhum” (GSV, p.109). Feitos estes breves esclarecimentos sobre a posição de Riobaldo frente a seus objetos de amor, podemos prosseguir dizendo que, apesar dos dilemas, o fato é que Riobaldo deixou seu bando de origem e seguiu o de Reinaldo. Na companhia deste, as surpresas: o jagunço Reinaldo apreciava as belezas e para ele “o passarim mais bonito e engraçadinho” era “o que se chama o manuelzinho-da-crôa” que anda “sempre em casal” (GSV p.111).

Ora, comentário como este, “botava surpresa” (GSV, p.111) e não era para menos. Saído da boca de uma menina-moça estaria bem de acordo, porém, dito por um “Menino-Moço”, composição substantiva inusual referida a alguém que, além do mais, era jagunço, sinalizava um inaudito. Tanto é assim que Riobaldo não entende, porém, aprecia e sente seu amor redobrar:

E a maciez da voz, o bem-querer sem propósito, o caprichado ser – e tudo num homem-d’armas, brabo bem jagunço – eu não entendia! Dum outro, que eu ouvisse, eu pensava: frouxo, está aqui um que empulha e não culha. Mas, do Reinaldo, não. O que houve, foi um contente meu maior, de escutar aquelas palavras. Achando que eu podia gostar mais dele (GSV, p.111-112).

Aqui estamos diante de um paradoxo, pois se acontece de, por um lado, Reinaldo culhar, quer dizer, “ter coragem, ser macho, ter culhões” (MARTINS, 2001, p.143), por outro, não é bem certo afirmarmos que ele não empulhe, que não haja aí algo da ordem de uma tapeação.

E realmente há: ao final do romance, ficamos sabendo que Reinaldo, também chamado Diadorim, na verdade era uma mulher e tinha como nome de batismo “Maria

Deodorina da Fé Bettancourt Marins” (GSV, p.458).

Perplexidade: é isso que o Grande Sertão nos faz vivenciar! Como pode esta Maria Deodorina ter sido, quando menina, um “Menino” e, quando moça, um “Menino- Moço”? O que poderia justificar tal trajetória? Sobre este Menino-Moço sabemos ainda que, além de apreciar “passarim”, ele também apreciava um homem tanto que pode afirmar: “Riobaldo, você é valente... Você é um homem pelo homem...” (GSV, p.112).

Em contrapartida, ser “um homem pelo homem”, quer dizer, ser algo que equivale a si próprio, ser, portanto, capaz de manter certa identidade, é tudo o que Reinaldo não era. Mas, apesar disto, ele almejava uma equiparação a ponto de dizer: “Riobaldo... Reinaldo... [...] Dão par, os nomes de nós dois” (GSV, p.112). Assim, o emparelhamento que Reinaldo consegue realizar é o da poesia, fonte do par possível das rimas, dos simulacros do “um”, do amor.

Acreditamos que neste par formado por Reinaldo e Riobaldo, o que se mostra muito bem ilustrado é o sucesso e, ao mesmo tempo, o fracasso das palavras em realizar o objetivo do amor que é o de unir dois num só. Desta forma é que Riobaldo concorda que os nomes dos dois “dão par”, apesar de, ao mesmo tempo, perceber o malogro precipitado pela rima: “A de dar, palavras essas que se repartiram: para mim, pincho no que já estava, de alegria; para ele, um vice-versa de tristeza. Que por que? Assim eu ainda não sabia” (GSV, p.112).

Arriscamos dizer que uma das coisas que Riobaldo ainda não sabia é que o amor vem realmente do “um-que-não-existe”, pois no “um” do amor, apesar da unidade que ele promove no sentido de não comportar a falta, ainda assim esta se presentifica.

Já no que diz respeito a Reinaldo, arriscamos dizer que seu “vice-versa de tristeza” decorria justamente de certo saber que ele detinha sobre o vice-versa do amor, no qual, pelo avesso do sentimento de completude, o amante se depara com sua própria falta.

Se, em relação a Reinaldo, argumentamos que, de alguma maneira, ele detinha este saber sobre o amor, é porque Reinaldo era, assim como Riobaldo, um Menino-Moço, mas, para além deste, era também algo mais. Reinaldo era uma mulher.

Sendo assim, é evidente que o homem e a mulher mantêm, cada um, suas peculiaridades em relação ao amor, porém, sem adentrarmos o que consistiria a diferença entre o amor masculino e o amor feminino, uma outra questão se impõe: afinal, o que é ser uma mulher?

Demonstrar certas sensibilidades, apresentar “a maciez da voz, o bem-querer sem propósito, o caprichado ser” (GSV, p.111) como observou Riobaldo, poderiam ter sido interpretadas como indicações precisas de que Reinaldo era mulher?

Por outro lado, se ele, Reinaldo - conforme os costumes dos que nascem com uma anatomia feminina -, ao invés de vestir-se de jagunço, fosse como Otacília que em suas “cinturas de belezas” usava saias, perfumes e adereços; ou como Nhorinha que não supria amor, mas inspirava desejo; isto seria suficiente para dizer o que é ser uma mulher?

Até este ponto, temos seguido quase que, exclusivamente, as indicações do

Grande Sertão e é bem certo que, fundamentalmente, continuaremos a fazê-lo. Todavia, para

respondermos às interrogações aqui levantadas, doravante se mostra indispensável recorrermos mais à miúde ao auxílio de nossos outros dois batedores: Freud e Lacan.

Aprendemos com Freud que as posições masculina e feminina podem ser freqüentadas por ambos os sexos, isto independendo da anatomia. O fato de Maria Deodorina se portar como um “homem-d’armas”, ocupar, portanto, uma posição masculina - assim como o fazem hoje em dia tantas mulheres - não torna patente se ela é ou não uma mulher. Tampouco as manifestações do feminino, seu vestuário, habilidades etc. são capazes de evidenciar o que é uma mulher. Tanto é assim que em meio às guerras do Grande Sertão, Reinaldo, um “brabo bem jagunço”, num momento de baixar a guarda, mostrou a Riobaldo o conteúdo inesperado de sua “capanga”, palavra que nos remete tanto a uma “pequena bolsa”, quanto à “guarda-costas, homem de confiança, jagunço”.

[...] rendidos na vigiação, o Reinaldo e eu não estávamos com sono, ele foi buscar uma capanga bonita que tinha, com lavores e três botõezinhos de abotoar. O que nela guardava era tesoura, tesourinha, pente, espelho, sabão verde, pincel e navalha (GSV, p.113).

Sem nos determos em maiores comentários quanto ao luxo e à futilidade de tais objetos para um guerreiro, acrescentemos apenas que, não satisfeito em mostrar, Reinaldo deu sua pequena bolsa a Riobaldo: “O Reinaldo mesmo, no mais tempo, comprou de alguém uma outra navalha e pincel, me deu, naquela dita capanga. Às vezes, eu tinha vergonha de que me vissem com peça bordada e historienta; mas guardei aquilo com muita estima” (GSV, p.113).

Portanto Reinaldo dá a Riobaldo um objeto bastante sugestivo: presenteia-lhe com uma peça que sinaliza o lugar freqüentado pelo feminino. Além de ser uma peça bordada é, além do mais, “historienta”, comportando, por isso, muitas exigências e dificuldades. Podemos dizer que uma destas dificuldades consiste no fato de que não importam as roupas, os pequenos bens, as atividades, as maneiras, preferências e até mesmo os nomes – Menino, Reinaldo, Diadorim, Maria Deodorina... -, para definirmos o que procura se mostrar, ou tenta se oferecer, a Riobaldo.

Afirmamos isto porque nos surge como hipótese que Diadorim, apesar de viver como jagunço, como um homem, procurou caminhar em direção à feminilidade. A propósito do jagunço Diadorim, assim como a propósito de qualquer mulher, os índices de feminilidade acima enumerados não se mostram suficientes para responder o que é uma mulher. Mas por que isto acontece?