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Para além do traje, o ultraje de Diadorim

Mesmo trajando-se como homem, acreditamos que a travessia realizada por Diadorim foi um ultraje que buscava o sentido de alguma feminilidade. Afirmamos isto porque lembramos, com Lacan (1997, p.340) que “o ultraje, é passar além de, ultrapassar o direito que se tem de baratear o que ocorre, na maior desgraça”.

Mesmo sem poder desfrutar das graças femininas, e depois, mesmo sob o peso da desgraça do assassinato do pai, Diadorim tentou fazer a travessia, a passagem, rumo à feminilidade. É o quê pensamos.

Todavia, é preciso reconhecer que, ao final, ele não barateou na desgraça. Ultrajou. Assim como Édipo, Diadorim tentou percorrer uma vereda que o afastasse, ou melhor, o liberasse de seus fados, do Deus destino. Fez travessia. Mas, “[t]ravessia, Deus no meio” (GSV, p.235) de forma que assim o circuito, paradoxalmente, sofreu suas torções.

Apesar disto, sustentamos a idéia de que Diadorim tentou se desviar das veredas que impediam seu acesso à feminilidade. Por isso, concordamos com Utéza (1994, p.93) quando este observa que “Diadorim tem consciência de que suas motivações evoluem. [...] A idéia fixa da vingança, [evoluiu] para uma nova solução em que o amor que ele tem por Riobaldo ocupa um lugar primordial [...]”.

Todavia, divergimos de Utéza quanto à indicação de que o amor de Diadorim por Riobaldo tenha evoluído a partir da idéia fixa de vingança pela morte de Joca Ramiro. A nosso ver, antes mesmo da morte do pai, Diadorim já havia se voltado para Riobaldo, já buscava uma nova solução, já tentava percorrer novas veredas.

Consideramos que Diadorim elegera Riobaldo como um substituto do amor paterno muito antes da morte do pai, mas, para comprovar esta argumentação, teremos novamente de rodopiar em volta dos eventos centrais do Grande Sertão.

Ao final do julgamento de Zé Bebelo - portanto antes do assassinato de Joca Ramiro - quase todos festejaram o veredicto. Dissemos quase todos porque sabemos que para Hermógenes, Ricardão e alguns outros, aquele julgamento fora “...Mamãezada...”

(GSV, p.215). Mas, como dizíamos para todo o restante dos jagunços, a ocasião era de festa. Assim, estavam “desagasalhados na alegria, feito meninos” (GSV, p.215). Entre estes, Riobaldo e Diadorim.

Aconteceu então que, enquanto Riobaldo relembrava para si e para Diadorim as palavras de Zé Bebelo ao afirmar “que agora era “o mundo à revelia...”” (GSV, p.215, grifos do autor), Diadorim

[a]o dar, que falou: - “Riobaldo, você prezava de ir viver n’Os-Porcos, que lá é bonito sempre – com as estrelas tão reluzidas?...” Dei que sim. Como ia querer dizer diferente: pois lá n’Os-Porcos não era a terra de Diadorim própria, lugar dele de crescimento? Mas mesmo enquanto que essas palavras, eu pensasse que Diadorim podia ter me respondido, assim nestas fações: - “...Mundo à revelia? Mas, Riobaldo, desse jeito mesmo é que o mundo sempre esteve...” Toleima, sei, bobeia disso, a basba do basbaque. Que eu dizia e pensava numa coisa, mas Diadorim recruzava com outras (GSV, p.216).

Que melhor exemplo poderíamos ter daquilo que pode se apresentar como desconhecido exatamente para o revel, para a parte interessada, do que este diálogo entre Riobaldo e Diadorim? Aquele pensando e esperando que Diadorim tivesse a

mesma fação46 - a mesma acepção, o mesmo sentido do mundo, talvez o mesmo sentido

masculino -, enquanto este recruzava o sentido.

Ora, “recruzar” não significa, necessariamente, como entendeu - ou quis dar a entender – Riobaldo, cortar, atravessar, ir noutro sentido, passar em direção contrária. Talvez aqui, “recruzar” possa também querer dizer “cruzar reciprocamente, entrecruzar- se”. Neste caso, não haveria equívoco. Riobaldo acreditava que o mundo é à revelia e Diadorim também. Por isso mesmo o convida a sair da jagunçagem. Pensamos que Diadorim recruza, e assim dispõe os pontos de interseção do mundo à revelia de um, com o mundo à revelia do outro: viver com Riobaldo n’Os Porcos... Voltar às origens, ao lugar onde Diadorim cresceu, e ter, enfim, oportunidade de conhecer o que tanto lhes interessava!

Mas como Riobaldo poderia saber que, por esta proposta, Diadorim abria um caminho à revelia de ambos? Mal-entendido, sempre o mal-entendido. Sempre as equivocações produzidas pela linguagem. Sempre a falta de proporção exata entre os

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Segundo Martins (2001, p.219, grifos da autora), ‘fação’ é um termo “não dicionarizado proveniente da adaptação do francês façon, possível arcaísmo, visto que na língua arcaica eram numerosos os galicismos”. Aparentemente, foi empregado pelo autor do Grande Sertão no sentido de “acepção”. No entanto, encontramos no Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa, versão 2001, o mesmo termo, “fação”, sendo remetido ao termo “facção” que tem, dentre outras, as seguintes acepções: feito de armas heróico; bando ou partido insurrecto; fração dissidente de um partido.

sexos. Assim é o mundo entre o homem e a mulher: desencontrado. Mundo onde não há relação sexual. Mundo revel, insurgente. Desarmonia.

Verificando um pouco mais nossa argumentação, parece-nos que desde o primeiro encontro de Riobaldo e Diadorim às margens do de-Janeiro, este já se voltara para o outro. Mesmo percebendo todo o medo que consternava Riobaldo durante a travessia do de-Janeiro, Diadorim - tido então como sendo o Menino - soube dar a Riobaldo algum valor. Moveu-se em sua direção, aproximou-se e aprofundou-se em seu corpo:

E o menino pôs a mão na minha. Encostava e ficava fazendo parte melhor da minha pele, no profundo, désse a minhas carnes alguma coisa. Era uma mão branca, com os dedos dela delicados. – “Você é animoso...” – me disse. Amanheci minha aurora (GSV, p.84).

Parece-nos claro que, por volta dos quatorze anos, quer dizer, já na adolescência, mesmo amando e admirando profundamente um pai tido como “o homem mais valente deste mundo” (GSV, p.83), Diadorim iniciou sua travessia no sentido de encontrar veredas que lhe possibilitassem separar-se dele.

Mas notemos que, aparentemente, nada obriga uma filha a separa-se do pai. Ao contrário do filho que - em decorrência da proibição do incesto e da ameaça de castração - sabe exatamente qual é a única mulher que lhe é proibida e da qual precisa separar-se, a filha, como afirma Assoun (1993, p.16, grifos do autor), se encontra

diante de uma “encruzilhada” que parece por em jogo, de certa maneira, toda a “arbitrariedade” de uma escolha”. Nada a obriga a isso, literalmente, senão ela mesma, na medida em que não está a seu dispor nenhum imperativo de “renúncia simbolizável” situado fora dela. [...] A esse objeto paterno, entretanto, é preciso renunciar, de conformidade com a proibição do incesto – impedimento mais real do que simbólico -, mas é concebível que a escolha do “homem de sua vida” fique sujeita à mesma lógica: não será aquele que não deveria ser escolhido, mas, apesar disso... ele só será escolhido entre todos [...] na medida em que trouxer a marca, misteriosamente materializada pela história singular e suas tramas fantasísticas, daquele “um” que já foi amado no lugar da “Uma” – no que o circuito se fecha e, felizmente, fecha-se mal, já que é justamente em virtude de o homem amado ser outro que não o pai (embora se pareça com ele) e diferente da mãe (embora faça lembrar sua promessa) que ele é desejado e amado, [...], “por ele mesmo”!

Portanto, pensamos que, para Diadorim, desde o primeiro encontro com Riobaldo, foi a encruzilhada de uma vereda conduzindo ao pai e outra ao homem amado, Riobaldo - aquele que materializava a história e a urdidura da fantasia paterna.

Mas, para além disto, questionamos: Diadorim teria amado Riobaldo por ele mesmo? Acreditamos que sim, pelo menos até o ponto onde lhe foi possível nesta travessia.

Desde o início, Diadorim deve ter identificado em Riobaldo algum traço que lhe possibilitou revesti-lo com as qualidades do pai: - “Você é animoso” (GSV, p.84), dissera-lhe já no primeiro encontro. – “[...] você é leal” (GSV, p.214), disse-lhe depois - o que nos leva a crer que para Diadorim, Riobaldo era a esperança de cumprimento da promessa.

Diríamos que até aí Diadorim amou Riobaldo segundo a identificação de vestígios deixados na vereda que conduzia ao pai. Porém, mais adiante, na iminência do combate final pela vingança da morte do pai, quando Riobaldo tornara-se, então, chefe de toda a jagunçada, Diadorim lhe confessou abertamente sua motivação para aquela guerra: - “Menos vou, também, punindo por meu pai Joca Ramiro, que é meu dever, do que por rumo de servir você, Riobaldo, no querer e cumprir...” (GSV, p.404).

Eis aí uma sensacional torção da travessia! Encruzilhada: O pai, um dever, uma obrigação. O homem amado: um serviço, algo que se faz de graça, uma escolha, um querer, um realizar-se, um suceder... Uma ultrapassagem.

Enfim Riobaldo foi posto adiante do pai. Com este raciocínio, parece-nos valer a pena continuar caminhando no sentido desta nova vereda para verificar se Diadorim realmente mostrava alguma pretensão de abrir mão da posição masculina desvencilhando-se do traje viril para seguir no ultraje feminino:

Um dia, Riobaldo trouxe um mimo para Diadorim, uma pedra de safira. Porém, Diadorim estabeleceu um prazo para aceitar o presente:

- “Deste coração te agradeço, Riobaldo, mas não acho de aceitar um presente assim, agora. Aí guarda outra vez, por um tempo. Até em quando se tenha terminado de cumprir a vingança por Joca Ramiro. Neste dia, então, eu recebo...” (GSV, p.283).

Em seguida, foi a vez de Riobaldo insistir na saída da jagunçagem: - “Escuta Diadorim: Vamos embora da jagunçagem, que já é depois-de-véspera, que os vivos também têm de viver por si, e vingança não é promessa a Deus [...]” (GSV, p.238).

Novo desencontro, nova desarmonia: “Diadorim respirava muito” (GSV, p.283), e Riobaldo, magoado com a recusa do presente, diz que vai embora: - “Vou e vou. Só inda acompanho é até o Currais-do-Padre” (GSV, p.284). Antecipamos que ele

não foi, e que realmente acompanhou Diadorim até o curral, o redil, o lugar de aprisionamento do padre, do pai.

Diadorim não se calou diante da ameaça de Riobaldo: - “Então, que quer mesmo ir, vai. Riobaldo eu sei que você vai para onde: relembrado de rever a moça clara [....]. Com ela, tu casa. Cês dois assentam bem, como se combinam... (GSV, p.285). Diadorim referia-se a Otacília. Avançou um pouco mais na fala e sugeriu um futuro para o presente que acabara de lhe ser ofertado: “[...] pega essa prenda jóia, leva dá para ela, de presente de noivado...” (GSV, p.285).

Não obstante, é na continuação deste falar incontido que podemos apreciar de que maneira Diadorim ensaiou uma mudança de seus trajes ultrapassando-se na identificação à outra mulher. Acreditamos que neste momento, esta foi a única vereda encontrada por Diadorim para ir em direção à feminilidade. Uma vereda fantasiada. Uma fantasia compartilhada com Riobaldo. Um partilhar viabilizando a realização de um desejo:

- “... Você casa, Riobaldo, com a moça da Santa Catarina. Vocês vão casar, sei de mim, se sei; [...] ... Estou vendo vocês dois juntos, tão juntos, prendido nos cabelos dela um botão de bogari. Ah, o que as mulheres tanto se vestem: camisa de cassa branca, com muitas rendas... A noiva, com o alvo véu de filó...”

Diadorim mesmo repassava carinho naquela fala. [...] Agora falava devagarinho, de sonsom, feito se imaginasse sempre, a si mesmo uma estória recontasse. [...] Como se eu nem estivesse ali ao pé. Ele falava de Otacília. Dela vivendo o razoável de cada dia, no estar. Otacília penteando compridos cabelos e perfumando com óleo de sete-amores, para que minhas mãos gostassem dele mais. E Otacília tomando conta da casa, de nossos filhos, que decerto íamos ter. Otacília no quarto, rezando ajoelhada diante da imagem, e já pronta para a noite, em camisola de fina ló. Otacília indo por meu braço às festas da cidade, vaidosa de se feliz e de tudo, em seu vestido novo de molmol (GSV, p.286).

Fantasia, cassa branca, rendas, véu de filó, ló de lã ou seda, vestido de molmol... Tecidos finos, esvoaçantes... Transparências cumprindo a função de velar e revelar um desejo: o desejo de saber sobre o enigma da feminilidade.

Riobaldo com uma outra mulher é fantasia, cortina tecida por fios de textura simbólica e imaginária para recobrir o real. Pelos fios do simbólico, é “estória” que se reconta. Pelos fios do imaginário, é reencenação que faz a cena cintilar:

Ele, herdeiro das insígnias paternas, é neste devanear compartilhado não apenas o pai, mas, principalmente o olhar do pai.

Ela, a outra mulher, santamente pronta para a noite, é aquela que “vai e vem com os cabelos”47 compridos e perfumados de sete amores. A outra é a mulher e a mãe. Ao mesmo tempo mulher que inspira o desejo e mãe perfeita, sem falta, posto que velada.

E Diadorim, no entrever da transparência de tantos véus, é aquele que desponta no ideal de si mesmo, um ideal que o divide. Além disto, é também o olho que vislumbra a representação, os contornos do objeto, também idealizado, de seu desejo.

Logo, por trás da cortina, o objeto. Um objeto perdido de si e do outro – já que o que se procura é um objeto absoluto, sem falta -, e cuja ausência o véu tenta dissimular.

Ao compartilhar desta fantasia com Riobaldo, Diadorim não o identifica como objeto de seu desejo, não o vê. É como se ele “nem estivesse ali ao pé” (GSV, p.286). O que acontece é que Diadorim se identifica ao objeto da fantasia dele e, por conseguinte, àquilo que falta.

Mas não pensemos que isto invalide o amor de Diadorim por Riobaldo. Ele é o objeto de seu amor. Sustenta-se pela idealização, pela identificação narcísica: “Cês dois assentam bem, como se combinam...” (GSV, p.285) o que resulta, pelo amor, em uma mulher “vaidosa de se feliz e de tudo” (GSV, p.286).

Quanto ao objeto da fantasia, já que ele é aquilo que falta, temos que este objeto é o falo. Ora, deparar-se com a falta do falo, remete à castração e é justamente isso que a fantasia cobre e descobre.

Por essa discordância entre o objeto do amor e o objeto da fantasia é que surge a discordância entre os casais. Por isso, depois da “sonhice” (GSV, p.286), o coração de Diadorim “batia ligeiro” (GSV, p.286) porque o falo falta a todos e o amor tenta dar isto que ninguém tem, visando a completude. Daí o súbito desamparo: “Mas me lembro que no desamparo repentino de Diadorim sucedia uma estranhez – alguma causa que ele até de si guardava, e que eu não podia inteligir. Uma tristeza meiga, muito definitiva” (GSV, p.286).

Os dias se passaram. Riobaldo “levava Diadorim...” (GSV, p.297). Assim continuaram, lado a lado, por veredas que os conduziram ao “lugar demarcado, começo de um grande penar em grandes pecados terríveis” (GSV, p.303), novas veredas encruzilhadas, sendo que “[e]las tinham um nome em conjunto – que eram as Veredas-

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Mortas. [...] por uma ou por outra, se via uma encruzilhada. Agouro?” (GSV, p.304). Talvez não. Talvez apenas um lugar em que se pode reconhecer junto com Riobaldo que “Ah, o que eu não entendo, isso é que é capaz de me matar” (GSV, p.249).

Riobaldo e Diadorim encaminharam-se, desta forma, em direção a um lugar decisivo: para um, o limite: “as Veredas Mortas... Ali eu tive limite certo (GSV, p.304, grifos do autor). Para o outro, lugar de ultrapassagem.