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Sobre a condição para que o pai funde a lei

Chegada a hora de Joca Ramiro baixar sentença, ele inicia sua fala relembrando a força e amplitude de sua decisão: “– “O julgamento é meu, sentença que dou vale em todo este norte. Meu povo me honra. [...] A sentença vale [...]”” (GSV, p.213). E a sentença estipulada por ele determinava que Zé Bebelo fosse embora para Goiás. Além disto, ele também estipulou o prazo de validade desta resolução: “Até enquanto vivo eu for, ou não der contra-ordem...” (GSV, p.214). Após o anúncio de tais decretos, Joca Ramiro se levantou e

Ah, quando ele levantava, puxava as coisas consigo, parecia – as pessoas, o chão, as árvores desencontradas. E todos também, ao em um tempo – feito um boi só, ou um gado em círculos, ou um relincho de cavalo. Levantaram campo. Reinou zoeira de alegria.

No dia seguinte, Joca Ramiro deu partida “de volta para São João do Paraíso” (GSV, p.217). Saiu ladeado por Sô Candelário e Ricardão. Para Riobaldo, restou a incerteza quanto à legitimidade daquele julgamento:

O que nem foi julgamento legítimo nenhum: só uma extração estúrdia e destrambelhada, doideira acontecida sem senso, neste meio do sertão... [...] Pois: por isso mesmo. Zé Bebelo não era réu no real! Ah, mas no centro do sertão, o que é doideira às vezes pode ser a razão mais certa e de mais juízo! (GSV, p.217).

Porém, como a incerteza engendra a fé, Riobaldo se apóia nesta para afirmar:

“Daquela hora em diante, eu cri em Joca Ramiro” (GSV, p.217). Riobaldo creu em Joca Ramiro como o quê, senão como sendo um pai no exercício de sua função? Mas porque recorrer à fé para crer no pai?

Ora, sabemos que o pai é sempre incerto. Mesmo quando o consideramos em seus atos, não obtemos a certeza de uma verdade que possa nomeá-lo. Daí a necessidade de que a garantia sobre o pai se dê pela fé na nominação deste, quer dizer, na denominação de algo que não tem nome, já que é incerto. Foi a partir desta constatação que Lacan forjou a noção de Nome-do-Pai. E foi pela fé neste nome que Riobaldo pode se apaziguar: “Por isso, o julgamento tinha dado paz à minha idéia – por dizer bem: meu coração” (GSV, p.217). Ele pôde também descansar e despedir-se da incerteza rogando proteção a Deus, o pai: “Dormi, adeus disso” (GSV, p.217, grifo nosso).

Depois, o que reinou foram “bondosos dias” (GSV, p.218) durante os quais Riobaldo lembrou do “não-saber” (GSV, p.218) até o dia em que tentou escapar saindo em busca de “outra gente” (GSV, p.219). Nesta tentativa, constatou que “[o] mundo estava vazio” (GSV, p.218) e que quanto mais andava “querendo pessoas” (GSV, p.219), parecia, antes, que entrava “no sozinho do vago” (GSV, p.219). Tal pensamento o levou a concluir: “Eu tinha a culpa de tudo, na minha vida, e não sabia como não ter” (GSV, p.219). Assim, tomado por uma tristeza “da pior de todas, que é a sem razão de motivo” (GSV, p.219), Riobaldo adormeceu.

Quando acordou, não acreditou que “tudo o que é bonito é absurdo – Deus estável” (GSV, p.219). Na realidade, o absurdo da estabilidade perdurou apenas dois meses (GSV, p.222). Riobaldo e uma parte do bando encontravam-se num lugar cujo nome – Guararavacã do Guaicuí - não pode ser esquecido já que foi palco das “grandes coisas, antes de acontecerem” (GSV, p.220). Neste lugar, onde a lógica do tempo se encontra subvertida, Riobaldo teve acesso a uma revelação sobre si mesmo: “[...] foi nesse lugar, no tempo dito” (GSV, p.220), ou seja, num tempo que se antecipa aos acontecimentos por um dizer, “que meus destinos foram fechados” (GSV, p.220). Tamanha predição, ou predestinação, levou o narrador a questionar: “Será que tem um

ponto certo, dele a gente não podendo mais voltar atrás? Travessia de minha vida” (GSV, p.220).

Trataremos mais adiante da revelação que provocou em Riobaldo o questionamento sobre este ponto de sua travessia, pois agora, já sentindo “[q]ue jagunço amolece, quando não padece” (GSV, p.223), ele e outros começavam a sentir falta dos combates. Sobre este sentimento Bolle (2004, p.126) faz uma observação que corrobora com a manifestação de incerteza de Riobaldo em relação à legitimidade daquele julgamento que mais parecia “doideira acontecida sem senso, neste meio do sertão”:

O julgamento do caçador de jagunços, absolvido por “jagunços civilizados”,(GSV: 212) tem o mesmo valor desta expressão irônica: é apenas uma encenação. Na verdade, trata-se de encobrir um acordo muito pouco civilizado que se trata ali entre as partes envolvidas: a legitimação da guerra e do sistema vigente. Com efeito, o julgamento controverso vai engendrar “outra guerra” como constatam “aliviados” Riobaldo e seus companheiros de armas(GSV:226).

Constatamos, então, que naquele tempo de “[t]udo igual”, onde “às vezes é uma sem-gracez” (GSV, p.224) e, apesar de se saber que “[...] não se deve de tentar o tempo” (GSV, p.224), o céu começou a trovejar prenunciando a aproximação de “um feio dia” (GSV, p.224). Este dia foi aquele da chegada ao acampamento de “um brabo [...], de sonome Gavião-Cujo” (GSV, p.224), trazendo uma notícia “urgente”, “enorme” (GSV, p.224): “- Mataram Joca Ramiro!...” (GSV, p.224).

Aqui encontramos nosso segundo apoio à aproximação entre o mito de

Totem e tabu e os eventos narrados no Grande Sertão, pois - tal como se tratasse de

uma reencenação do assassinato do pai primevo -, aconteceu do assassinato de Joca Ramiro, assassinato de um pai, causar nos “filhos” o sentimento de que “[...] não havia mais chão, nem razão, o mundo nas juntas se desgovernava” (GSV, p.225). Diante disto, ficou então estabelecido que, de agora em diante, “[e]ra a outra guerra” (GSV, p.226) contra aqueles que, apesar de também serem “filhos”, haviam assassinado o pai: Joca Ramiro foi morto pelas mãos do Hermógenes, mas a traição era dele e de muitos: “[...] Os homens do Ricardão... O Antenor... Muitos...” (GSV, p.225).

Dissemos anteriormente que o inaudito julgamento realizado no centro do sertão pode ser entendido como prelúdio de um acontecimento que mudaria o rumo da narrativa. Referíamo-nos exatamente a este evento do assassinato de Joca Ramiro - o qual identificamos como cerne da narrativa. Nossa observação é endossada e ampliada por vários críticos.

Constituindo não apenas o centro da narrativa, mas localizado nas páginas centrais do livro, ao máximo de tensão em torno da questão do pai sobrevém uma distensão, ou seja, um retesamento, um prolongamento, uma continuação, provocada por sua morte. A narrativa continua, porém, o relato do evento da morte de Joca Ramiro se distende de uma forma tal que o romance resta cortado em duas metades quantitativamente iguais (ROSENFIELD apud DUARTE, 2001). Ainda apreciando os efeitos de tal divisão mediana do romance, Duarte (2001, p.157) recorre a mais dois críticos para afirma que, segundo Benedito Nunes, a divisão do romance promove uma “recapitulação” e, segundo Walnice Galvão, conduz a uma “reformulação de tudo”.

Assim, temos de considerar que o alcance dos efeitos deste corte repercute no próprio fio da narrativa. Esta, a partir daí, “se reescreve depois com outra ordem, que se repete, depois da morte de um pai, do pai e chefe Joca Ramiro” (MORAIS apud DUARTE, 2001, p.158, grifos da autora).

Parece-nos ainda importante ressaltar que esta repetição não se mostra imobilizante, como ocorreria num movimento circular fechado. Como já argumentamos, o percurso do fio narrativo descreve, antes, um movimento espiralar, promovendo assim um deslocamento e uma abertura - um redemoinho - por onde o narrador busca um saber sobre si e sobre o Outro.

Em apoio ao nosso entendimento quanto à abertura promovida pelo movimento acima referido, ressaltamos ainda que, apesar das tentativas do narrador de encerrar a estória, o movimento narrativo continua; passa por um ponto onde é anunciado que “Aqui a estória se acabou. Aqui, a estória acabada. Aqui a estória acaba” (GSV, p.454); e vai, paradoxalmente, manter uma travessia pelo avesso, prolongando a narrativa por mais seis páginas. Ao final destas, constatamos que a travessia conduz a uma abertura para o infinito, para a lemniscata (∞), símbolo que encerra o romance (GSV, p.460).

A abertura promovida pela narrativa associada à questão do saber apresenta uma significativa relação com o Nome-do-Pai. Mas, para avançarmos nesta articulação precisamos, antes, retornar à questão deixada em aberto sobre o que condiciona o pai enquanto fundador da lei.

Como dissemos, no seminário As formações do inconsciente (1957-1958), Lacan (1999, p.152) estudou o mito do Édipo e observou que, através dele, Freud nos forneceu algo essencial no sentido de justificar que a lei seja fundada no pai. Assim, quando Lacan se referiu ao texto da lei, ele considerou que, neste, a lei se articula no

nível do significante. Além disto, fez observar também que não há necessidade da presença de uma pessoa “para sustentar a autenticidade da fala e dizer que há alguma coisa que autoriza o texto da lei”, pois, o que autoriza este texto “se basta por estar, ele mesmo, no nível significante”. A isto que Lacan tratou como sendo o pai simbólico, ele chamou de Nome-do-Pai.

Se retornarmos à descrição da figura grandiosa de Joca Ramiro feita pelo narrador, teremos a oportunidade de perceber que ele atende à condição de pai simbólico tal como acabamos de demonstrar a partir da perspectiva lacaniana, pois, “quando ele saía, o que ficava mais, na gente, como agrado em lembrança, era a voz. Uma voz sem pingo de dúvida, nem tristeza. Uma voz que continuava” (GSV, p.190, grifos nossos).

Ainda no seminário sobre As formações do inconsciente, Lacan (1999, p.152) observou que existe uma outra condição a ser atendida para que a lei seja fundada no pai: “é preciso haver o assassinato do pai”. Mas por que isto?

Consideremos, em primeiro lugar, que, tal como ocorreu com a concepção de real – e com muitas outras noções que compõem o corpo teórico construído por Lacan – a conceituação do simbólico passou por modificações. Assim, como ressalta Fontenele (2005)21, na fase inicial de sua obra, Lacan se serve da noção de símbolo segundo a concepção de Lévi Strauss. Nesta perspectiva, o símbolo é entendido como uma realidade que antecede ao sujeito, pois, como indica Roudinesco e Plon (1998, p.714) ao citar Levi Strauss, “[o]s símbolos são mais reais do que aquilo que simbolizam. O significante precede e determina o significado”. Isto permitiu a Lacan entender o mito de Totem e tabu de uma maneira diferente da concepção evolucionista de Freud, para quem o mito do assassinato do pai primevo teria determinado a passagem do caos para a sociedade. Segundo Freud (1980[1912-13], v.XIII, p.170):

O violento pai primevo fora sem dúvida o temido e invejado modelo de cada um do grupo de irmãos: e, pelo ato de devorá-lo, realizavam a identificação com ele, cada um deles adquirindo uma parte de sua força. A refeição totêmica, que é talvez o mais antigo festival da humanidade, seria assim uma repetição e uma comemoração desse ato memorável e criminoso, que foi o começo de tantas coisas: da organização social, das restrições morais e da religião.

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Comunicação oral proferida pela Profª. Drª. Laéria Fontenele durante aula do curso de mestrado da UFC no dia 23 de setembro de 2005.

Já para Lacan, ao entender, inicialmente, o símbolo tal como Levi Strauss, a questão do assassinato do pai da horda primitiva - bem como a do complexo de Édipo - será tratada a partir da noção de estrutura22. Desta forma, para Lacan, a neurose, a psicose e a perversão são concebidas como estruturas e, conforme seja a estrutura do sujeito, este manterá uma relação peculiar com o simbólico, ou seja, com a linguagem.

Nesta perspectiva, o assassinato do pai da horda primitiva deve ser entendido como uma simbolização. Pode-se, então, dizer que é pelo simbólico, portanto, pela linguagem, que o homem se humaniza. Não fosse este acesso ao simbólico, o filhote humano permaneceria capturado numa relação desmedida com a imagem. O mito do pai primevo tem, por conseguinte, a função de simbolizar o pai e favorecer que se escape da alienação na imagem deste.

No seminário intitulado As psicoses (1955-1956), Lacan (1992, p.233) esclarece o que pode acontecer no caso do sujeito permanecer capturado numa relação desmedida com a imagem do pai:

Se a imagem capturadora é desmedida, se a personagem em questão se manifesta simplesmente na ordem da potência, e não na do pacto, é uma relação de rivalidade que aparece, a agressividade, o temor etc. [...] A relação imaginária se instaura sozinha, num plano que não tem nada de típico, que é desumanizante [...]. A alienação é aqui radical.

Esta alienação radical é a psicose e o que possibilita ao sujeito escapar de uma relação imaginária exorbitante - conseqüentemente, desumanizante -, é o complexo de Édipo que, afirma Lacan (1992, p.226), “é essencial para que o ser humano possa aceder a uma estrutura humanizada do real”.

No que diz respeito ao acesso à realidade viabilizado pela vivência do complexo de Édipo, Lacan (1992, p.226) acrescenta: “para que haja realidade, acesso suficiente à realidade, para que o sentimento da realidade seja um justo guia, para que a

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No seminário sobre as psicoses, Lacan (1992, p.210, grifos do autor) define a estrutura enquanto uma concepção psicanalítica e a relaciona ao significante: “A estrutura é em primeiro lugar um grupo de elementos formando um conjunto covariante. Eu disse um conjunto, e não uma totalidade. A estrutura se estabelece sempre pela referência a algo que é coerente com algo diverso, que lhe é complementar. Mas a noção de totalidade só intervém se lidamos com uma relação fechada com um correspondente, de que a estrutura é solidária. Pode haver, ao contrário, uma relação aberta, que chamaremos suplementariedade. [...] Interessar-se pela estrutura é não poder negligenciar o significante. Na análise estrutural, encontramos, como na análise da relação entre significante e significado, relações de grupos fundadas em conjuntos, abertos ou fechados, mas comportando essencialmente referências recíprocas. Na análise da relação entre significante e significado, aprendemos a insistir na sincronia e na diacronia, e isso se acha na análise estrutural”.

realidade não seja o que ela é na psicose, é preciso que o complexo de Édipo tenha sido vivido”.

Assim sendo, a vivência do complexo de Édipo implica na articulação da realidade com o que Lacan denomina de “simbólico” e ao qual ele relaciona uma parte da realidade. Esta parte constitui a realidade psíquica. Ela não é homóloga à realidade exterior, pois, como explica Lacan (1992, p.56): “No momento em que desencadeia sua neurose, o sujeito elide, [...], uma parte de sua realidade psíquica, ou, numa outra linguagem, de seu id. Essa parte é esquecida, mas continua a fazer-se ouvir. Como? [...] – de uma forma simbólica”. Aqui temos mais um argumento que nos permite entender que Joca Ramiro ocupa o lugar do pai simbólico: sua voz, ao veicular sua lei, continuava a se fazer ouvir mesmo - e porque não dizer, sobretudo - após sua morte.

Precisamos, então, ressaltar que, tal como no mito do pai da horda primitiva, o assassinato de Joca Ramiro instaura uma nova ordem: a partir deste evento, os filhos estabelecem entre si um novo pacto, pois, segundo Freud (1980[1912-13], v.XIII, p.172),

[o] pai morto tornou-se mais forte do que fora vivo – pois os acontecimentos tomaram o curso que com tanta freqüência os vemos tomar nos assuntos humanos ainda hoje. O que até então fora interdito por sua existência real foi doravante proibido pelos próprios filhos [...].

De fato, depois da morte de Joca Ramiro, vemos surgir no Grande Sertão uma nova ordem, visto que, “agora, tudo principiava terminado” (GSV, p.227). Como conseqüência, e endossando a observação comentada anteriormente, a narrativa recomeça. Neste recomeço “só restava a guerra” (GSV, p.227) e todo o bando se uniu na busca de “doçura de vingança” (GSV, p.227). É em decorrência disto que o narrador afirma que “Joca Ramiro morreu como o decreto de uma lei nova” (GSV, p.227).

Acontece que, como percebemos em nossa primeira aproximação deste relato com o mito de Totem e tabu, se, por um lado, eles de assemelham, por outro, eles divergem, pois, como deixar de observar que a morte de Joca Ramiro estabelece uma lei nova e, ao mesmo tempo, “o decreto de uma lei nova” morreu como ele?

Morto, Joca Ramiro “se torna mais forte do que fora vivo” (FREUD,1980[1912-13],v.XIII,p.172), portanto, se eterniza. Em sua honra fica estabelecida uma nova lei que, paradoxalmente, é velha pois se retorna à lei de talião.

Morta - como Joca Ramiro -, a lei nova também se eterniza, pois, “o que até então fora interdito por sua existência real foi doravante proibido pelos próprios filhos”

(FREUD, 1980[1912-13],v.XIII,p.172). É assim que, anunciada aos demais a “notícia de grande morte” (GSV, p.227), todos “[s]e aprontaram num átimo” (GSV, p.227).

Concluímos, então, que o lugar onde foi anunciada a morte do pai e de sua lei – Guararavacã do Guaicuí - é um lugar memorável. É lugar de antecipação da origem, lugar do acontecimento único das “grandes coisas, antes de acontecerem” (GSV, p.220). É, ao mesmo tempo, lugar das coisas que “não acontecem mais” (GSV, p.220) e cuja possibilidade de repetição do assassinato do pai evoca o fim de tudo, pois “[s]e um dia acontecer, o mundo se acaba” (GSV, p.220). É o lugar simbólico e singular da interdição: “[...] tão célebre – a Guararavacã do Guaicuí, do nunca mais” (GSV, p.228).

Em vista disto, não se poderá esquecer que Guararavacã é, sobretudo, o lugar onde se fez ouvir o grande estrondo de trovões prenunciando a morte, prenunciando o Guaicuí23.