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Mas não foram apenas a benção do pai e o sinal de uma cruz as únicas coisas postas sobre Diadorim.

Para Freud (1980 [1931], v.XXI, p.260) a sucessão de camadas que recobrem a mulher se mostra tão surpreendente que revela-las seria “tal como a

descoberta, em outro campo, da civilização mino-miceniana por detrás da civilização da Grécia”.

A partir desta surpreendente descoberta, ele observou que uma mulher persiste recoberta, pelo resto da vida, por duas camadas: aquela composta pelo vínculo pré-edipiano com a mãe e a advinda do complexo de Édipo com o pai. Mas com Diadorim aconteceu ainda de a mulher ter sido recoberta por roupas masculinas.

Estas teriam sido suas primeiras roupas? Podemos, com certeza, afirmar que não.

A primeira roupa que vestiu Diadorim foi aquela que veste qualquer pessoa: a linguagem. Esta mesma que, segundo Dias (1997, p.22), “preexiste à existência de cada um, e, por isso mesmo, é condição de nossa constituição”.

Antes mesmo de nascer, somos vestidos pela linguagem que veicula o desejo de outros, dos pais: o filho, ou a filha, será isso, será aquilo, deverá não sentir medo, terá coragem, usará roupas tais...

Assim, da linguagem à roupa consideramos com Dias (1997, p.30) que

[...] uma vez que a linguagem não é inefável, e sim material, a materialidade da roupa traz de volta a própria condição do ser sexuado. Incapaz de sobreviver só, ele se funda numa relação constitutiva aonde seu semelhante possui papel destacado. Destaque que vai desde a pregnância da imagem até o caráter de fascinação como unidade que ela promove em seu devir como humano. Voltado a sustentar uma imagem própria, condição de sua estruturação, ele se interessará pelas roupas como recurso que lhe reenvia ao eixo com o semelhante.

Sabemos que Diadorim parecia um cego de nascença em relação à mãe. Como poderia, então, ter se interessado pelas roupas ostentadas por ela? E mais, o que nós – e talvez Diadorim! - sabemos sobre as roupas usadas por esta mãe? Nada. Portanto, não podemos inferir de maneira leviana que ela, a mãe de Diadorim, necessariamente usasse roupas femininas.

Em contrapartida, sabemos do destaque da figura paterna no olhar de Diadorim. Não era ele “um homem de largos ombros, a cara grande, corada muito, aqueles olhos. [...] Os cabelos pretos anelados? O chapéu bonito? Ele era um homem. Liso bonito” (GSV, p.189,190).

Lembrar de Joca Ramiro é nos deparar com

um porte luzido, passo ligeiro, as botas russianas, a risada, os bigodes, o olhar bom e mandante, a testa muita, o topete de cabelos anelados, pretos, brilhando.

Como que brilhava ele todo. Porque Joca Ramiro era mesmo assim sobre os homens, ele tinha uma luz, rei da natureza (GSV, p.32).

Joca Ramiro era elegante, “era lorde” (GSV, p.197). Tinha nobreza no aspecto: “[...] o chapéu dele se desabava muito largo. Dele, até a sombra, que a lamparina arriava na parede, se trespunha diversa, na imponência, pojava volume. [...] era homem bonito, caprichado em tudo. [...] era homem gentil” (GSV, p.91).

Portanto, a própria imagem de Diadorim sustentava também ela, desde menino, roupas “que não tinham nódoa nem amarrotado nenhum, não fuxicavam” (GSV, p.82) e “chapéu-de-couro, de sujigola abaixada” (GSV, p.80). Lembremos que o regionalismo brasileiro permite associar o chapéu-de-couro ao recruta. Assim, por volta dos quatorze anos, Diadorim já era como que um novato, um recém introduzido nas artes da guerra.

Diadorim era, desde a infância, “asseado e forte” (GSV, p.82), e quando moço, era “variado e vistoso” (GSV, p.107). Costumava acertar o cabelo “que já estava cortado baixo” (GSV, p.113). Portava “colete-jaleco” (GSV, p.225). “Diadorim, todo formosura” (GSV, p.385) era “tão galante moço, as feições finas caprichadas” (GSV, p.123).

Assim, no começo, Diadorim portava camadas, uma cruz e roupas masculinas. Depois, mas só bem depois, veremos Diadorim “nú de tudo” (GSV, p.453). Neste momento teremos conhecimento de tudo o que estava escondido deste então? Podemos ser veementes ao responder com Lacan (1997, p.277) que não, pois a nudez, “[o] que ela tem de particularmente exaltante, significante por si mesma, é que ainda há um para-além dela que ela esconde”.

Por isso retornamos a Dias (1997, p.72) para fazer ressaltar que

[a] nudez está para além do corpo desnudo. É uma redução acentuada confundir o que há de verdade na sexualidade com a sensação de vergonha, prazer, ou liberdade de estar sem roupa. A nudez diz respeito a esse sentimento profundo de não ser por inteiro. Para tanto, não é preciso confundir não ser por inteiro com a vivência da falta de algum objeto em particular. Pelo contrário, a falta, tal como ela é evocada pela nudez, tem a ver com a impossibilidade de que haja uma roupa, um artefato simbólico, que cubra o ser por inteiro. A nudez remete a um ser que não se cobre definitivamente. Neste sentido, tampouco haverá uma roupa que satisfaça totalmente o sujeito.

Tal observação nos dá oportunidade de lançarmos como hipótese que as roupas masculinas de Diadorim recobriam, mas não definitivamente, a mulher. Parece- nos que, mesmo se apresentando sempre de maneira tão caprichada quanto Joca Ramiro,

o capricho de Diadorim deixa escapar algo que veicula uma singularidade. Neste sentido, acreditamos também que, mesmo tendo adotado para si o que lhe fora instituído por outrem, as roupas de Diadorim demonstram, ao mesmo tempo, o sucesso e o fracasso da roupa em velar uma mulher, pois, como afirma Dias (1997, p.114), “uma mulher não se deixa vestir pelos limites do que existe como instituído”.

Para entendermos a extraordinária relação da roupa com a mulher, precisamos considerar, como Dias (1997, p.115) que a vestimenta reenvia o ser à linguagem, e, justamente em decorrência disto, é possível supor que o campo do feminino não seja “vestido inteiramente por linguagem”.

Tendo esta premissa como ponto de partida, seguiremos agora com o estudo realizado pelo autor sobre a função do véu nos países islâmicos por acreditarmos que ele nos fornece uma bela via de acesso ao entendimento da função das roupas de Diadorim.

Segundo Dias (1997, p.118), o véu não é um mero elemento decorativo, “[m]ais do que isso, ele assume uma função bastante precisa – neutralizar a presença da mulher”. Tal asserção se fundamenta no fato observado por Dias de

[a]inda que em muitos países mulçumanos a desobediência ao uso do véu varie do espancamento à morte, há, para as mulheres que o adotam, um detalhe que escapa ao controle da tirania – a incandescência do olhar. Através dele, elas deixam transparecer que não estão totalmente vestidas, mesmo que cobertas com roupas. Nesse caso, o olhar está para além da visibilidade dos olhos. Faz constar um desejo que é dirigido ao Outro a quem se procura enfeitiçar (DIAS, 1997, p.118).

Podemos estender esta percepção a Diadorim? Verifiquemos.

Observando Diadorim, Riobaldo comenta: “Guardei os olhos, meio momento, na beleza dele; guapo tão aposto – surgido sempre com jaleco, que ele tirava nunca, e com as calças de vaqueiro, em couro de veado macho44, curtido com aroeira- brava e campestre” (GSV, p.135).

A incandescência dos olhos de Diadorim pode ser percebida desde a infância, quando já “era um menino bonito, claro, com testa alta e os olhos aos-grandes, verdes” (GSV, p.80).

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Apenas para não perdermos o lirismo das referências aos olhos de Diadorim não nos deteremos - pelo menos não agora -, na ambivalência do couro que vestia Diadorim: um “couro de veado macho”, de um cervídeo, mas que também nos remete ao homossexual, ao homem efeminado, aqui, paradoxalmente, macho.

Impossíveis olhos de beleza verde que adoeciam, que cegavam, pois, como afirma Lacan (1997, p.340), “[o] efeito da beleza é um efeito de cegamento. Ainda ocorre algo para além dela, que não pode ser olhado”. Este efeito não deixou de se manifestar sobre Riobaldo:

Que vontade era de pôr meus dedos, de leve, o leve, nos meigos olhos dele, ocultando, para não ter de tolerar de ver assim o chamado, até que ponto esses olhos, sempre havendo, aquela beleza verde, me adoecido, tão impossível (GSV, p.38).

Riobaldo foi cativado pelos olhos de Diadorim: “Mas, Diadorim? De olhos os olhos agarrados: nós dois” (GSV, p.65).

Olhos cuja opacidade - causada pela cegueira da orfandade materna - reluzia e transformava, adotando o brilho dos olhos de outra mãe: “Doçura do olhar dele me transformou para os olhos de velhice da minha mãe” (GSV, p.115).

“Diadorim, com as pestanas compridas, os moços olhos” (GSV, p.305), ao mesmo tempo, envelhecidos por velhos segredos querendo se revelar, e pelos quais até se morre:

Naqueles olhos e tanto de Diadorim, o verde mudava sempre, como a água de todos os rios em seus lugares ensombrados. Aquele verde, arenoso, mas tão moço, tinha muita velhice, muita velhice, querendo me contar coisas que a idéia da gente não dá para entender – e acho que é por isso que a gente morre (GSV, p.219).

No desamparo, “os olhos de Diadorim me pediam muito socorro” (GSV, p.345). No vislumbre, “[o]s olhos – vislumbre meu – que cresciam sem beira, dum verde dos outros verdes, como o de nenhum pasto” (GSV, p.374).

Diadorim - “[o]s olhos dele ficados para a gente ver” (GSV, p.453) –, “assim se desencantava, num encanto tão terrível” (GSV, p.454). Olhos estupeficados na exibição do estupendo... Veremos.

Por ora, fixemos os olhos de Diadorim que enfeitiçavam. Sempre.

Foi assim que, encantados, o vimos - até ele se desencantar num encanto ainda maior - atravessar todo o Grande Sertão portando suas roupas masculinas com um brio excepcional.

Por conta disto, defendemos a idéia de que suas roupas têm a mesma função do véu mulçumano. Porém, a condição de Diadorim difere, ao nosso ver, em muito, da condição das mulheres mulçumanas.

Suas roupas têm, como o véu, a função de neutralizar a presença feminina no meio jagunço. Podemos dizer que elas foram mesmo usadas enquanto expediente capaz de anular o poder de sedução da mulher. Mas, como vimos, seu êxito foi parcial. Apesar das roupas, brilhava e enfeitiçava o capricho, a vontade livre, dos olhos de Diadorim: “Vi como é que olhos podem. Diadorim tinha uma luz” (GSV, p.308).

Além disto, como afirma Dias (1997, p.119,120), o véu iguala todas as mulheres. É, portanto, um “[r]ecurso secular de masculinização” que tem como fim último a segregação da mulher e a preservação da “servidão como meio de relação entre os sexos”.

Ora, não observamos que tenha acontecido nada desta ordem com Diadorim. Mesmo “semelhasse maninel” (GSV, p.324), como esclarece Martins (2001, p.319), “mocinho delicado, gentil, homem efeminado”, ele “guerreava delicado e terrível nas batalhas. [...] diabrável sempre assim, [...]: o único homem que a coragem dele nunca piscava; [...]. Aquilo era de chumbo ferro” (GSV, p.324).

Ele era aquele que, desde menino, tinha muita coragem. Tanta que, já no primeiro encontro com Riobaldo no de-Janeiro, não relutou em esfaquear um homem, um mulato que, ao vê-los sozinhos, quis assediá-los:

- “Vocês dois, uê, hem? Que é que estão fazendo?... [...] Hem, hem? E eu? Também quero!”. [...] Mas, o que eu menos esperava, ouvi a bonita voz do menino dizer: - “Você, meu nego? Está certo, chega aqui...” A fala, o jeito dele, imitavam de mulher. Então, era aquilo? E o mulato, satisfeito, caminhou para se sentar juntinho dele. [...] Só foi assim. Mulato pulou para trás, ô de um grito, gemido urro. Varou o mato, em fuga, se ouvia aquela corredoura. O menino abanava a faquinha nua na mão, e nem se ria. Tinha embebido ferro na coxa do mulato, a ponta rasgando fundo. A lâmina estava escorrida de sangue ruim. Mas o menino não se aluía do lugar. E limpou a faca no capim, com todo capricho. – “Quicé que corta...” – foi só o que disse, a si dizendo. Tornou a pôr na bainha (GSV, p.85).

Todavia, para sermos rigorosos, precisamos reconhecer que Diadorim viveu de certa forma a servidão. Viveu, na verdade, a desobediente escravidão que imortaliza: “[...] senti que Diadorim não era mortal. E que a presença dele não me obedecia. Eu sei: quem ama é sempre muito escravo, mas não obedece nunca de verdade...” (GSV, p.418).

Já dissemos: Diadorim tinha seus caprichos, “pertencia a sina diferente” (GSV, p.323).

Assim como as mulçumanas, viveu sob o peso de um véu masculinizante. Mas, ao contrário destas, este mesmo véu lhe deu acesso a um caminho singular. Se Diadorim não foi igual aos outros - seus companheiros de jagunçagem -, muito menos foi forçado a igualar-se a todas as outras. Diadorim era “dessemelhante, já disse, não dava minúcia de pessoa outra nenhuma” (GSV, p.82).

Diadorim tinha o olhar caprichoso, esmerado, “esmartes olhos, botados verdes” (GSV, p.81). E, mesmo que tenha sido cegado, não foi emudecido. Jamais foi ingnóbil: “ele gostava de mandar, primeiro mandava suave, depois, visto que não fosse obedecido, com as sete pedras. [...] E ele, [...], era tão galhardo garboso, tão governador [...]” (GSV, p.116).

É bem verdade que teve de percorrer a vereda da masculinização. Diadorim “[t]inha [seus] fados” (GSV, p.120) e sabia que “[a] vida da gente faz sete voltas – se diz. A vida nem é da gente... Ele falava aquilo sem rompante e sem entornos, mais antes com pressa, quem sabe se com tico de pesar e vergonhosa suspensão” (GSV, p.120).

Cabe-nos, então, tentar entender a pressa, o pesar e a vergonhosa suspensão de Diadorim. Sobretudo por termos em perspectiva que estes são indícios de um capricho especial, um capricho, sem dúvida, “diferente, muito diferente...” (GSV, p.86).