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Ao continuar a caminhada pela incerteza deste sertão, onde “Viver é muito perigoso” (GSV, p.16), vamos, então, encontrar a série dos nomes de homens que “puxavam o mundo para si, para consertar o consertado”:

Montante, o mais supro, mais sério – foi Medeiro Vaz. [...] Seu Joãozinho Bem-Bem, o mais bravo de todos [...]. Joca Ramiro – grande homem príncipe! – era político. Zé-Bebelo quis ser político mas teve e não teve sorte [...]. Sô Candelário se endiabrou [...]. Titão Passos era o pelo preço de amigos [...]. Antônio Dó – severo bandido. Mas por metade [...]. Andalécio, no fundo, um bom homem-de-bem, [...]. Ricardão, mesmo, queria era ser rico em paz: para isso guerreava. Só o Hermógenes foi que nasceu formado tigre e assassim. E o “Urutú-Branco”? Ah, não me fale. Ah, esse... tristonho levado, que foi – que era um pobre menino do destino... [...].

Esta série de nomes nos coloca diante de vários aspectos sobre os quais nos parece importante tecer alguns comentários. Primeiro, sob o ponto de vista teórico, nos deparamos com mais um ângulo de entendimento da questão sobre o pai, pois

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Por termos em mente efetuar outras articulações a partir do termo “sertão”, reproduzimos a esclarecedora investigação realizada por Gilberto Mendonça Teles (1996, p.137) no livro A escrituração da escrita: teoria e prática do texto literário, onde o autor trata da origem desta palavra: “Embora em lat. Clássico o conceito de SERTÃO tenha sido expresso por mediterrânea, -orum, ou seja, “as terras do centro de um pais” [...] chamo a atenção para uma possível explicação etmológica por intermédio do supino de sérere, sertum, com significado próprio de “trançado”, entrelaçamento”, e com o figurado de “embrulhado”, “enredado”, “enfileirado”. Isto porque a raiz desta forma verbo-nominal é a mesma de desertum, supino de désere. A forma desertum (de-sertum: o que sai da “fileira”) passou à linguagem militar para indicar o “desertor”, aquele que sai (de-) da ordem e desaparece. Daí o substantivo desertanum para o lugar desconhecido para onde foi o desertor, estabelecendo-se, ainda no lat. Clássico, a oposição entre lócus certus e o “lugar incerto”, desconhecido e, figuradamente, impenetrável. As duas formas verbais provêm da mesma raiz indo-européia, SER-, como no grego eirô (por seryô): “atar”, “entrelaçar”, “tecer ou entretecer uma fala, um discurso”; e como no lat. sérere, “entrelaçar”[...]; e daí também o lat. sermo, -onis, “conversa”, “sermão”, dissertatio, “dissertação” e desertum, “lugar desconhecido e seco”, isto é, lugar fora do conhecimento (não entrelaçado nele).

acreditamos que a menção a cada um dos chefes jagunços nos permite dar continuidade à reflexão sobre o Nome-do-Pai.

Ao fazermos tal articulação, baseamo-nos no seminário sobre A

identificação, proferido nos anos de 1961 e 1962, onde Lacan (2003, p.128) afirma: “O

que está em questão é que a ordem de função que introduzimos com o Nome-do-Pai é essa alguma coisa que, ao mesmo tempo, tem seu valor de universal, mas que remete a você, ao outro, o encargo de controlar se há um pai ou não dessa natureza”.

Ora, depreendemos daí que o Nome-do-Pai é da ordem de uma função e, como tal, esta pode ser ou não preenchida. Assim sendo, uma vez que a função tenha sido preenchida, este preenchimento pode se dar através de vários argumentos18. Desta forma, deduzimos que o narrador persiste em sua interrogação sobre o pai, ao exclamar, “Esses homens! Todos puxavam o mundo para si [...]” (GSV, p.16), pois eles mostram- se passíveis de vir a preencher a função Nome-do-Pai ao ocuparem pelo menos uma das faces implicadas no Nome-do-Pai: a das atribuições imaginárias, idealizadas.

Notamos que todos esses chefes de jagunços são, até certo ponto, idealizados pelo narrador. Como observa Bolle (2004, p.286), esta idealização atinge seu auge até a primeira metade do romance. Depois, “quando se inicia a segunda metade da história, acentuam-se os sinais de desidealização e degradação do sistema [jagunço]” e, a nosso ver, isto se estende de certa forma, a seus chefes.

Um segundo aspecto ao qual o rumo da narrativa conduz também nos leva a propor mais uma articulação teórica. Ainda no seminário sobre A identificação, Lacan definiu pela primeira vez o que caracteriza o nome próprio. Esta caracterização visa justificar a importância do nome no Nome-do-Pai (PORGE, 1998).

Para Lacan (2003, p.90) o nome próprio “é da ordem da letra”. Assim concebido, o nome próprio mantém uma afinidade com a marca que é “a designação direta do significante como objeto”19 (p.94). Com isto, Lacan afirma que não se trata de apreender o nome próprio como Russell, que o entende como “uma palavra para designar as coisas particulares como tais” (p.85). Ao contrário deste, Lacan, “insere” na questão do nome próprio “uma função que é a do sujeito, não do sujeito no sentido psicológico, mas do sujeito no sentido estrutural” (p.94), pois, na seqüência, Lacan situa

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Empregamos o termo “argumento” em sua acepção matemática de “elemento sobre o qual se aplica uma operação, uma função etc” (Houaiss, Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa). 19

o sujeito como sendo estruturalmente dividido entre aquilo que o nomeia e seu nome próprio. Em relação a estas conclusões, Porge (1998, p.16) nos esclarece:

O nome próprio - [...] – divide o sujeito, pois, quando o sujeito quer agarrar sua identidade através do seu nome próprio, ele aí encontra uma determinação exterior que o ultrapassa e que faz obstáculo à auto-apreensão de sua identidade. O nome e prenome que o identificam lhe vêm de seus pais e a tomada da sua identificação, por este meio, confronta-o com o desejo do Outro. É o que se traduz por nomen omen, o nome fixa o destino.

Então, a partir deste raciocínio, nos deteremos num comentário sobre a aparição de dois, dos vários nomes de chefes citados pelo narrador:

O primeiro nome de que gostaríamos de tratar é o do chefe “Urutu-Branco”. Ressalve-se que este não se trata de um nome, mas de um cognome. É uma alcunha que associa este chefe à “urutú”, uma serpente. Conforme esclarece Utéza (1994, p.126),

[a] urutu – substantivo feminino em brasileiro – é negra, marcada com uma cruz na cabeça; qualificada de branco esta serpente venenosa se torna simbólica, portadora das duas cores iniciais da alquimia. Se a isto acrescentarmos cobra voadeira, constata-se que pertence ao mundo aéreo. Ctoniana por seu corpo, torna-se uraniana pelo alcance de sua picada. Feminino-masculino, cruz na cabeça, preto-branco, terra-céu, é a união dos contrários.

A importância deste cognome se dá pelo fato dele dissimular a apresentação do narrador da estória cujo nome é Riobaldo. Além disto, “Urutu-Branco” é um cognome que sucede a outro cognome: “Tatarana”. Este primeiro cognome foi dado a Riobaldo em reconhecimento às suas habilidades com armas de fogo. Como afirma Utéza (1994, p.201), seus sucessivos cognomes representam metamorfoses: “Tatarana, a lagarta-de-fogo, se metamorfoseou: dos seus despojos surgiu a serpente mística, erguendo-se da terra para o céu: Urutú-Branco, cobra voadeira”.

De fato, Riobaldo se transforma ao longo da estória. De raso jagunço, ele chega a ocupar a posição de chefe da jagunçada. Isto se dá por uma espécie de cerimônia de batismo oficiada por Zé Bebelo que diz a Riobaldo: “- [...] você é outro homem, você revira o sertão... Tu é terrível, que nem um urutu branco...” (GSV, p. 331). E Riobaldo então reconhece este re-nome, como sendo um nome seu: “O nome que ele me dava, era um nome, rebatismo desse nome, meu”.

Feitos estes esclarecimentos sobre os cognomes e renomes desta personagem, cabe agora esclarecer que, ao seguirmos as elaborações de Lacan no tocante à relação entre o nome próprio e o Nome-do-Pai, constataremos que ele amplia

a questão no seminário realizado entre os anos de 1964 e 1965, intitulado Problemas

cruciais da psicanálise.

Nesta oportunidade, como indica Porge (1998, p.96-99), a retomada feita por Lacan sobre a problemática do nome próprio não será “mais ligada tão diretamente ao Nome-do-Pai”. Logo, o nome próprio não é o Nome-do-Pai. Em contrapartida, segundo a interpretação deste autor, no seminário de 1964, Lacan antecipa a problemática do nome no nível do furo que será detalhada posteriormente no seminário intitulado RSI - quer dizer, “Real, Simbólico, Imaginário” - ocorrido entre 1974 e 1975. Porge fundamenta esta sua observação no seguinte esclarecimento dado por Lacan na aula de 6 de janeiro de1965: “O particular é denominado por um nome próprio, é neste sentido que ele é insubstituível, isto é, que pode faltar, que ele sugere o nível da falta, o nível do furo” (LACAN apud PORGE, 1998, p.180).

Ora, se considerarmos que este furo nos reenvia à divisão do sujeito naquilo que ele não sabe sobre si mesmo e isto está relacionado ao desejo do Outro, entendemos que daí decorra o reconhecimento de Riobaldo em relação àquilo que ele está tristemente submetido: o “destino”. Neste, não podemos deixar de ouvir o eco daquilo que não se sabe, daquilo com que não se atina, do não-tino, do des–tino do nome.