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Ao compartilhar nossas reflexões com outras pessoas, nos tem sido freqüente ouvi-las conjecturar que a paternidade de Joca Ramiro foi mantida em segredo porque, sendo este um grande líder guerreiro, tanto ele quanto sua prole estariam sempre sob a constante ameaça dos inimigos. De fato, já sabemos que a figura fascinante de Joca Ramiro incitava não apenas amor e admiração, mas ódio. Faz bastante sentido, portanto, nos contentarmos com o raciocínio de que, para proteger Diadorim das retaliações dos inimigos, o parentesco entre eles tenha se mantido incógnito.

Contudo, nenhuma passagem do romance nos revela tal motivação. Mas, ainda assim, esta argumentação pode se sustentar, pois o narrador deixa explícito que realmente faz parte da lei do sertão que a pena de talião estenda sua escrita punitiva geração após geração. Não foi aparentemente isto que motivou o próprio Diadorim a planejar a travessia do Sussuarão a fim se ter acesso à fazenda onde se encontrava a família “legítima de raça – mulher e filhos” (GSV, p.31) de um dos assassinos de Joca Ramiro, o Hermógenes?

Porém, como dissemos, esta possibilidade se sustenta apenas aparentemente, pois, ante a ameaça de ruptura feita por Riobaldo, Diadorim esclareceu sua conduta diferenciada do que é um costume numa parte do meio jagunço:

- “Tem discórdia não, Riobaldo amigo, se acalme. Não é preciso se haver cautela de morte com essa Ana Duzuza. Nem nós vamos com Medeiro Vaz para fazer barbaridade com a mulher e filhos pequenos daquele pior dos dois Judas, tão bem que mereciam, porque ele e os da laia dele têm costumes de proceder assim. Mas o que a gente quer é só pegar a família conosco prisioneira; então ele vem, se vem! E vem obrigado para combates... Mas, se você algum dia deixar de vir junto, como juro o seguinte: hei de ter a tristeza mortal...” (GSV, p.34).

Sentimo-nos enormemente tentados a refletir sobre esta jura de Diadorim. No entanto, a tarefa de entender o mistério que envolve sua filiação nos obriga a suspender nosso ímpeto, até porque a veemência destas palavras de Diadorim ressoará para nós num momento posterior.

Então, como vemos, é coerente supor que Joca Ramiro tenha escondido seu vínculo com Diadorim para proteger este que - até onde se sabe - era seu único herdeiro. A coerência desta premissa também nos serve para justificar que foi por precaução que Joca Ramiro transmitiu a Diadorim seus maiores ensinamentos. Ensinou- lhe sobre a coragem: - “Carece de ter coragem...” (GSV, p.83). Ensinou-lhe sobre o medo: - “Meu pai me disse que não se deve de ter... ” (GSV, p.83). Foi modelo de

virilidade para Diadorim: - “Meu pai é o homem mais valente deste mundo...” (GSV, p. 83). E mais, Joca Ramiro soube marcar a importância da singularidade e da falta em Diadorim: “Sou diferente de todo mundo. Meu pai disse que eu careço de ser diferente, muito diferente...” (GSV, p.86).

Como poderia ser de outra forma para uma menina, filha do “grande homem príncipe” (GSV, p.16), nascida num meio onde o que impera “é a misericórdia duma boa bala, de mete-bucha, e a arte está acabada e acertada” (GSV, p.204)?

Que mais restaria a ela senão ser diferente já que fora criada sob a “Lei de jagunço [que] é o momento, o menos luxos” (GSV, p.204)? Que outro caminho poderia haver para uma menina que era filha de um chefe jagunço, que conviveu com muitos outros jagunços, senão tornar-se ela própria um deles, tornar-se jagunço, este que “já é por alguma competência entrante do demônio” (GSV, p.11)?

Portanto, toda esta argumentação de que as medidas protetoras paternas eram inevitáveis se mostra perfeitamente plausível e coerente... Mas não o suficiente.

Na verdade, se insistirmos em defender a tese de que os rumos adotados por Diadorim resultam, de maneira simples e direta, da atitude diligente de seu pai, esbarraremos na constatação de que este não era o único, tampouco o melhor, recurso de que ele dispunha para resguardar a filha dos perigos do sertão.

Joca Ramiro era valente. Poderia defendê-la bravamente e sem ter de recorrer ao expediente de camuflar seu parentesco.

Além disto, era poderoso. Participava - como muito bem percebeu Bolle (2004, p.286) -, da rede dos abastados fazendeiros e políticos locais e mantinha “conexões [que alcançavam] o nível nacional”. Suas campanhas eram financiadas por aqueles que Bolle (2004, p.286, grifo do autor) descreve como sendo os ““verdadeiros donos do Brasil”, isto é, de senhores sobre a vida e a morte das pessoas comuns. Seu poder é poder de matar”.

Sendo assim, Joca Ramiro poderia, por exemplo, ter patrocinado para a filha uma vida confortável e segura em qualquer outra localidade. Poderia, simplesmente, tê- la afastado da ambiência inóspita do sertão, ao invés de, paradoxalmente, introduzi-la no meio jagunço. Aí está o principal indicativo de que a atitude deste pai contradiz a tese discutida até agora.

Parece-nos bastante claro que os atos de Joca Ramiro em relação a Diadorim não se fundamentaram na evitação dos riscos a que a filha estaria exposta. Muito ao contrário. Joca Ramiro foi tomado por Diadorim como o modelo a ser seguido e assim,

ela viveu - como ele e com o consentimento dele - as guerras do sertão. Se estivermos corretos, Diadorim identificou-se ao pai e o fez de forma apaixonada.

Já foi expresso que a menina realmente se identifica ao pai. Não há nada de extraordinário nisto, pois, como argumenta Freud (1980 [1923], v.XIX, p.45), a propósito da constituição do ideal do eu, por trás desta idealização “jaz oculta a primeira e mais importante identificação de um indivíduo, a sua identificação com o pai em sua própria pré-história pessoal”.

Vale ressaltar também o comentário de Freud (1980 [1923], v. XIX, p.45) feito em nota de rodapé sobre essa identificação com o pai: “Talvez fosse mais seguro dizer ‘com os pais’, pois antes de uma criança ter chegado ao conhecimento definitivo da diferença entre os sexos, a falta de um pênis, ela não faz distinção de valor entre o pai a e a mãe”.

Posteriormente, ao reconhecer que o primeiro objeto de amor, tanto de meninos quanto de meninas, era a mãe e também ao reconhecer as conseqüências psíquicas da diferença sexual, Freud (1980 [1925], v. XIX, p.312) levantou um importante questionamento: “Em ambos os casos, a mãe é o objeto original, e não constitui causa de surpresa que os meninos retenham esse objeto no complexo de Édipo. Como ocorre, então, que as meninas o abandonem e, ao invés, tomem o pai como objeto?”.

Neste ponto, antes de podemos avançar na busca de resposta para esta questão, nos surge uma grande complicação: o que sabemos sobre a mãe de Diadorim?

Sob certa perspectiva, sabemos praticamente nada. Porém, esta mesma perspectiva de não saber pode nos levar a saber muito.

Ao longo das quatrocentos e sessenta páginas do Grande Sertão, apenas por uma única vez se fala – de forma absolutamente lacônica - sobre a mãe de Diadorim. Isto se deu exatamente no seguimento daquela cena de ciúmes desenrolada entre Riobaldo e Diadorim. O caráter aparentemente incidental desta revelação denuncia sua importância.

Voltemos então à cena de ciúme:

Dissemos que este foi o momento em que, ante o risco de se ver abandonado por Riobaldo, Diadorim revelou o segredo guardado a sete chaves de seu parentesco com Joca Ramiro. Esta revelação teve o efeito de favorecer Riobaldo com um esclarecimento e, como que em retribuição, ele também fez, mentalmente, uma jura:

arrependimento. Abracei Diadorim, como as asas de todos os pássaros. Pelo nome de seu pai, Joca Ramiro, eu agora matava e morria, se bem” (GSV, p.34).

Acontece que Diadorim não poderia prever que Riobaldo se determinava desta forma. Por isso, “quem sabe para deduzir da conversa” (GSV, p.34), perguntou- lhe: - “Riobaldo, se lembra certo da senhora sua mãe? Me conta o jeito de bondade que era a dela...” (GSV, p.34). Contudo, Riobaldo, incomodado com pergunta tão direta, não precisou se esquivar de respondê-la já que Diadorim foi logo lhe presenteando com uma nova revelação: - “... Pois a minha eu não conheci...” – Diadorim prosseguiu no dizer. E disse com curteza simples, igual quisesse falar: barra – beiras – cabeceiras... Fosse cego de nascença” (GSV, p.34,35, grifos do autor).

Como lidar com tamanha vaguidade? A saída que nos foi possível encontrar é a que se segue:

A “curteza simples” com que Diadorim se refere à mãe, nos dá a entender que o fato de não tê-la conhecido é, ou tornou-se, para ela, um fato trivial. Tanto quanto se tivesse apenas pronunciado palavras quaisquer, desconexas: “barra – beiras –

cabeceiras...”.

No entanto apreciemos algumas particularidades desta passagem:

A propósito dos caracteres em itálico aí utilizados julgamos com Mendes (1998, p.53-54) que este

[t]exto escrito sob o signo da dor, da morte, da falta, Grande Sertão: Veredas traz marcas visuais tão expressivas e portadoras de significados quanto as palavras escritas; se colocam aos olhos do leitor, convidando-o a considerar o livro como um precioso objeto, que, além de lido, deverá ser contemplado. Produzido segundo leis próprias, imporá um outro caminho de percepção e de leitura, pela bordadura das marcas autorais, dos ornamentos, da imposição de uma determinada respiração, ao executar o ato físico de ler.

Assim, resta-nos tentar percorrer algum outro caminho de percepção e leitura.

Especificamente em relação às três palavras grifadas pelo autor nesta passagem do texto escrito, Mendes (1998, p.59) ainda interpreta que elas compõem o conjunto de “determinadas frases, que são mais desenhos decorativos de fragmentos de outras frases ou de possíveis poemas que propriamente simples frases prosaicas”.

A partir desta percepção, sentimo-nos à vontade para reconhecer que este bordado, inquestionavelmente, ressalta a informação. Não fosse a presença dos ornamentos, talvez incorrêssemos no equívoco de deixar a informação passar

despercebida ou nos contentássemos em achá-la corriqueira. No entanto, por conta dos adornos, permitimo-nos fazer algumas associações.

Trataremos a insólita eloqüência deste trecho dividindo-o em três partes conforme sua musicalidade. Seria como se cada uma das partes aí estivesse com o único intuito de se reforçarem mutuamente, ligando, mas também recobrindo, uma inerente insensatez. Para nós, as tais palavras que inicialmente nos soavam desconexas, funcionariam antes, como elos que ligam uma música inaudível.

Primeiro, temos o inesperado prelúdio: - “Pois a minha eu não conheci...”. Depois, temos o enigmático interlúdio que deixa em suspenso nossa expectativa por maiores detalhes: “barra – beiras – cabeceiras...”. Assim, nos interrompendo com os limites da “barra” e das “beiras”, este interregno nos conduz, simultaneamente, ao topo, às “cabeceiras”, à extremidade mais alta de algo. Sustenidos - com o sentido alterado pela elevação -, caímos, finalmente, no poslúdio que encerra a música mais importante: “Fosse cego de nascença”.

Que música mais importante seria esta senão a música da pretérita relação de Diadorim com sua mãe? Uma música inaudível, posto que inescrutável?

O que poderia ter determinado este desconhecimento não temos como saber. Talvez a mãe de Diadorim tenha morrido. Talvez simplesmente tenha ido embora. Não sabemos. E, de certa forma, não importa. Podemos prever que o resultado de qualquer uma destas possibilidades será o mesmo: um lugar vazio. É justamente disto que deduzimos a culminância da mãe de Diadorim em sua vida, apesar de ela ter sido, desde o nascimento, nunca vista.

Interrogamos: uma falta assim tão precoce e definitiva do primeiro objeto de amor, não teria como conseqüência, justamente, favorecer a eleição, também precoce, do pai como objeto de amor?

Acaso não será possível depreender que o olhar cegado de Diadorim em relação à mãe tenha sido substituído pelo olhar fascinado dirigido ao pai?

Sabemos que a menina sai da relação pré-edipiana com a mãe ao perceber que este vínculo se mostra sem futuro: a mãe lhe é interditada. Além disto, mantendo-se nesta relação, a filha não terá acesso à feminilidade, mas sim, como afirma Freud (1980 [1931], v.XXI, p.275), “à catástrofe”, quer dizer, a conseqüências graves e até mesmo funestas de um aprisionamento ao desejo materno.

Por isso a menina se volta para o pai, de quem espera receber o que lhe falta, o falo. O pai então passa a ocupar o lugar vacante da mãe, quer esta - ou qualquer outra

pessoa que faça as vezes de mãe - esteja viva ou morta, quer continue presente, ou simplesmente tenha se ido.

A partir disto, argumentamos que a medida da paixão de Diadorim por Joca Ramiro tem uma magnitude tão significativa quanto teria seu apego à mãe faltante, a este objeto que, por estar tão irremediavelmente perdido, suscita reiteradamente, um substituto à altura.

Acontece que, ao entrar na relação edipiana com o pai, - cedo algumas vezes, tarde outras, e, não raro nunca - a filha talvez reconheça, dependendo do caso, que mais uma vez entrou numa relação sem futuro. O pai também lhe é interditado e, junto a ele, ela encontrará as insígnias fálicas, mas não a feminilidade.