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Para Riobaldo, o êxtase e o horror Para Diadorim, o horror e o êxtase

Chegamos ao ponto em que podemos perguntar como Riobaldo: “Dali de lá, eu podia voltar, não podia? Ou será que não podia, não? [...] Quem sabe, tudo o que já está escrito tem constante reforma – [...] – em bem ou mal, todo-o-tempo reformando?” (GSV, p.410).

Reforma tem, mas acontece que “[a] gente chega, é onde o inimigo também quer” (GSV, p.413). Por isso chegamos com Riobaldo, Diadorim e todo bando aos “campos do Tamanduá-tão; o inimigo vinha, num trote de todos, [...]” (GSV, p. 413). Aí “[f]oi a grande batalha” (GSV, p.413).

O Tamanduá-tão era uma várzea. Mas, principalmente, “do Tamanduá-tão era a Vereda” (GSV, p.413, grifos do autor). Uma vereda aumentada, de “V” maiúsculo. Melhor, era a encruzilhada e o lugar da crucificação. Tanto que, para bem defini-la, Riobaldo sugere que se “forme uma cruz, traceje” (GSV, p.414). Lá, “todo o todo do Tamanduá-tão se alastrou em fogo de guerra” (GSV, p.418).

O primeiro combate se deu com o bando do Ricardão. Este, vencido, rendeu- se:

Assim estivesse pensando que ia ter julgamento? Achei que. E ele não estava ferido. [...]. Sendo que - e, aí, foi minha idéia? – ah, não; mas vi que Diadorim, de ódio ia pular nele, puxar faca. Só fiz fim: num tirte-guarte: atirei, só um tiro. [...]. Se deitou, conforme quase não estivesse sabendo que morria; mas nós estávamos vendo que ele já morto já estava.

[...]

- “Não enterrem este homem!” – eu disse (GSV, p.422).

Depois, rumaram para o arraial do Paredão: Diadorim, Riobaldo e seu bando, o cego Borromeu, “[a]trás, o menino Guirigó, se envelhecendo” (GSV, p.423) e a mulher do Hermógenes. Mas, “[s]ó com o desgosto dos prazos da vida foi que [Riobaldo enxergou] aquela mulher” (GSV, p.423).

O Hermógenes “[c]ontornava, feito gavião, vônje” (GSV, p.426).

Neste momento de perigo, nesta iminência do combate final, chegou a Riobaldo uma notícia que lhe fez vivenciar mais um dilema: Otacília, sua noiva, vinha ao seu encontro. Dividido entre as obrigações do comando e a obrigação de proteger Otacília, Riobaldo decidiu: “lá ia, no vou e volto; e já mesmo. [...]. Para revir e dar guerra, tempo havia de ter. Os outros fossem, para o Paredão, tocassem” (GSV, p.428). Entre estes outros... Diadorim.

Terá sido mesmo assim? Diadorim sem singularidade, apenas mais um homem do bando, mais um chefiado de Riobaldo, um jagunço qualquer? Vejamos:

[...] esbarrei, em saída. Esbarrei para repontar Diadorim, que vinha vindo. – A lá, que é?! – eu disse asp’ro. Diadorim quisesse me acompanhar, eu duvidava, de que motivos. Não me respondeu. Li nele a forma duma ira, como apertou os olhos em direitura do campo. – Tu não vai para o Paredão, tu teme? – eu ainda buli. Diadorim me empaliava, a certas. O ódio luzente, nele, era por conta de Otacília... Ele me viu e não disse, ladeando o cavalo. Mirou meio o chão; vergonha que envermelhou. Agora ele me servia dáv’diva d’amizade – e eu repelia, repelia. Mas, fora de minha razão, eu precisei com urgência de ser ruim, mais duro ainda, ingrato assim. – Tu volta, mano. Eu sou o Chefe! – pronunciei. E ele, falando de um bem-querer que tinha a inocência enorme, me respondeu assaz:

- “Riobaldo, você sempre foi meu chefe sempre...” (GSV, p.428, grifos do autor).

Poderíamos parar por aqui, darmo-nos por satisfeitos, e concluir: Diadorim amava profundamente o pai, mas este amor não lhe impediu de buscar a feminilidade. Diadorim separou-se do pai. Voltou-se para um outro homem. Para Diadorim, desde a muito, Riobaldo era seu chefe, era aquele que estava à frente de qualquer coisa, inclusive da obrigação de vingar o nome do pai. Afinal não o vemos agora preferir acompanhar Riobaldo em detrimento do dever de vingar a morte do pai?

Tendo chegado a esta conclusão, podemos agora começar a responder algumas das questões levantadas no início deste capítulo. Podemos, então, dizer que Diadorim não levou às últimas conseqüências a obrigação de vingar a morte de Joca Ramiro. Parece óbvio, então, que Diadorim não se manteve preso a este desígnio. Por dedução, podemos também afirmar que Diadorim conseguir superar os obstáculos que impediam seu acesso a um destino que lhe fosse próprio: conseguiu superar o desígnio de vingança e realizou uma travessia em conformidade com suas próprias determinações.

Mas, não nos precipitemos. A estória não pára por aí.

Além disso, precisamos considerar: se o acesso de uma mulher à feminilidade depende do fato de ela conseguir desligar-se de seus primeiros objetos de amor e desejo, quais sejam, a mãe e o pai, e se a consecução deste desligamento implica em abrir mão do desejo de ter o falo, resta à mulher, como já foi dito, ser o objeto de amor do homem, portanto, ser o falo para ele. Resta-lhe, ainda, gozar através do órgão masculino, pois, usufruir deste avatar do falo equivale a receber o falo.

Ora, no caso de Diadorim, parece-nos, agora, que podemos afirmar com certa tranqüilidade que lhe foi possível separar-se da mãe e do pai. Apesar de vestir-se como homem e ocupar a maior parte do tempo a posição masculina, sua escolha de objeto de amor e desejo foi uma escolha feminina. Diadorim, como heterossexual, amava as diferenças, as singularidades do feminino. Por isso, escolheu um homem para amar e desejar. Conseguiu, sobretudo, abrir mão de ter o falo. Portanto, Diadorim freqüentou a posição feminina e fez sua escolha a partir do campo do feminino.

No entanto, a estória nos tem dado a ver que Diadorim teve de lidar com a aspereza, com a ingratidão e com a urgência de Riobaldo “de ser ruim, mais duro ainda” (GSV, p.428). Riobaldo repeliu Diadorim.

As motivações de Riobaldo não são objetos de nosso estudo. Mesmo assim nos permitimos uma rápida conjectura: como ele poderia, num momento assim tão crítico de comando de uma guerra, não sentir a urgência de demonstrar, veementemente, a si mesmo, que era capaz de ocupar a posição fálica e assumir as escolhas de objeto segundo a posição masculina? Riobaldo tinha de ser chefe e tinha de se voltar para Otacília. Tinha de amar aquela que, para ele, parecia saber ocupar sem grandes ambigüidades a posição feminina. Ele, como heterossexual, amava a diferença, a singularidade - amava a mulher.

Adiemos, então, outras conclusões, pois muito ainda há por rolar. Acompanhemos a água que em seguida fluiu. Riobaldo partiu em socorro de Otacília e Diadorim ficou:

Nem espiei para trás – não ver que Diadorim obedecia, mas como devia de parar estacado lá, té que o meu vulto desaparecesse. Desjustiça. Mas como a obrigação do dia me arrolava. E em tudo não pensei, tocando para ir fazer-e- acontecer, aos baques do coração. O senhor diria, dirá: como naquela hora Diadorim e eu despartávamos um do outro – feito, numa água só, um torrãozinho de sal e um torrãozinho de açúcar... Fui, com desejos repartidos (GSV, p.429).

Na água não se percebe qualquer separação entre sal e açúcar. Pelo contrário, misturam-se perfeitamente e a água fica mesmo sendo de uma qualidade só. Mas com os desejos, não. Estes freqüentemente se mostram misturados e, ao mesmo tempo, repartidos. Tão repartidos que indo já bem adiantado no socorro a Otacília, Riobaldo sentenciou a seus dois acompanhantes: “- “Vão sozinhos, vocês dois, beira-rio, procurando. Eu não posso ir mais, por meu dever. Retorno, já, para o Paredão...”” (GSV, p.432). Mudou de motivos, mudou de urgência, mudou de destino:

Agora eu mudava, para motivos: [...]. [...] ah, a gente larga urgente o real desses estados. Agora minha alegria era mais minha, por outro destino. Otacília ia ter boa guarda. E então, por uma vez, eu peguei o pensamento em Diadorim, com certo susto, na liberdade (GSV, p.433).

Ao retornar, Riobaldo encontrou Diadorim que o “esperava, demais” (GSV, p.433), e pôde ver “a alegria no rosto dele” (GSV, p.433).

O Paredão ficava na região do Tamanduá-tão, lugar que pode ser representado por uma cruz. Lá Riobaldo reencontrou Diadorim “- com chapéu xíspeto, alteado. Nele o nenhum negar: no firme do nuto, nas curvas da boca, em o rir dos olhos, na fina cintura; e em peito a torta-cruz das cartucheiras” (GSV, p.433). Aí estava Diadorim no firme consentimento de portar a obliqüidade das cartucheiras - a injustiça de uma cruz recobrindo um refinado corpo de mulher.

Uma outra mulher, a do Hermógenes, também não pode se mostrar. Foi arremetida para um lugar fechado, ao mesmo tempo elevado e com sobras, excessivo. Neste lugar, foi botada não a mulher, mas seu excesso, algo que lhe está para além, a Mulher, com “M” maiúsculo: “Fui ver onde tinham botado a Mulher – ela fechada num quarto, no sobrado. Ficasse lá, sobpé de guarda” (GSV, p.433).

Riobaldo preparava-se para o combate com o Hermógenes. Pelejou “para recordar as feições dele” (GSV, p.434), mas o que viu foi a figura de “um homem sem cara” (GSV, p.434). O combate se daria então contra quem?

Riobaldo mesmo nos dirá:

Acho que tirava um ódio por causa de outro, cosidamente, assim seguido de diante para trás o revento todo. A modo que o resumo da minha vida, em desde menino, era para dar cabo definitivo do Hermógenes – naquele dia, naquele lugar (GSV, p.434).

O combate contra o Hermógenes remete, portanto, a um embate mais antigo, fantasiado. Isto logo nos lembrou o estudo feito por Freud em 1919 sobre a freqüência dos relatos de fantasias de espancamento de uma criança. Nestas fantasias enuncia-se simplesmente que “bate-se numa criança”, logo, o autor da ação é um sujeito indeterminado. Porém, com os desbobramentos deste enunciado, se concluirá que o que se fantasia é que quem geralmente bate é o pai.

Eis-nos reduzidos, de fato, a que um corpo pode ser sem rosto. O pai, ou o outro, seja quem for que desempenhe aqui o papel, assegure a função, dê o lugar ao gozo, ele nem mesmo é nomeado. Deus sem rosto, este é o caso. Contudo não é apreensível, a não ser como corpo.

O que é que tem um corpo e não existe? Resposta – o grande Outro.

O grande Outro é a alteridade radical. Está para além do outro que, afinal, é um nosso semelhante. Para nos referirmos ao Outro - lugar da diferença -, recorremos à palavra. Neste limite, o Outro se confunde com a linguagem (LACAN, 2004). Através da linguagem é que podemos simbolizar a diferença entre os sexos e a diferença entre as gerações. A partir destas simbolizações podemos nos situar nas relações de parentesco e termos acesso às leis que regem estas relações. Desta forma, o grande Outro é também o lugar da lei. Como já dissemos, lei e desejo são antípodas. Assim, verso e reverso da mesma moeda, acaba que, como afirma Lacan (2006, p.152) “o desejo do homem [é] o desejo do Outro – com um O maiúsculo [...]”.

Assim, o embate com o Hermógenes pode ser tomado como representação do embate com o pai, com o Outro, com o próprio desejo que é desejo do Outro, com Deus e as diabruras da linguagem.

“[F]oi feito um trovão” (GSV, p.438) que o combate começou:

Tiro ali era máquina. [...]. A gente tinha de caber em buracos escavados. [...]. Eu queria que Diadorim não se descuidasse. Diadorim disse: - “Toma cautela, Riobaldo...” Diadorim se descabelou, bonitamente, o rosto dele se principiava dos olhos. Eu comandava? (GSV, p.440).

Riobaldo e Diadorim guerreando lado a lado, “[t]udo ali era à maldição, as sementes de matar” (GSV, p.440). No Paredão que “era uma rua só” (GSV, p.439) havia uma residência alta, “soberana das outras. Dentro dela estava sobreguardada a Mulher, de custódia. E o menino Guirigó e o cego Borromeu, a salvos” (GSV, p.441).

Riobaldo desejou ir para lá e estar, do alto, para “todo comandando” (GSV, p.441). Mas quem comandou foi Diadorim: - “[...] Tu vai lá Riobaldo...”(GSV, p.441). Ao que ele respondeu:

- “Aqui é que é meu dever, Diadorim. Por o mais perigoso...” – eu falei, muito alerta. Tudo que Diadorim aconselhasse, eu punha de remissa; a modo de que com pressentimentos.

- “Tu vai, Riobaldo. Acolá no alto, é que é o lugar de chefe. Com teu dever pela pontaria mestra: [...]. Constante de que, aqui, o negócio está garantido...” – ele disse, mansinho, de me persuadir.

[...] Meu posto? O quanto também olhei Diadorim: ele, firme se mostrando, feito veada-mãe que vem aparecer e refugir, de propósito, em chamariz de

finta, para a gente não dar com o veadinho filhote onde é que está amoitado... Aquele sobrado era a torre. Assumindo superior nas alturas dele, é que era para um chefe comandar – reger o todo cantão de guerra!

- “Eu vou...” -; fui (GSV, p.441, 442).

Pensamos como Riobaldo que é preciso estar alerta a tudo que Diadorim aconselhasse. Também concordamos com ele quando pressente que persuadindo Riobaldo a instalar-se no alto da torre, Diadorim tinha o propósito de protegê-lo, qual uma mãe protege o filhote, colocando-se como chamariz. O que Diadorim tencionava era, certamente, proteger Riobaldo - mesmo que à custa da própria vida. Mas deixemos isto em suspensão.

Riobaldo foi. Antes, o relance de um olhar de despedida: “Ainda virei, relanceando. Sempre queria ver Diadorim. O querer-bem da gente se despedindo feito um riso e soluço, nesse meio de vida” (GSV, p.442).

Então, a disposição para a guerra ficou sendo esta: Riobaldo, lá, nas alturas, na torre que é lugar de chefe. Mesmo lugar onde foram botados a Mulher, o menino Guirigó e o cego Borromeu. Diadorim, cá, embaixo, no meio de todos os outros, no meio da rua, diabrável, “no meio do redemunho” (GSV, p.450).

Chegando à torre, Riobaldo reencontrou o menino e o cego Borromeu. Lá também estava a mulher do Hermógenes, presa num quarto. “A chave estava na mão do cego Borromeu. Era uma chave de todo-tamanho, ele fez menção de me entregar; rejeitei” (GSV, p.443). Mais uma vez Riobaldo rejeitou algo. Desta vez – vemos -, ele rejeitou a chave que daria acesso à mulher. Não a teria rejeitado antes?

Já havia se passado umas duas horas desde o começo da batalha, era quase meio dia. Mas “[t]empo é a vida da morte: imperfeição” (GSV, p.445). Riobaldo lembrou que na véspera podia ter perguntado a Diadorim se, depois da guerra, eles poderiam continuar juntos, Diadorim, morando com ele em uma fazenda, depois que Riobaldo se casasse com Otacília. Não perguntou.

Agora, “[a]s horas é que formam o longe” (GSV, p.445). Agora, recontar a estória é dar a conhecer Diadorim:

O senhor conheceu Diadorim, meu senhor?!... Ah, o senhor pensa que morte é choro e sofisma – terra funda e ossos quietos... O senhor havia de conceber alguém aurorear de todo amor e morrer como só para um. [...] O senhor... Me dê um silêncio. Eu vou contar (GSV, p.449).

O silencio foi dado. O “tiroteio da rua tinha pousado termo” (GSV, p.449). Ao entender o que se passava, Riobaldo perdeu a voz:

Conheci o que estava para ser: que os dele e os meus tinham cruzado grande e dôido desafio, [...], uns e outros, nas duas pontas da rua, debaixo de forma; e a frio desembainhavam. O que vendo, vi Diadorim – movimentos dele. Querer mil gritar, e não pude, desmim de mim-mesmo, me tonteava, numas ânsias. E tinha o inferno daquela rua, para encurralar comprido... Tiraram minha voz (GSV, p.450).

Todos vinham na fúria, menos Riobaldo, que só pôde ter um pensamento. Qual? “... o Diabo na rua, no meio do redemunho...” (GSV, p.450, grifos do autor). Aí estava o Diabo com “D” maiúsculo, um Diabo avantajado.

Riobaldo queria ver Diadorim, “segurar com os olhos” (GSV, p.450), porém, o que ele viu foi

[t]recheio, aquilo rodou, encarniçados, roldão de tal, dobravam para fora e para dentro, com braços e pernas rodejando, como quem corre, nas entortações. ...O diabo na rua, no meio do redemunho... Sangue. Cortavam toucinho debaixo de couro humano, esfaqueavam carnes. Vi camisa de baetilha, e vi as costas de homem remando, no caminho para o chão, como corpo de porco sapecado e rapado... Sofri rezar, e não podia, num cambaleio. Ao ferreio, as facas, vermelhas, no embrulhável. A faca a faca, eles se cortavam até os suspensórios (GSV, p.450, grifos do autor).

Sangue, carnes, camisa, corpo, tudo se embrulhava no meio do redemunho, até que Riobaldo mirou e viu:

- o claro claramente: aí Diadorim cravar e sangrar o Hermógenes... Ah, cravou – no vão – e ressurtiu o alto esguicho de sangue: porfiou para bem matar! Soluço que não pude, mar que eu queria um socorro de rezar uma palavra que fosse, bradada ou em muda; e secou: e só orvalhou em mim, por prestígios do arrebatado no momento, foi poder imaginar minha Nossa-Senhora assentada no meio da igreja... Gole de consolo... Como lá em baixo era fel de morte, sem perdão nenhum. Que engoli vivo. Gemidos de todo ódio. Os urros... Como, de repente, não vi mais Diadorim! No céu, um pano de nuvens... Diadorim! Naquilo eu não pude, no corte da dor: me mexi, mordi minha mão, de redoer, com ira de tudo... Subi os abismos... [...] Trespassei (GSV, p.451).

Êxtase... Mar seco de orações, imagem orvalhada... Depois, horror. Pois, nem mesmo imaginar que não era o demônio no meio do redemunho, mas Nossa- Senhora no meio da igreja, foi de grande consolo. O fel de morte correu com profusão. Nem mesmo o pano tecido no céu foi capaz de converter-se numa roupa decorosa que,

tal como afirma Dias (1997, p.136), trás a esperança de ser “mais conveniente do que uma aposta verdadeira – sem temor e sem piedade”.

Diadorim fez esta aposta. Nenhum pano de nuvens conseguiria mais cobrir isso convenientemente: encaminhou-se para o horror e experimentou o êxtase. Descobriremos.

Diante do que era sem perdão nenhum, restaram a Riobaldo o medo e a devoção. Restou-lhe, trespassado, subir o alto dos abismos. Desmaiou.

Saído do delíquio - “como no instante em que o trovão não acabou de rolar até o fundo, e se sabe que caiu o raio...” (GSV, p.451) -, mesmo sem que ninguém lhe dissesse, mesmo sem querer saber, Riobaldo sabia: “Diadorim tinha morrido – mil- vezes-mente – para sempre de mim; e eu sabia, e não queria saber, meus olhos marejaram” (GSV, p.451).

Vieram-lhe as notícias: Ganharam a guerra, “tristonhamente” (GSV, p.452). O Hermógenes morreu “do jeito de quem cravado com um rombo esfaqueante se sangra todo, no vão-do-pescoço” (GSV, p.452). Não era Otacília a mulher que pensaram estar vindo ao encontro de Riobaldo e quase o desviou da guerra. Era uma mulher qualquer, sem o brilho verde da esmeralda, esse verde que era o dos olhos de Diadorim. Chamava-se “Aesmeralda” (GSV, p.452). Os mortos foram muitos. “Demais...” (GSV, p.452).

A mulher do Hermógenes foi chamada para ver o corpo do marido. Enfim, ela pôde aparecer. Permaneceu encoberto, no entanto, o excesso que ela - tida como a “Mulher” -, representava. Continuou o enigma:

Aquela Mulher não era malina. [...]. Aquela Mulher ia sofrer? Mas ela disse que não, [...]. – Eu tinha ódio dele...- ela disse; me estremecendo. Ou eu ainda não estava bem de mim, da dor que me nublou, tive de sentar no banco da parede. Como no perdido mal ouvi partes do vozeio de todos, eu em malmolência. – Tomaram as roupas da mulher nua? Era a Mulher, que falava. Ah, e a Mulher rogava: - Que trouxessem o corpo daquele rapaz moço, vistoso, o dos olhos muito verdes... Eu desguisei. Eu deixei minhas lágrimas virem, e ordenando: - “Traz Diadorim!” – conforme era. – “Gente, vamos trazer. Esse é o Reinaldo...” – o que o Alaripe disse. E eu parava ali, permeio o menino Guirigó e o cego Borromeu. – Ai, Jesus! – foi o que eu ouvi, dessas vozes deles (GSV, p.452, 453, grifos do autor).

Mesmo nublado pela dor, Riobaldo ouviu o enigma proposto pela Mulher: “– Tomaram as roupas da mulher nua?” (GSV,p.453). Mas o quê significa isso? Quem era a mulher nua? Quem tomou suas roupas? Podíamos perguntar. Contudo, talvez estas não fossem as melhores perguntas. Talvez o melhor fosse perguntar: Como pode

acontecer de, seja lá quem for conseguir tomar as roupas de uma mulher desnuda? Se a mulher está nua, como tomar-lhe as roupas? Eis o problema proposto por este enigma.

Antes, precisamos ver o que é mesmo um enigma, qual a sua relação com a verdade, que tipo de saber ele transmite, qual é, afinal, a sua função. Ouçamos o que Lacan (1992, p.33,34) pode nos dizer sobre isso:

O que é a verdade como saber? Seria o caso de dizê-lo: - Como saber sem saber?

É um enigma. Esta é a resposta – é um enigma -, entre outros exemplos. E vou dar-lhes um segundo.

Os dois têm a mesma característica, que é o próprio da verdade – a verdade, nunca se pode dizê-la a não ser pela metade. A nossa querida verdade [...], é sempre um corpo.

[...]

[...] a função do enigma – é um semi-dizer, como a Quimera faz aparecer um meio-corpo, pronto a desaparecer completamente quando se deu a solução.

Então, parece-nos possível pensar que a Mulher com seu enigma representem aqui a Quimera, aquele monstro com corpo de animal e busto de mulher, aquele mesmo que propôs um outro enigma a Édipo. Assim, o que vemos é que a Mulher se apresenta como um enigma para o homem. Apresenta-lhe sua meia-verdade - porque afinal a verdade não pode ser toda dita -, e aguarda para ver se o homem sabe interpretar o enigma. Mas atentemos que, enquanto enigma, a Mulher é um saber que não se sabe.

A feminilidade - talvez possamos dizer - é isso: o enigma da Mulher. Esclarecemos que o termo Mulher não deve ser tomado aqui como sinônimo de plenitude. Isso não existe. Lembremos que falamos aqui da Mulher enquanto excesso, algo a mais, que não pode ser definida, que não pode ser completamente apreendida. A Mulher, quer dizer, a feminilidade, sempre escapa, não é uma verdade absoluta, mas