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A pedra de safira recusada rolou e atrapalhou o caminho. Como objeto perdido, ganhou vários nomes, pulverizou-se. No começo, era um topázio: “eu trouxe a pedra de topázio para dar a Diadorim” (GSV, p.49). Depois, conforme observa Utéza (1994, p.121) a pedra muda de nome ao longo da narrativa: “[...] de safira (p.283), volta a ser topázio (p.334) [...], depois ametista-topázio (p.430), para finalmente fixar-se no estado de ametista [...] (p.454) [...]”.

A pedra metamorfoseou-se com o desenrolar. Assim como ocorreu com ela, outras metamorfoses foram observadas.

De raso jagunço, Riobaldo passou a chefe do bando, numa ascensão incentivada e celebrada por Diadorim. De aprendiz, passou a fazer discípulo e a arregimentar homens e, qual um pai, quis definir-lhes o mundo: “- “O mundo, meus filhos, é longe daqui!” – eu defini” (GSV, p.336).

O discípulo de Riobaldo foi o pretinho Guirigó “[u]m rapazola retinto, mal aperfeiçoado; por dizer, um menino” (GSV, p.299). Prestemos atenção a este menino, pois ele não é um menino qualquer: “Tão magro, trestriste, tão descriado, aquele menino já devia de ter prática de todos os sofrimentos. Olhos dele eram extremados, [...]” (GSV, p.299). Estes olhos, veremos, testemunharam uma interessante metamorfose.

Depois de Diadorim ter deixado patente que se encontrava na encruzilhada da vereda do dever em relação ao pai e da vereda do querer em relação à Riobaldo, e que tendia mais a seguir por esta última, Riobaldo nem considerou esta declaração: “Nem considerei. “– “É, o Hermógenes tem de acabar!” – eu disse” (GSV, p.404). Aí, para Diadorim, foi um desmoronar de esperança e o rolar de lágrimas pela pobreza feminina: “Diadorim, ia ter certas lágrimas nos olhos, de esperança empobrecida. Me mirava, e não atinei. Será que até eu achasse uma devoção dele merecida trivial?” (GSV, p.404).

Era o precipício do mal-entendido. Diadorim mirava Riobaldo, ele era alvo de seu amor. Riobaldo não percebeu. Ele agora queria glórias. Diadorim, amor. Ele agora, herdeiro do pai, ocupava o lugar do líder, era o portador do falo. Enquanto isto, Diadorim, o legítimo herdeiro, bravo guerreiro, abriu mão de sua herança, abriu mão de

ter o falo. Não o queria e foi bem longe na disposição de pagar o preço pela perda da

herança. Queria antes receber o falo de Riobaldo ou ser o falo para este. Como ressalta Soler (2005, p.100),

[j]ustamente na medida em que seu desejo diverge para o homem, é mais a ser ou a receber esse falo que a mulher aspira: a sê-lo, através do amor que faliciza, e a recebê-lo, por intermédio do órgão com que ela goza, mas, nos dois casos, ao preço de não o ter. Pobreza feminina!

Foi exatamente nesse momento de divergência que irrompeu, como considera Utèza (1994, p.91), um “fenômeno grandioso”, o “desvôo de tanajuras” (GSV, p.404), um exemplo extraordinário do saber dos instintos, um saber tão certo, tão distinto do saber do desejo, sempre tão incerto e desencontrado. Riobaldo, cego de mestria, chamou o menino Guirigó para apreciar e “saber do mundo” (GSV, p.404). Fascinado pela metamorfose das tanajuras, Riobaldo não viu a mudança ao seu redor. Não viu mais Diadorim: “Mas, então, quando mirei e não vi, Diadorim se desarpartou de meus olhos. Afundou no grosso dos outros. Ai-de! hei: e eu tinha mal entendido” (GSV, p.405). Assim é o desentendido mundo dos homens.

A esta altura, o bando já havia capturado a mulher do Hermógenes. Um dia esta pediu para falar em particular com o jagunço Reinaldo, que era Diadorim. Sobre essa conversa, Diadorim “não me contou nada” (GSV, p. 407). Mesmo assim não esqueçamos que houve uma conversa entre a mulher do Hermógenes e Diadorim.

Dissemos anteriormente que Riobaldo passou a arregimentar homens “para obrar vingança pela morte atraiçoada de Joca Ramiro” (GSV, p.337). Pois bem, agora é ele que forma anéis convocando “todos nas armas” (GSV, p.337). Agora, a vingança em nome do pai agrilhoa Riobaldo. Os elos se enodam e formam uma cadeia de homens prontos para o combate. Entre estes, o Borromeu:

Quem era esse Borromeu? Mandei vir. Um cego; ele era muito amarelo, escreiento, transformado. – “Responde, tu velho, Borromeu: que é que tu faz?” “- Estou no meu canto, cá, meu senhor... Estou me acostumando com o momentinho de minha morte...” Cego, por ser cego, ele tinha o direito de não tremer. – “Tu é devoto?” “– Pecador pior. Pecador sem o que fazer, pede preto, pede padre...” Apontou com o dedo. Levei os olhos. Não vi nada. É assim, a esmo, que os cegos fazem. Aquele era o bom rumo do Norte. – “Ah, meu

senhor, eu sei é pedir muitas esmolas...” Pois, então, que viesse também o Borromeu, viesse (GSV, p.337).

Foi assim que nos veio o cego Borromeu e com sua vinda tivemos - também nós - a indicação de um sentido, de um norte, da amarração de uma cadeia. Mesmo que indicando a esmo, o que a aparição do velho Borromeu faz é nos dá a oportunidade de entender um pouco mais sobre o Nome-do-Pai no Grande Sertão.

Borromeu é um nó. Ele agrilhoa elos, enoda-os, sendo que ele mesmo é incorporado aos elos enodados. Mas, expliquemos isso melhor:

Em 1956, Lacan (1992) já afirmava que o Nome-do-Pai é o anel que faz tudo se manter junto. Vimos no segundo capítulo deste trabalho que para Lacan o pai imaginário, o pai simbólico e o pai real mantém relação entre si. Estão enodados. O que amarra todos estes pais é o Nome-do-Pai. Posteriormente, em 1975, no seminário intitulado simplesmente por R,S,I, quer dizer, Real, Simbólico, Imaginário, Lacan articulou o nó Borromeu ao conceito de Nome-do-Pai, introduzido na teoria em 1956. Através deste recurso da topologia – pois, o nó Borromeu, assim como a faixa de Mœbius que tratamos anteriormente, são estruturas topológicas -, ele pode resolver a questão deixada em aberto naquele seminário do ano de 1963, intitulado Nomes-do-Pai. Foi justamente o emprego do nó borromeano que possibilitou a articulação deste conceito aos registros do real, simbólico e imaginário (PORGE,1998).

Então o Nome-do-Pai amarra todos os nomes do pai – o pai imaginário, o pai simbólico e o pai real – ao mesmo tempo em que ele próprio faz parte de cada um destes. É uma quarta consistência e tem uma função suplementar: a função paterna. Como afirma Porge (1998, p.154), “[o] quarto elo explicita o Nome-do-Pai implícito nos três”. E o autor vai ainda mais longe para afirma, a partir do ensino de Lacan, que “[o] quarto anel é o Nome-do-Pai, o pai como nome, nome inominável, cujo turbilhão cospe os nomes do pai R, S, I” (1998, p.186).

Portanto, mais uma vez podemos dizer que o Nome-do-Pai é voragem, vórtice, turbilhão. Ele exerce uma força centrípeta que faz convergir. Ele une. Todavia, ao mesmo tempo, ele também exerce uma força centrífuga, pois separa, diferencia, espalha, expele pais e pedras pelo caminho. É redemoinho.

Além disso, precisamos ainda esclarecer que se o velho Borromeu nos serviu como mote para tratarmos do nó borromeano, este, por sua vez, não é um nó cego como o velho. Apesar de o nó Borromeu manter os elos amarrados entre si, todo o grilhão

pode se desfazer com um simples corte aplicado a qualquer ponto da cadeia. A seguir, apresentamos uma ilustração do nó Borromeu:

Fig. 3 - nó Borromeu

Já dissemos antes: o Nome-do-Pai é metáfora da função paterna. Esta separa o ser humano da coisa em si, pois o introduz na linguagem. Porque falamos, não temos acesso direto às coisas48. Usamos metáforas e metonímias para nos referir a elas. O Nome-do-Pai amarra os elos da cadeia da linguagem. Dá-lhe um sentido e um limite. Favorece que se diga muito, mas não que se diga tudo. Sempre falta algo. Como o Nome-do-Pai se confunde com a própria cadeia que ele amarra, um corte em qualquer um dos pontos da cadeia desamarra tudo. Daí a fala sem sentido e sem limite da psicose. Mas, prossigamos, pois muita coisa foi ficando diferente. Daí em diante, Riobaldo manteve sempre ao seu lado aqueles dois, o “menino e o cego Borromeu – aqueles olhos perguntados” (GSV, p.343). Ele próprio, Riobaldo, andava diferente. Diadorim não aceitava:

- “Repugno: que você está diferente de toda pessoa, Riobaldo... Você quer dansação e desordem...”

Mexi meu cuspe dentro da boca.

- “... A bem é que falo, Riobaldo, não se agaste mais... E o que está demudado, em você, é o cômpito da alma – não é razão de autoridade de chefias...” [...]

Dizendo, Diadorim se arredou de mim, com uma decisão de silêncio (GSV, p. 353, 354).

Acontecia que, depois da passagem pelas Veredas Mortas, Riobaldo tornara- se pactário com o demônio. Agora, quem mandava nele eram seus “avessos” (GSV,p.355) e ele se encaminhava para o combate final. Enquanto isso, Otacília tornara-se sua noiva e o esperava “guardada protegida, na casa alta da Fazenda Santa Catarina” (GSV, p.369). No entanto, apesar de ter assumido este compromisso,

48

Riobaldo continuava dividido: “Otacília, eu não merecia. Diadorim era um impossível” (GSV, p.371). O impossível que o instante transformava e incitava quase uma devoção:

Mas Diadorim, conforme diante de mim estava parado, reluzia no rosto, com uma beleza ainda maior, fora de todo comum. [...]. E tudo meio se sombreava, mas só de boa doçura. Sobre o que juro ao senhor: Diadorim, nas asas do instante, na pessoa dele vi foi a imagem tão formosa da minha Nossa Senhora da Abadia! A Santa... Reforço o dizer: que era belezas e amor, com inteiro respeito, e mais o realce de alguma coisa que o entender da gente por si só não alcança (GSV, p.374).

Diadorim, a Santa?! Convenhamos que eis aí mais uma metamorfose grandiosa. É claro que, para tanto, só mesmo alguma coisa não alcançável pelo entendimento poderia realçar. As belezas e amor de Diadorim evocavam nos olhos de Riobaldo a imagem da Nossa Senhora, a Santa Mãe, uma imagem fora do comum capaz de fazer tudo meio se sombrear. Mas o que poderia realçar assim em meio ao sombreado, ao encoberto, senão a mulher - aquela que, cedo ou tarde, acabará por representar para o homem a castração -, mesmo que esta mulher seja a mãe?

Lembremos: em algum instante, o menino perceberá que a mãe também é castrada. No entanto, como afirma Freud (1980 [1927], v.XXI, p.181), “em sua mente a mulher teve um pênis, a despeito de tudo, mas esse pênis não é o mesmo de antes. Outra coisa tomou o seu lugar, foi indicada como seu substituto, [...]”. Essa outra coisa nada mais é que o objeto fetiche, um objeto que herda todo o interesse dirigido ao falo, bem como todo o horror da castração. Assim, como Freud (1980 [1927], v.XXI, p.181) ainda assinalou, o objeto fetiche permanece como “um indício do triunfo sobre a ameaça de castração e uma proteção contra ela”.

Isto nos interessa porque depois da visão grandiosa, Riobaldo deu mais um presente a Diadorim, passou à suas mãos um objeto com virtude de poder e defesa, um talismã, um fetiche:

Aí peguei o cordão, o fio do escapulário da Virgem – tanto cortei, por não poder arrebentar – e joguei para Diadorim, que aparou na mão. Ia me fazer alguma pergunta, que eu não consenti, a voz dele era que mais significava” (GSV, p.374).

Diadorim foi impedido de falar, pois a fala significa demais. Ela significa que algo falta, e neste instante o que Riobaldo queria vislumbrar era um Diadorim perfeito, sem falta alguma. Dali em diante Diadorim portaria o escapulário da Virgem cujo fio, mesmo sendo uma fita delgada, tênue, não pôde ser arrebentado, rompido,

violado. Consideramos que, assim, revestido com os atributos da Virgem, Diadorim foi cumulado por Riobaldo com o que Assoun (1993, p.136, grifos do autor) denomina de “potência feminina”. Ouçamo-lo:

[...] o corpo da mulher, lugar de designação da castração, acaba por encarnar a onipotência. É essencial compreendermos esse passo da falta para a perfeição, pois aí se estabelece a verdade da mulher no inconsciente do homem. Ora, é no corpo da virgem que se efetua essa convergência explosiva: a mulher não tocada pela relação sexual polariza em si um estranho poder.

Esse estranho poder advém do medo masculino da defloração. Freud (1980 [1918], v.XI, p.190, grifos do autor) abordou-o no artigo intitulado O tabu da

virgindade, no qual, para resumir, ele afirma que “a sexualidade imatura de uma mulher

descarrega-se no homem que primeiro lhe faz conhecer o ato sexual”. É justamente aí que Assoun (1993, P.136) identifica “a falta da mulher, [...], transformada em poder explosivo”.

Este é um dos efeitos que a virgindade pode adquirir para o homem. Já para a mulher é possível que ela vivencie o desejo identificado por Freud a partir da análise do sonho da recém-casada. Este sonho - observou Freud (1980 [1918], v.XI, p.190) -, realiza “o desejo da mulher de castrar seu jovem marido e guardar o pênis dele para ela”. De posse do pênis, nada lhe faltaria. Acontece que o pênis não é o falo e o certo é que a falta permanece. Daí a perene demanda feminina por algo que preencha a falta.

A partir desta observação, Assoun (1993, P.138) propôs que há na mulher uma “vocação pela reinvindicação narcísica de uma ligação sem falhas, a dar sentido a qualquer falha a respeito delas”: é preciso que o homem seja cuidadoso, que se mantenha atento, que não esqueça nenhuma das pequenas coisas que dizem respeito a ela... etc, pois, o esquecimento, a negligência, a falta, representa para a mulher que o homem não lhe valoriza.

Ao mesmo tempo, a própria mulher representa a falta - e a representa inclusive no inconsciente do homem -, logo, ela

[...] fica colada nesse estranho lugar em que tem que ser, no inconsciente do homem, sumamente significativa, ou então, insignificante. Daí lhe vem a aptidão de vigiar o inconsciente do homem, para captar nele o estado de importância que assume, como se estivesse ameaçada de ser anulada a qualquer momento! É isso que parece fada-la, decididamente, a funcionar como lapso ou como ato falho do homem (ASSOUN, 1993, p.139, grifos do autor).

Com Diadorim e Riobaldo não foi diferente. Diadorim vigiava, procurava um sentido para os atos falhos, auscultava as intenções de Riobaldo:

Porque Diadorim já sabia tudo. Como sabia? Ah, o que era meu logo perdia o encoberto para ele, real no amor. – “Riobaldo, você vadiou com as do Verde- Alecrim... Você está comprazido?” – êle de franca frente me perguntou. Eu tibes. [...]. Mas admirei que Diadorim não estivesse jeriza. [...].

- “Você já está desistido dela?” – em fim ele indagou.

- “Hem? Hem? Dela quem dela? Tu significa essas velhacas palavras...” – eu só fiz que respondi, redatado. [...].

[...] Porque eu entendi: que a referida era Otacília. Minha nôiva Otacília, tão distante - o belo branco rosto dela aos poucos formava nata, dos escuros... (GSV, p.401).

Então, estava sendo assim: Otacília ficando distante na medida em que eles se aproximavam do momento de cumprir a vingança. Riobaldo, longe de si mesmo e de Diadorim. Este por sua vez, qual uma esfinge, continuava às voltas com seus enigmas:

- “Riobaldo, o cumprir de nossa vingança vem perto... Daí, quando tudo estiver repago e refeito, um segredo, uma coisa, vou contar a você...”

Ele disse, com amor no fato das palavras. Eu ouvi. Ouvi, mas mentido. Eu estava longe de mim e dele. Do que mais Diadorim me disse, desentendi metade.

Só sei que, no meio reino do sol, era feito parássemos numa noite demais clareada. [...]. Dentro de muito sol, eu estava reparando uma cena: que era um jumentinho, [...], no limpo do campo caçando o que roer, [...].

Eu não tinha que tomar tento em coisas mais graves? (GSV,p.386).

Talvez tivesse, mas a claridade daquela proposta de resolução do enigma era tão grande que ofuscava. Além disto, acaba que, no geral, apesar de eventualmente amarmos as palavras, como Diadorim, apostando que estas se mostrem indiscutíveis, o fato é que muitas vezes “a gente não sabe em que rumo está” (GSV, p.410). Por isso Riobaldo “ia para sofrer, sem saber” (GSV, p.412).

As pedras do quebra cabeça continuaram a rolar, uniram-se. Chegaram mesmo a compor o Paredão, cenário da luta final, das “entortações” (GSV, p.450), da travessia “de horror, precipício branco” (GSV, p.450).

Para aí, Riobaldo e Diadorim se encaminharam, a par, quando do díspar se tratava. Nisto, “o travo de tanto segredo” (GSV, p.453) - um segredo de pedra -, virou pó e re-velou um enigma capaz de petrificar.