• Nenhum resultado encontrado

Dentre tantos saberes com os quais, pelo menos até certo ponto da estória, Riobaldo não atina, localizamos a questão em torno do outro chefe, aquele chamado Joca Ramiro. É sobre as particularidades desta personagem que passaremos a tratar agora.

“José Otávio Ramiro Bettancourt Marins”, conhecido simplesmente por Joca Ramiro, é uma representação bastante instigante do pai. Reproduzimos a seguir a análise deste nome feita por Utéza (1994, p.302):

Joca, hipocorístico de José, realça em primeiro lugar a relação afetuosa do pai para com os filhos. O prenome desbobra-se em José Otávio: José é o nome de um dos doze patriarcas chefes das tribos do Antigo Testamento; Otávio, o do mais glorioso dos Imperadores romanos, igualmente sinônimo de plenitude e harmonia. Ramiro, o primeiro patronímico, evoca a glória dos cavaleiros germânicos – Mir: ilustre; Ran: nascimento, linhagem; e esta glória repercurte também nos outros dois: Bettancourt Marins, onde as antigas famílias portuguesas reúnem os filhos do mar - Marins - e os donos da terra – através do germânico Betto: domínio, e do latim cohors: divisão do castro militar.

Portanto, a nobreza de José Otávio Ramiro Bettancourt Marins remonta às origens, até o Pai.

Já sabemos que o nome próprio não é o Nome-do-Pai, no entanto, se nos detivemos na análise esmiuçada de Utéza, foi apenas ao intuito de aproveitarmos a oportunidade para refletir sobre uma das faces do pai implicada na construção da noção de Nome-do-Pai. Refletiremos, portanto, sobre o pai pela perspectiva imaginária.

O nome Joca Ramiro nos põe diante do chefe maior da jagunçada. Ele é o “grande homem príncipe” (GSV, p.16). Portanto, além de ser o maior, Joca Ramiro é principal. Afirmamos isto não apenas porque ele comanda os demais chefes, mas porque, em torno dele, gravitam questões essenciais ao entendimento do romance. Como veremos, uma destas questões diz respeito à construção desta personagem que se mostra tão relevante a ponto de influenciar a própria estruturação da narrativa.

Assim, no comando geral da jagunçada está Joca Ramiro. Porém o número de comandados é tão grande e são tantas as empreitadas que estes se apresentam divididos em subgrupos comandados por cinco lugar-tenentes de Joca Ramiro, quais sejam: Titão Passos, Sô Candelário, João Goanhá, Hermógenes e Ricardão.

Dissemos que Riobaldo não lembrava quem era Joca Ramiro, mas eis que chega o dia de reconhecê-lo: o dia em que os subgrupos se reúnem. A chegada de Joca Ramiro se dá de maneira repentina e triunfal:

Antes foi uma coisa acontecida repentina: aquele alvoroço, na cavalhada geral. Aí o mundo de homens anunciando de si e sobre o vasto chegando, da banda do Norte. Joca Ramiro! – “Joca Ramiro!” – se gritava. [...] E, no abre-vento, a toda cavaleirama chegando, empiquetados, com ferragem de cascos no pedregulho. Eram de ser uns duzentos, quase tudo manos-velhos baianos, gente nova trazida. Gritavam vivas para a gente, saudavam (GSV, p.189).

A descrição desta chegada nos leva a associá-la a um evento de ordem apoteótica. Esta nossa impressão de uma espécie de deificação de Joca Ramiro é compartilhada por Utéza (1994, p.303) nos seguintes termos:

Vindo das alturas – sobre o vasto, do Norte, de todos os altos – e tomando a forma a partir do vazio – materialização que implicam as etimologias de vasto, bem como de chegar -, a corte precede o Príncipe num redemoinho – no abre- vento – que as ferraduras dos cavalos fincam na terra. No centro a imagem de carne, a aparência humana do Pai – figura, de fingere, fictus: moldar na argila – montado num corcel de luz.

Esta apresentação nos possibilita refletir sobre o pai como imagem. O pai imaginário é, afirma Julien (1999, p.37), “uma imagem forte, majestosa, digna de ser amada e estimada”. Além disto, ele remete à autoridade “enquanto imagem”. Segundo o autor, “[é] isto que Freud explica como aquilo que permite deixar a mãe e receber do pai ou bem o traço identificatório da virilidade, ou bem um filho como substituto do falo”. Mais à frente, explicitaremos esta noção de falo.

Por hora, consideremos que na perspectiva de Lacan, o pai imaginário, é o pai privador, pois, como explica Julien (1999, p.37), “[e]le priva a mãe no sentido de que ele tem o que ela não tem; e ele dá isto a ela quando quer”.

Apreciemos então como Joca Ramiro viabiliza a identificação viril:

E Joca Ramiro. A figura dele. Era ele, num cavalo branco – cavalo que me olha de todos os altos. [...] E ele era um homem de largos ombros, a cara grande, corada muito, aqueles olhos. Como é que vou dizer ao senhor? Os cabelos pretos anelados? O chapéu bonito? Ele era um homem. Liso bonito. Nem tinha mais outra coisa em que se reparar (GSV, p189-190).

Repara-se, inequivocamente, que Joca Ramiro era “um homem”, mas, realmente, não havia mais outra coisa a se reparar, ou Riobaldo afirma isto porque, como ele observa mais adiante, “[a] gente olhava, sem pousar os olhos” (GSV, p.190) sobre aquela figura estonteante? Acaso haveria algo que se evitava olhar? E mais: porque, logo em seguida, o narrador expressa um medo paradoxal quando reconhece que “A gente tinha até medo de que, com tanta aspereza da vida, do sertão, machucasse aquele homem maior, ferisse, cortasse” (GSV, p.190)?

Ora, o esperado seria que “um homem” assim “maior”, “bonito” e de “largos ombros” antes machucasse a ser machucado. Mas deixaremos, por enquanto, estas interrogações em suspensão, para nos determos na caracterização do pai imaginário feita por Lacan.

Em A relação de objeto, Lacan (1995, p.225) esclarece que o pai imaginário é o pai com que lidamos no dia a dia e a quem “se refere, mais comumente, toda a dialética, a da agressividade, a da identificação, a da idealização pela qual o sujeito tem acesso à identificação ao pai”. Ao considerar que a relação de identificação com o semelhante se dá, por um lado, através da fascinação - que busca capturar o objeto fascinante - e, por outro, através da agressividade incitada pela constatação de que a total captura do objeto é impossível, Lacan (1995, p.225) especifica as características do pai imaginário: ele “é o pai assustador que conhecemos no fundo de tantas experiências

neuróticas, e que não tem de forma alguma, obrigatoriamente, relação com o pai real da criança”.

A partir deste esclarecimento não causará estranheza deduzir que a fascinação inspirada pela figura de Joca Ramiro possa incitar o medo de que ele, Ramiro, seja machucado. Afinal, o medo de que a “aspereza da vida, do sertão” o fira implica na pressuposição de que ele é passível de vir a ser agredido. Ou seja, este medo vela o pressentimento dos riscos a que Joca Ramiro se encontra exposto, ao mesmo tempo em que os incita. Nossa compreensão se amplia ainda mais se considerarmos, com Eric Porge (1998, p.38) que o pai imaginário “é o pai com o qual se está em rivalidade fraterna”. Mais adiante voltaremos a tratar desta questão.