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EXCEÇÃO À COISA JULGADA

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reconhecimento de que o Direito não possui outros métodos capazes de punir crimes de tal envergadura‖

3. EXCEÇÃO À COISA JULGADA

O artigo 20 do Estatuto de Roma estabelece que ninguém será julgado pelo TPI por fatos pelos quais já tenha respondido frente ao Tribunal. O julgamento pelo TPI também impede novo julgamento pelo mesmo fato por um tribunal nacional, da mesma maneira que os julgamentos nacionais impedem um novo julgamento pelo TPI. A última hipótese, contudo, comporta exceção. Será possível o julgamento pelo Tribunal Penal Internacional de indivíduo julgado por outro tribunal, caso o primeiro processo tenha visado excluir a responsabilidade penal por crimes da sua competência, ou não tenha sido conduzido de forma independente e parcial.

O ordenamento jurídico brasileiro, por sua vez, assegura que a ―a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada‖ (art. 5º, XXXVI, da CF).

Diante disso, surge o questionamento acerca da compatibilidade da norma do artigo 20 do Estatuto de Roma com a Constituição.

Entendo não haver incompatibilidade, pois a natureza da sentença penal proferida pelo tribunal nacional é que justifica a exceção contida no Estatuto de Roma. Se o processo foi conduzido com o fim de garantir a impunidade do agente ou a aplicação de pena menos grave que a realmente devida, o que se tem, na verdade, ―é um simulacro de processo, incapaz de gerar uma sentença válida, em razão da inobservância dos princípios do juiz natural (entendido como juiz imparcial) e do devido processo legal‖ (JAPIASSÚ, 2009, p. 123). Tal sentença não deve gozar da mesma proteção conferida às decisões regulares, não se justificando atribuir-lhe a qualidade de coisa julgada. Como afirma Maria Thereza de Assis Moura, ―o claro propósito de subtrair o acusado do julgamento justo, limitando-se a realizar simulacro de processo, permite que se considere como juridicamente inexistente a coisa julgada formada anteriormente‖ (MOURA; BADARÓ; ZILLI; JAPIASSÚ; PITOMBO, 2006).

Dessa forma, o vício insanável da sentença proferida por tribunal nacional é que torna inoperante o efeito da imutabilidade, permitindo o processo internacional, sem que isso implique violação ao ne bis in idem. Ademais, o ordenamento jurídico brasileiro, ao assegurar o respeito à coisa julgada, em princípio, não o faz de forma absoluta, tanto que são previstas medidas processuais próprias para a sua desconstituição, como a

querela nullitatis, a ação rescisória e a revisão criminal. Ressalte-se que nem mesmo a vedação da revisão criminal pro societate implica contradição com a regra estatutária. Com efeito, o julgamento do caso pelo Tribunal Penal Internacional não configura revisão do julgado brasileiro, visto que se trata de jurisdições distintas. Como afirma Alexandre Salim, ―não há condição de hierarquia entre o TPI e o STF, pois inexiste relação jurídica entre a decisão interna e a decisão internacional‖ (SALIM, 2007, p. 13).

De qualquer forma, convém esclarecer que a admissibilidade da revisão criminal apenas em favor do réu consta da legislação ordinária (artigos 621 a 631 do Código de Processo Penal), e não da Constituição.

17 STF: ―EMENTA. (...) NECESSIDADE DE REPRESSÃO À TORTURA - CONVENÇÕES INTERNACIONAIS. - O Brasil, ao tipificar o crime de tortura contra crianças ou adolescentes, revelou-se fiel aos compromissos que assumiu na ordem internacional, especialmente àqueles decorrentes da Convenção de Nova York sobre os Direitos da Criança (1990), da Convenção contra a Tortura adotada pela Assembleia Geral da ONU (1984), da Convenção Interamericana contra a Tortura concluída em Cartagena (1985) e da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), formulada no âmbito da OEA (1969). Mais do que isso, o legislador brasileiro, ao conferir expressão típica a essa modalidade de infração delituosa, deu aplicação efetiva ao texto da Constituição Federal que impõe ao Poder Público a obrigação de proteger os menores contra toda a forma de violência, crueldade e opressão (art. 227, caput, in fine) (...).‖ HC 70389, Rel.: Min. Sydney Sanches. Rel. p/ Acórdão: Min. Celso de Mello, Tribunal Pleno, DJ 10/08/2001.

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Assim, diante do status hierárquico do Estatuto de Roma na ordem interna, não há falar em incompatibilidade com a Constituição.

Há, ainda, quem defenda a possibilidade de relativização da coisa julgada, sob o argumento de que a busca pela segurança jurídica não pode suplantar princípios expressos na Constituição, como a prevalência dos direitos humanos, princípio igualmente norteador do TPI (MANTOVANI e BRINA, 2006).

Conclui-se, então, que o sistema do Estatuto de Roma, no que se refere à relativização da coisa julgada nacional, é compatível com a Constituição.

CONCLUSÃO

A importância do Tribunal Penal Internacional é inegável. Suas regras demonstram a preocupação da comunidade internacional em evitar a impunidade dos agentes responsáveis pelas mais graves violações aos direitos humanos, servindo de estímulo para que novas condutas de igual gravidade sejam evitadas. No âmbito interno, o Brasil, desde a edição da Constituição de 1988, já propugnava, no art. 7º do ADCT, pela criação de um tribunal internacional dos direitos humanos, como é o caso do TPI. Assim é que o Estatuto de Roma foi ratificado e, posteriormente, promulgado no País, por meio do Decreto n.º 4.388, de 25 de setembro de 2002. A decisão política optou, portanto, por dar primazia às normas internacionais frente a eventuais conflitos com a ordem interna, mesmo porque lastreada, à época, nos arts. 1º, III, e 4º, II, VI e VII, da CF.

Apesar disso, a operacionalização dos preceitos do Estatuto não foi matéria fácil. Mesmo depois de quase dez anos da sua ratificação, as questões abordadas no presente estudo, como a pena de prisão perpétua, a ausência de tipificação legal dos crimes e da respectiva cominação das penas e a relativização da coisa julgada, continuam sendo discutidas.

As respostas e propostas aqui apresentadas não são e nem têm a pretensão de ser definitivas. Todavia, a conclusão a que se chega é que a interpretação sistemática da ordem constitucional deve permear as discussões existentes acerca da compatibilidade do Estatuto de Roma e a Constituição brasileira. Não há razões para o Brasil, em um primeiro momento, prever o princípio da prevalência dos direitos humanos nas relações internacionais e propugnar pela formação de um tribunal de direitos humanos, e, depois, utilizar a mesma Constituição para obstaculizar a cooperação com tal órgão internacional. Assim, na ponderação entre as garantias constitucionais asseguradas no sistema penal pátrio e as disposições do Estatuto de Roma, deve-se buscar a prevalência destas últimas, levando-se em conta não apenas o escopo precípuo da criação do TPI, mas as próprias regras contidas no texto constitucional.

Verifica-se, por fim, que a compatibilização entre o direito internacional e o direito interno torna possível o exercício da jurisdição primária pelo Brasil, em relação aos crimes sob a competência do TPI, atendendo-se aos compromissos assumidos pelo País no plano do direito internacional e ao princípio constitucional da prevalência dos direitos humanos nas relações internacionais. Destarte, não se pode perder de vista que tanto a Constituição quanto as normas do Estatuto de Roma têm uma finalidade em comum, que é a proteção do ser humano.

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