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4. PUBLICIDADE E VIOLAÇÃO À IMAGEM-ATRIBUTO DE GÊNERO

4.4 ANÁLISE DA PUBLICIDADE ATENTATÓRIA À IMAGEM DE GÊNERO

4.4.1 A formação de estereótipos

Um dos parâmetros comumente apontados para definir se a publicidade viola a igualdade de gênero é a constatação quanto ao fato de ela reproduzir ou não estereótipos784. Afinal, se as ferramentas do marketing são amplamente capazes de alterar a imagem de produtos e marcas785, certamente o são também em relação à imagem de outras coisas, a exemplo das coletividades. Faz-se necessária, portanto, uma incursão no tema.

O uso de estereótipos na veiculação de conteúdo de massa – incluindo, além da publicidade, programas de televisão, revistas, filmes, dentre outros – está relacionado à efetividade na transmissão da mensagem, tendo em vista que eles facilitam o reconhecimento da imagem a ser transmitida786. Funciona “como um discurso social amplamente difundido que é renovado, atualizado e solidificado a cada situação de uso”, sendo inerente às atividades comunicativas, à medida que estas “instauram um espaço de aproximação e de reconhecimento através da evocação desse domínio referencial marcado pela convencionalidade”787

.

781

Entendendo em sentido contrário: AMATRUDO, Rosangela. Publicidade Abusiva. Revista de Direito do

Consumidor, São Paulo, v. 52, 2004, p. 204.

782 Conforme aponta Karl Larenz (Metodologia da Ciência do Direito. José Lamego (trad.). 7. ed. Lisboa:

Calouste Gulbenkian, 2014, p. 410), o “valorar” não é algo meramente irracional ou em ampla escala

condicionado emocionalmente. O jurista deve materializar os valores. Contudo, diferentemente do filósofo da moral, as pautas valorativas do jurista estão dadas no ordenamento, ainda que sua aplicação necessite de outros atos de concretização.

783 Em sentido próximo, Miguel Calmon Dantas sustenta, acerca do dirigismo constitucional, que a questão

verdadeiramente complexa é saber qual o conteúdo e extensão da vinculação do legislador aos fins e aos objetivos constitucionais (Constitucionalismo Dirigente e Pós-Modernidade. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 322- 323).

784 MAZON, Marília. O Controle e a Prevenção do Dano ao Consumidor Perante a Publicidade Abusiva. Revista

de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 78, 2011, p. 248; XAVIER, op. cit., p. 136.

785 TONI, Deonir de. Administração da Imagem de Produtos: desenvolvendo um instrumento para a

configuração da imagem de produto. Tese (doutorado em Administração). Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2005, p. 34.

786

SHEEHAN, Kim. Controversies in Contemporary Advertising. 2. ed. Los Angeles: Sage, 2014, p. 100.

787 LYSARDO-DIAS, Dylia. A Construção e a Desconstrução de Estereótipos pela Publicidade Brasileira. In:

É algo com ainda maior destaque na publicidade, onde a limitação de tempo ou espaço é marcante788. Assim, no âmbito publicitário, a estereotipização é um modo deliberadamente utilizado para persuadir o consumidor789, calcado no objetivo de facilitar a identificação da mensagem através de um menor esforço cognitivo, aumentando a eficácia no reconhecimento da informação transmitida790. Sua construção está relacionada à categorização, generalização e previsão; são imagens coletivas de aspectos homogeneizados de um mesmo grupo, o qual é representado por um “modelo”791

.

Kim Sheehan entende que a indústria publicitária utiliza-se dos estereótipos de gênero para facilitar a comunicação, e que os efeitos negativos – representação de papéis sociais limitados, sistema de valores focado na beleza externa e objetificação – seriam não intencionais792. A questão da intencionalidade, no entanto, não é relevante para a análise do problema, tendo em vista que a responsabilidade pela publicidade no âmbito do consumidor prescinde da análise de dolo e até mesmo de culpa, sendo objetiva793.

Brisa Lopes de Mello Ferrão sustenta uma diferença entre “identificação coletiva” e “estigmatização de grupo”, estando este conceito relacionado a “um efeito prejudicial para a imagem”794

, ao passo que o primeiro guardaria pertinência com o favorecimento da imagem do grupo, “sendo uma forma eficiente de comunicar ideias”795

. Neste sentido, o estereótipo teria uma conotação ruim, diferentemente da identificação coletiva.

788 SHEEHAN, op. cit., p. 76. Conforme aponta a autora, na televisão, por exemplo, os comerciais costumam

durar trinta segundos.

789 KAMLOT, Daniel. Persuasão: a essência da propaganda. In: Marketing, mar. 2012, p. 68. O autor cita outros

modos de persuasão pela publicidade: ”(2) a substituição de nomes, como no caso de carros usados sendo vendidos como “seminovos”; (3) a criação de inimigos a serem combatidos, como vírus em uma campanha de vacinação, ou os mosquitos em uma campanha contra a dengue; (4) o apelo à autoridade, com dentistas e médicos anunciando cremes dentais e medicamentos, por exemplo; e (5) a afirmação e repetição, visto que ao afirmar algo sem vacilar demonstra-se certeza, a qual é reforçadora da persuasão, e a repetição pode facilitar a aceitação do que é dito, pelo receptor se tornar mais acostumado ao que lhe é comunicado”.

790 LYSARDO-DIAS, op. cit., p. 28-29. 791 Ibidem, p. 27.

792

SHEEHAN, op. cit., p. 104-108.

793 AMARAL, Luiz Otavio de Oliveira. Teoria Geral do Direito do Consumidor. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 2010, p. 175. Em sentido contrário: CAMPOS, Maria Luiza de Saboia. Publicidade: responsabilidade civil perante o consumidor. São Paulo: Cultural Paulista, 1996, p. 184.

794

FERRÃO, Brisa Lopes de Mello. A Dimensão Coletiva do Direito Individual à Imagem de Indivíduos

Pertencentes a Grupos Sociais Vulneráveis ou o Direito à Imagem de Minorias. Tese (doutorado em Direito).

Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012, p. 33. Em verdade, a autora faz referência a “um efeito prejudicial para a imagem das minorias”. Contudo, preferiu-se a supressão da expressão “das minorias”, em razão de que, ao menos nas relações de gênero, embora as mulheres apresentem-se sujeitas a maior vulnerabilidade, os homens também são prejudicados pela manutenção das relações tradicionais, sendo a adoção do termo “minoria” intuitivamente contrária a esta ideia, por dificuldade em se conceber que todas as pessoas seriam “minoria”.

795 “A representação coletiva não é intrinsecamente má, sendo uma forma eficiente de comunicar ideias. Por

exemplo, a representação coletiva das mulheres como profissionais altamente qualificadas pela mídia de massa é perfeitamente adequada. Diferentemente, a associação de imagens das mulheres à cerveja em uma propaganda resulta em uma estigmatização de grupo – a mulher é representada como um objeto de prazer masculino e

Sem adentrar ainda o mérito acerca das possibilidades de representação de gênero, o que fica claro diante das explanações feitas é que a estereotipização/identificação de grupo é algo inevitável para o âmbito publicitário. E, neste contexto, a diferença de representação – não necessariamente com conotações negativas – entre homens e mulheres é extremamente comum, tendo em vista que a percepção da diferença visual entre um e outro é das mais rápidas796.

Contudo, a questão a ser investigada não se refere simplesmente à representação que se dá a um ou outro grupo. A mensagem transmitida pela publicidade, ao construir a imagem- atributo em relação a homens e mulheres, também influencia o modo de agir das pessoas. Conforme leciona Kenneth Ewart Boulding, “a imagem é construída como um resultado de todas as experiências anteriores do possuidor da imagem”797

. Sempre que uma mensagem ou informação de qualquer tipo – inclusive as publicitárias – alcança uma pessoa é possível que haja uma alteração, ainda que sutil, na imagem que ela tem daquele objeto ao qual a mensagem faz referência798, modificando, assim, a representação do mundo para aquela pessoa799.

A imagem que se tem de algo ou alguém pode ser resistente a mudanças, fazendo o indivíduo simplesmente rejeitar a mensagem que entra em conflito com o conceito estabelecido anteriormente800. Contudo, se mais mensagens ou informações são recebidas pelo indivíduo e elas continuamente contradizem a imagem que se tem, inicia-se um processo de dúvidas, que pode ocasionar uma superação da imagem previamente aceita801. Ou seja, a resistência criada pelas pessoas à manutenção da imagem costuma não ser infinita, sendo possível que uma mensagem repetida com certa frequência penetre o bloqueio e altere a imagem até então vigente802.

E essa mudança na imagem acarreta igualmente uma mudança nos padrões de comportamento das pessoas, tendo em vista que informações diferentes possibilitam

associada a outro objeto da mesma categoria, neste caso, a cerveja” (ibidem, p. 32-33). Não se concorda exatamente com o exemplo fornecido pela autora, conforme explanação que desenvolvida adiante.

796 JHALLY, Sut. What’s Wrong with a Little Objetification?. In: Media/Cultural Studies: critical approaches.

Rhonda Hammer, Douglas Kellner (org.). Nova Iorque: Peter Lang, 2009, p. 316.

797 BOULDING, Kenneth Ewart. The Image: Knowledge in Life and Society. Ann Arbor: University of

Michigan Press, 1961, p. 6. Embora o autor utilize o termo em uma conotação ligeiramente mais ampla (ibidem, p. 5-6), certamente suas colocações são aplicáveis ao sentido aqui definido.

798

Ibidem, p. 7.

799 TONI, Deonir de. Administração da Imagem de Produtos: desenvolvendo um instrumento para a

configuração da imagem de produto. Tese (doutorado em Administração). Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2005, p. 29.

800

BOULDING, op. cit., p. 8.

801 Ibidem, p. 8-9. 802 Ibidem, p. 12.

revalorações803. É comum que as pessoas, em geral, busquem padrões de comportamento. Os exemplos podem vir da família, dos amigos, de pessoas famosas (esportistas, artistas, políticos, dentre outros). No agir cotidiano, as pessoas não refletem sobre cada um de seus atos, sendo boa parte deles realizados com base no que se observa cotidianamente. Neste contexto, as imagens que foram formadas, presentes na mente de todos os indivíduos, fornecem modelos sobre o funcionamento do mundo, e “dirigem as ações e limitam a forma bem definida de pensar e agir”804

.

Portanto, as representações de gênero estabelecidas pela publicidade são fatores que influenciam em grande medida a própria construção de identidades das pessoas, as quais se refletem nos modelos estabelecidos pelos anúncios805, vindo a influenciar também a forma de agir dos indivíduos806. A publicidade atua como uma técnica de formação de consenso, utilizando-se de modelos de representação para atingir as concepções coletivas807.

Cientes dessa possibilidade, muitas vezes as agências publicitárias desenvolvem campanhas voltadas exatamente para a criação de um consumidor estereotipado, agindo elas não apenas como instrumento de oferta, mas também de doutrinamento dos consumidores acerca das pautas comportamentais que são veiculadas na mídia808, especialmente através da demonstração de um produto ou atitude como sendo execrável ou desejável809. E estas pautas, conforme será examinado, poderão estar em desacordo com os preceitos constitucionais.

Neste sentido, a formação de estereótipos pela publicidade pode desrespeitar a Constituição não apenas por trazer uma representação de grupo violadora dos direitos dos seus integrantes, mas também por criar e reforçar comportamentos contrários a estes direitos.

803 Ibidem, p. 7. 804 TONI, op. cit., p. 29.

805 SILVA, Ricardo André de Barros. A Publicidade e um Novo Gênero Masculino. Dissertação (mestrado em

Publicidade e Marketing). Instituto Politécnico de Lisboa, Lisboa, 2013, p. 16.

806 Assim, uma das funções da publicidade seria a de criação e fixação de hábitos: “a publicidade comercial,

utilizando técnicas argumentativas, que tocam a sensibilidade e as emoções dos indivíduos, tende a criar novas necessidades, forjadas sob as vestes de hábitos de consumo, não raro impulsionadas por desejos latentes do indivíduo, que pouca ou nenhuma correlação mantém com o produto consumido. Depois de ‘fixado’ o novo hábito de consumo, a publicidade comercial teria o propósito de manter o consumidor satisfeito, levando-o a estabelecer uma relação de fidelidade com o produto” (NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Publicidade

Comercial: proteção e limites na Constituição de 1988. São Paulo: Verbatim, 2015, p. 39).

807

AMARAL JÚNIOR, Alberto do. O Princípio da Vinculação da Mensagem Publicitária. Revista de Direito do

Consumidor, São Paulo, v. 14, 1995, p. 42.

808 XAVIER, op. cit., p. 122-123.

809 Maria Elizabete Vilaça Lopes, ao correlacionar a indução a um comportamento apenas com o estímulo ao

consumo de um produto (op. cit., p. 174). Neste sentido também: AMATRUDO, Rosangela. Publicidade Abusiva. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 52, 2004, p. 193, quando sustenta que “as

publicidades através de meios persuasivos, preocupa-se muito com o que os olhos do consumidor irão ver, ou seja, preocupa-se em agradar ainda que ilusoriamente os consumidores para que estes não tenham qualquer dúvida e por um simples impulso adquira o produto anunciado”; e ainda: MAZON, op. cit., p. 226, ao mencionar que a publicidade “ao anunciar os produtos e serviços oferecidos com suas técnicas de persuasão, estimula o consumo e atinge seu objetivo comercial de venda”.

As imagens referentes ao papel do homem e da mulher influenciam a realidade810. Assim, por exemplo, com o fim da Segunda Guerra Mundial, e o retorno dos homens aos seus postos de trabalho até pouco tempo ocupados por mulheres811, a publicidade de eletrodomésticos desenvolveu forte campanha de felicidade na figura da mãe e da “rainha do lar”812

, visando ao afastamento das mulheres do mercado de trabalho.

Portanto, a publicidade violadora da igualdade de gênero não atinge apenas a imagem- atributo coletiva, mas também, mediatamente, o livre desenvolvimento da personalidade813. Assentada esta ideia, passar-se-á a analisar alguns parâmetros que costumam figurar nos debates acerca da desigualdade de gênero na publicidade.