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Subprincípio da igualdade como dever de atuação fática

3. O DIREITO À IGUALDADE DE GÊNERO

3.1 DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO DO DIREITO À IGUALDADE

3.1.3 Subprincípios da igualdade na atuação fática

3.1.3.3 Subprincípio da igualdade como dever de atuação fática

Considerando a definição exposta anteriormente, de que os direitos fundamentais, em geral, podem ser analisados sob uma ótica de prestação e abstenção, normativa e fática, torna- se possível fazer referência à igualdade como dever de atuação fática, ou seja, à obrigação prestacional no plano da realidade. O preceito igualitário não está integralmente atendido apenas com a elaboração normativa e sua aplicação de forma igual; é necessário que haja também a execução das disposições adotadas, transpondo-se do texto à realidade. Em relação à Constituição de 1988, Cármen Lúcia Antunes Rocha salienta que a própria redação dos incisos I, III e IV, do art. 3º, mostram que houve uma mudança essencial quanto ao conteúdo da igualdade, havendo no novo texto verbos que conclamam um comportamento ativo, exaltando que é necessário promover a mudança na realidade do país373. Não sendo uma noção de maior relevância para este trabalho, não se fará maiores considerações374.

371

Robert Alexy também faz este paralelo (op. cit., p. 393).

372 Nesta proposta, Flávia Piovesan fez um estudo acerca de como teria sido a igualdade de gênero concretizada

nos primeiros vinte anos da Constituição (Igualdade de Gênero na Constituição Federal: os direitos civis e políticos das mulheres no Brasil. In: Constituição de 1988: o Brasil 20 anos depois. Brasília: Senado Federal, 2008, v. 1). Contudo, conforme já apontado aqui, a ótica foi apenas da atuação do Estado: Legislativo, Executivo e Judiciário.

373 ROCHA, op. cit., p. 289.

374 Embora se possa exemplificar: frente à desigualdade socioeconômica, o Estado elabora dispositivo normativo

que visa a garantir que todos aqueles que possuem renda abaixo da linha da pobreza recebam uma

complementação pecuniária até atingir este valor. Feitos os cadastros, o Estado passa a depositar quantia inferior ao necessário, ainda que divida o dinheiro total do programa de forma igual para os necessitados. Há o respeito à

3.2. O DIREITO À IGUALDADE DE GÊNERO

Ao longo do tópico anterior foi feita uma análise acerca da evolução do direito à igualdade e seu conteúdo. Argumentou-se que, para além de uma perspectiva do Estado, o direito à igualdade também vincula os particulares. Ademais, para além das noções de aplicação e elaboração normativa, este princípio limita juridicamente a atuação no plano concreto, devendo-se manter, no âmbito do exercício “liberdade”, o respeito ao preceito isonômico.

Neste tópico, abordar-se-á o tema da igualdade de gênero. Para tanto, faz-se necessário, ao começo, delimitar o conceito de “gênero”375. Alain Supiot sustenta que a noção de gênero inicialmente faria referência à ideia de “gênero humano”, que englobaria os dois sexos376 e que, ao transcender a diferença entre eles, permitia pensar o ser humano como um todo que engloba o masculino e o feminino377, ou seja, tinha o significado de “ser humano”. Contudo, este entendimento foi gradativamente sendo substituído pela ideia de uma “espécie humana”, e o sentido de “gênero” foi alterado, especialmente pela doutrina dos “gender

studies” (estudos de gênero) – literatura de origem anglo-saxônica378 – para designar a condição relativa ao sexo379, masculino ou feminino, e à possibilidade de escolhê-lo e alterá- lo380.

igualdade como dever de elaboração normativa bem como de aplicação igual da norma, mas não há

cumprimento ao dever de atuação fática. O mesmo desrespeito é observado quando, malgrado o Estado tenha cumprido seu dever de elaboração normativa, comprometendo-se a fornecer assistência judiciária gratuita aos necessitados – de forma a prover a igualdade no processo – não o cumpre, havendo a desigualdade fática (ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. 2. ed. Virgílio Afonso da Silva (trad.). São Paulo: Malheiros, 2011, p. 416. O autor, porém, parece adotar um conceito de igualdade fática que engloba as noções aqui relacionadas ao plano fático e o que foi definido como dever de elaboração normativa).

375 Para uma crítica à utilização do termo, conferir: LOUIS, Marie-Victoire. Diga-me: o que significa gênero?.

Ana Liési Thurler (trad.). Revista Sociedade e Estado, v. 21, n. 3, 2006, p. 711-724.

376 SUPIOT, op. cit., p. 42. O autor sustenta que com esta premissa de que haveria o gênero (em latim, genus)

humano é que teria sido desenvolvido o chamado Direito das Gentes (em latim, gens, e não referida expressão, [Jus] gentium).

377 Ibidem, p. 44.

378 TAHON, Marie-Blanche. Et si le sexe déconstruisait le genre?. In: Les Femmes dans l’espace Public:

intinéraires français et italiens. Christiane Veauvy (org.). Paris: Maison des sciences de l’homme, 2004, p. 149.

379 Pode-se perceber certa crítica a esta mudança em: HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos: o breve século XX:

1914-1991. 2. ed. Marcos Santarrita (trad.). São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 306. Nesta obra, publicada pela primeira vez em 1994, ao utilizar o termo “sexo” para fazer referência às mulheres, o autor abre parênteses para comentar: “que as ideólogas agora insistiam que devia chamar-se ‘gênero’”.

380 SUPIOT, op. cit., p. 44. Conforme relata Dagmar Estermann Meyer: “algumas feministas se viram frente ao

desafio de demonstrar que não são características anatômicas e fisiológicas, em sentido estrito, ou tampouco desvantagens sócio-econômicas tomadas de forma isolada, que definem diferenças apresentadas como

justificativa para desigualdades entre mulheres e homens. O que algumas delas passariam a argumentar é que são os modos pelos quais determinadas características femininas e masculinas são representadas como mais ou menos valorizadas, as formas pelas quais se distingue feminino de masculino, aquilo que se torna possível pensar

O “gênero” passou a ser uma categoria pela qual se analisa as construções sociais e culturais referidas aos diferentes sexos, bem como as consequências destas construções381, normalmente fazendo referência às categorias “masculino” e “feminino”382

. A análise sobre gênero, portanto, não está voltada apenas às mulheres, implicando exame das relações que são construídas social e culturalmente entre homens e mulheres383, buscando-se afastar a ideia das desigualdades biologicamente determinadas384. Ainda que, comparando-se a média de homens e mulheres, seja possível indicar diferenças na formação corporal e cerebral que infiram maior habilidade para uma ou outra tarefa específica, as capacidades individuais que, em geral, devem nortear a aptidão de cada pessoa para as atividades que a serem desenvolvidas385.

Mais importante do que estatísticas com números equiparados para cada gênero é a possibilidade de que cada um possa ser o deseja e ser igualmente respeitado por isso, ainda que isso implique diferença nos índices386. Deve-se fomentar, por exemplo, o fim da separação do trabalho, a ideia de que “existem trabalhos de homens e trabalhos de mulheres”387

. Isso não significa que não possa haver áreas onde, por escolha própria dos indivíduos de um ou outro gênero, a concentração seja maior de um ou outro. De igual forma, a manutenção de algumas divisões entre homens e mulheres – a exemplo do que ocorre nos

e dizer sobre mulheres e homens que vai constituir o que é inscrito no corpo e definido e vivido como masculinidade e feminilidade, em uma dada cultura, em um determinado momento histórico. Um grupo de estudiosas anglo-saxãs começaria a utilizar, então, o termo gender, traduzido para o português como gênero, a partir do início da década de setenta do século passado” (Teorias e Políticas de Gênero: fragmentos históricos e desafios atuais. Revista Brasileira de Enfermagem, Brasília, v. 57, n. 1, 2004, p. 14).

381 BARBOSA, Renata Maria. Direitos Humanos, Gênero e Políticas Internacionais de Combate à Não

Discriminação da Mulher no Mundo Globalizado. Boletim Científico da Escola Superior do Ministério Público

da União, Brasília, n. 37, 2012, p. 309.

382

Utilizando o termo somente neste sentido binário: ROCHA, Joceli Scremin da. O Direito Penal do Gênero como Cláusula Pétrea à Luz da Emenda Constitucional n. 45/2004. Boletim Científico da Escola Superior do

Ministério Público da União, Brasília, n. 40, 2013, p. 191; SOUZA, Sílvia Rita. A Mulher nos Espaços de Poder

Político. Cadernos Adenauer XIV, n. 3, 2013, p. 183; SANTOS, Silvana Mara de Morais dos; OLIVEIRA, Leidiane. Igualdade nas Relações de Gênero na Sociedade do Capital: limites, contradições e avanços. Revista

Katálysis, Florianópolis, v. 13, n. 1, 2010, p. 12.

383 MEYER, Dagmar Estermann. Teorias e Políticas de Gênero: fragmentos históricos e desafios atuais. Revista

Brasileira de Enfermagem, Brasília, v. 57, n. 1, 2004, p. 15.

384

Ibidem, p. 15.

385 Neste sentido Alice Monteiro de Barros afirma que, ao invés de adotarem um abordagem (neo)essencialista,

há autores que “têm sido mais felizes na construção do gênero, reconhecendo as implicações das diferenças físicas, biológicas e reprodutivas no seu conceito, sem, entretanto, arriscar-se a procurar as causas da segregação profissional entre os sexos, numa remota possibilidade neurobiológica na divisão entre inclinações e aptidões masculinas e femininas” (Cidadania, Relações de Gênero e Relações de Trabalho. Revista do Tribunal Regional

do Trabalho da 3ª Região, Belo Horizonte, v. 47, n. 77, 2008, p. 69).

386 HOBSBAWM, op. cit., p. 311-312, nota de rodapé s/n. 387

KERGOAT, Daniéle. Divisão Sexual do Trabalho e Relações Sociais de Sexo. Miriam Nobre (trad.). In:

Trabalho e Cidadania Ativa para as Mulheres: Desafios para as Políticas Públicas. São Paulo: Coordenadoria

esportes em que a característica biológica é predominante, ou em anúncios publicitários voltados para um dos gêneros388 – não necessariamente desrespeita a ideia referida.

O que deve ser abolido é que uma pessoa tenha sua opção embaraçada sob qualquer aspecto389, simplesmente pelo fato de que aquele campo é mais afeito a um ou outro gênero, tendo em vista que mesmo levando-se em consideração que há diferenças biológicas, elas não são suficientes para afastar o caráter predominantemente sociocultural das construções ainda vigentes com base no gênero390.

Há quem afirme, assim, que a referência à oposição entre “masculino” e “feminino” como construção social seria até mesmo algo banal391, de tanto afirmado. Isto, contudo, não significa necessariamente que tal entendimento deve ser superado. Afinal, também o Direito, o Estado, a Democracia são construções sociais, e não se imagina a civilização ocidental sem elas. Portanto, deve-se buscar fundamentar a superação deste entendimento não pelo simples fato de que não seria algo “natural”, mas sim pelo conteúdo do princípio da igualdade – algo que também é uma noção construída pela sociedade392.

Embora se entenda neste trabalho que o modelo binário masculino/feminino seja insuficiente para a complexidade da realidade contemporânea, tanto social quanto jurídica393, isto não pode significar negar a existência das categorias atuais, que descrevem grande parte da sociedade394. O autoentendimento como masculino ou feminino é uma das mais relevantes definições experimentadas pelos indivíduos na determinação de suas identidades395. A referida perspectiva binária pode ser superada, mas de forma a abarcar novas categorias396, e

388 Exemplos claros seriam produtos como absorventes ou pílulas anticoncepcionais. Uma abordagem mais

aprofundada do tema será feita no capítulo seguinte.

389 Embora se reconheça que, um modo eficiente de atingir esse nível de respeito é exatamente a existência de

um percentual mais próximo do equilíbrio numérico em tais setores.

390 BARROS, op. cit., p. 69. 391 TAHON, op. cit., p. 149.

392 ROTHENBURG, Walter Claudius. Igualdade Material e Discriminação Positiva: o princípio da isonomia.

Revista Novos Estudos Jurídicos, v. 13, n. 2, 2008, p. 78.

393 “As identidades transgêneras têm-se tornado mais sutis e complexas do que eram (...) por diferentes

caminhos, as novas identidades que têm sido construídas são incompatíveis com as divisões binárias e estereotipadas, desafiando dessa maneira soluções prontas baseadas na patologização das transgressões de gênero” (SUIAMA, Sérgio Gardenghi. Um Modelo Autodeterminativo para o Direito dos Transgêneros. Boletim

Científico da Escola Superior do Ministério Público da União, Brasília, n. 37, 2012, p. 102).

394 Sabe-se que, ao privilegiar o modelo binário por sua suficiente adequação com a realidade, acaba-se

reproduzindo um modelo que se entende não totalmente idôneo. Contudo, é necessário um aprofundamento da teoria que nega o caráter binário relativo ao gênero, de forma a produzir algum consenso, para que possa

respaldar trabalhos de outras áreas, a exemplo do presente, tendo em vista que não caberia aqui uma investigação neste sentido.

395 JHALLY, Sut. What’s Wrong with a Little Objetification?. In: Media/Cultural Studies: critical approaches.

Rhonda Hammer, Douglas Kellner (org.). Nova Iorque: Peter Lang, 2009, p. 316.

396 “Uma estratégia jurídica de caráter inclusivo deveria, em primeiro lugar, garantir soluções jurídicas a todas as

não eliminar as existentes que se mostrem adequadas. Assim, haverá, em geral, contraposição entre o masculino e feminino.