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2. IMAGEM-ATRIBUTO E SUA DIMENSÃO TRANSINDIVIDUAL

2.4. O DIREITO À IMAGEM-ATRIBUTO DE COLETIVIDADES

Em uma análise histórica, a tutela positivada dos direitos humanos, densificada no contexto da Revolução Francesa, estava intimamente ligada à ideia de indivíduo, não sendo possível visualizar a titularidade dos direitos para grupos sociais231. Em meados do século XIX, a família passa a ganhar certo amparo, porém é só no final daquele século que outros grupos têm seus direitos recohecidos, sendo exemplos os partidos políticos e os sindicatos, malgrado ainda sob a visão tradicional do liberalismo individualista232.

Posteriormente, esta noção é ampliada, vindo a titularidade transindividual de direitos adquirir grande relevância com os chamados direitos de “terceira dimensão”, que “trazem como nota distintiva o fato de se desprenderem, em princípio, da figura do homem-indivíduo como seu titular, destiando-se à proteção de grupos humanos (povo, nação)”233, havendo conexão com o ideal de solidariedade234.

Sobre o tema, Dimoulis e Martins sustentam haver duas categorias de titularidade coletiva dos direitos fundamentais: uma abarca os “direitos coletivos tradicionais”, a exemplo

228 SILVA NETO, op. cit., p. 742.

229 Talvez, assim, um termo mais adequado que “imagem-atributo” seria “imagem-conceito”, entendendo-se aqui

que isto facilitaria a compreensão inicial acerca da diferença entre os sentidos de “imagem” (confrontada com “retrato”). Contudo, em face da expressão já difundida pela doutrina, não se adotará a sugestão realizada.

230 Contudo, mesmo que se entendesse pela não existência de um “direito à imagem-atributo”, e desde que

reconhecido o fato de que existem outras normas de direitos fundamentais que tutelam as relações aqui descritas, não haveria prejuízo lógico à argumentação que se seguirá (embora seja possível visualizar algum prejuízo retórico, pela estranheza que poderia causar a alegação de que as situações abordadas estariam tuteladas, por exemplo, por um direito à honra).

231 RIVERO; MOUTOUH, op. cit., p. 106. 232 Ibidem, p. 106.

233

SARLET; MARINONI; MITIDIERO, op. cit., p. 276.

234 PÉREZ LUÑO, Antonio-Enrique. Las Generaciones de Derechos Humanos. Revista Direitos Emergentes na

do direito de reunião, de associação ou de criação de um partido político, que são direitos titularizados individualmente, embora sua expressão seja coletiva, pressupondo uma pluralidade de pessoas235. A outra categoria faz referência aos direitos de natureza coletiva, cuja teorização e desenvolvimento ocorreram principalmente após a Segunda Guerra Mundial, a exemplo do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e de alguns direitos dos consumidores, e que se distinguem à medida que a própria titularidade do direito é coletiva236. Passa-se, assim, a serem feitas menções a direitos transindividuais237, que são aqueles que se referem a interesses que “superam núcleos individuais”238, que são “transcendentes à

órbita individual do sujeito de direito”239

. Estes interesses adquirem cada vez mais relevância nos ordenamentos jurídicos240, especialmente em virtude da noção de que as diversas formações sociais “são contextos necessários para o desenvolvimento da pessoa”241

.

O interesse transindividual é aquele que se refere a uma coletividade por sua própria natureza, não gozando de tal qualificação pelo mero fato de pertencer a mais de um indivíduo242, mas por atingir diversas pessoas de forma homogênea. Desta forma, uma decisão que afete interesses transindividuais não será percebida apenas por um indivíduo, sendo seus efeitos extensíveis à toda coletividade ou, ao menos, a determinado grupo243.

A Constituição Federal prevê o direito à imagem no capítulo “Dos direitos e deveres individuais e coletivos”. Neste sentido, os direitos que, inicialmente tidos como individuais, possam ser exercidos em uma dimensão transindividual, também são tuteláveis em sua expressão coletiva. Isto porque, embora o direito à imagem, cuja trajetória remonta ao século XIX, tenha surgido como um direito individual, é certo que, com a evolução da teoria dos

235 DIMOULIS; MARTINS, op. cit., p. 56. 236 Ibidem, p. 56.

237 Também chamados de “metaindividuais”, “supraindividuais” ou “sobreindividuais” (SANTOS, Ronaldo

Lima dos. Evolução Dogmática da Tutela dos Interesses Individuais Homogêneos na Justiça do Trabalho: da substituição processual à sentença genérica. Revista Jurídica da Procuradoria Geral do Estado do Paraná, Curitiba, n. 4, 2013, p. 84.

238 OLIVEIRA, James Eduardo. Código de Defesa do Consumidor: anotado e comentado: doutrina e

jurisprudência. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2007, p. 461.

239 SILVA NETO, Manoel Jorge e. Proteção Constitucional dos Interesses Trabalhistas: difusos, coletivos e

individuais homogêneos. São Paulo: LTr: 2001, p. 29.

240 Hans Kelsen, em obra publicada pela primeira vez na década de 1930, já mencionava – embora com pouco

destaque – a existência de condutas de caráter coletivo reguladas pelo ordenamento, ou seja, obrigações dos indivíduos em face de toda a comunidade jurídica, e não apenas de outro indivíduo ou grupo (Teoria Pura do

Direito. João Baptista Machado (trad.). 8. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2014, p. 35).

241 RIVERO; MOUTOUH, op. cit., p. 107. 242

Ricardo Luis Lorenzetti, neste sentido, pontua que “(...) todos os fenômenos de cotitularidade como os de condomínio pertencem a muitas pessoas, mas são passíveis de divisão em partes individuais” (Teoria da Decisão

Judicial: fundamentos de direito. 2. ed. rev. Bruno Miragem (trad.). São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p.

272).

243

MARINONI, Luiz Guilherme. Da Teoria da Relação Jurídica Processual ao Processo Civil do Estado Constitucional. In: A Constitucionalização do Direito: fundamentos teóricos e aplicações específicas. Cláudio Pereira de Souza Neto; Daniel Sarmento (coord.). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 520.

direitos fundamentais, as possibilidades de atuação desses direitos vão sendo acumuladas, somando-se às já existentes244. Quando, portanto, a ciência jurídica começa a reconhecer o fenômeno da titularidade coletiva de direitos, essa qualidade não deve ser aplicada apenas aos novos direitos que surjam neste contexto, mas a todos já existentes, desde que compatíveis245. É uma marca da ciência jurídica atual, além do surgimento de novos direitos, o reconhecimento da profunda modificação de diversos institutos jurídicos já existentes, havendo uma preocupação em relação à tutela dos interesses coletivos246.

Neste trabalho já foi feita referência à existência de tutela à imagem-atributo de algumas instituições, empresas, países. Dentro desta ótica, no rumoroso caso “Glória Trevi”, julgado em 2002, o STF decidiu que seria possível a coleta de DNA de recém-nascido, através da placenta, de forma a afastar a paternidade de polícias federais que haviam sido acusados de estupro coletivo que teria resultado na gravidez. Dentre outros fundamentos, além da proteção “à honra e à imagem” de cada um dos policiais federais acusados (aqueles que custodiavam a reclamante), haveria também o direito à imagem da própria instituição “Polícia Federal” e do Brasil no exterior, aptos a limitar o direito à intimidade da reclamante247. De forma semelhante, o STF decidiu pela competência da Justiça Militar para julgar delito de concussão de servidor municipal que agia na qualidade de Secretário de Junta de Serviço Militar tomando como fundamento a violação à imagem da Administração Militar perante a opinião pública248.

Estes exemplos, somados aos já referidos de empresas e países, contudo, não representam a mesma situação que será desenvolvida adiante. Os julgados mencionados abordam o direito à imagem-atributo de entidades que são compostas por uma pluralidade de pessoas, mas que, no entanto, apresentam-se destacadamente, tendo em vários casos personalidades jurídicas próprias, atuando em seus próprios nomes (ou dos órgãos aos quais pertençam).

244 “Cumpre reconhecer que alguns dos clássicos direitos fundamentais da primeira dimensão (assim como

alguns da segunda) estão, na verdade, sendo revitalizados e até mesmo ganhando em importância e atualidade, de modo especial em face das novas formas de agressão aos valores tradicionais e consensualmente incorporados ao patrimônio jurídico da humanidade (...) esta evolução se processa habitualmente não tanto por meio da positivação destes “novos” direitos fundamentais no texto das Constituições, mas principalmente em nível de uma transmutação hermenêutica e da criação jurisprudencial, no sentido do reconhecimento de novos conteúdos e funções de alguns direitos já tradicionais” (SARLET; MARINONI; MITIDIERO, op. cit., p. 53).

245 MARMELSTEIN, op. cit., p. 54-56. O autor aponta diversos exemplos de direitos concebidos no contexto

liberal dos séculos XVIII e XIX, mas que progressivamente foram tendo seus conteúdos alterados, dialogando com os novos direitos e novas funções reconhecidas.

246

BERGEL, op. cit., p. 37.

247 STF, Tribunal Pleno, Rcl 2.040, Rel. Min. Néri da Silveira, julg. 21.02.2002, ementa e p. 90. 248 STF, Primeira Turma, HC 73.602/SC, Rel. Min. Sydney Sanches, julg. 26.03.1996, ementa.

Seguramente não formam o mesmo caso que será desenvolvido neste trabalho, qual seja, o de proteção à imagem-atributo dos homens e das mulheres. Nesta situação, não existe uma entidade sob a qual estas pessoas estão abrigadas, uma instituição que abarque esta coletividade249. Existe apenas a característica comum de ser homem ou mulher. O fato de este caso ser diferente dos já apresentados, não havendo um ente que as conglobe, contudo, não impede a possibilidade de afirmar a existência de uma imagem-atributo da coletividade feminina ou masculina, igualmente tutelada constitucionalmente250, tanto no ordenamento brasileiro quanto de outros países.

Na Alemanha, por exemplo, em 1958, o Tribunal Constitucional julgou o famoso caso “Lüth”, relativo ao fato de que um cidadão alemão (Erich Lüth), teria conclamado a comunidade a boicotar um filme lançado por Veit Harlan, que havia sido responsável pelo incitamento à violência praticada contra o povo judeu, através de seus filmes, durante o período da Segunda Guerra Mundial251. Harlan ajuizou uma ação cominatória contra Lüth, à qual, tendo sido julgada procedente pela instância inferior, foi interposta Reclamação Constitucional252.

O Tribunal julgou procedente a Reclamação, não com base apenas no direito à livre manifestação do pensamento, mas também constatando que sua expressão não se deu por “motivos indignos ou egoísticos”, e sim porque a manifestação de Lüth visava à proteção da imagem do povo alemão, tendo em vista que “nada comprometeu mais a imagem alemã do que a perseguição maldosa dos judeus pelo nacional-socialismo”253. Assim, um dos fundamentos pelo qual os julgadores entenderam lícita a atitude de Lüth foi o fato de suas atitudes estarem constitucionalmente justificadas pela proteção à imagem da coletividade que abarca cada cidadão alemão e não ao país “Alemanha”.

249

Este sentido é apreendido em: CASTRO, op. cit., p. 23, ao sustentar que “a imagem-atributo engloba, além do indivíduo, a pessoa coletiva”.

250 Neste sentido, fazendo referência a qualquer coletividade: FERRÃO, Brisa Lopes de Mello. A Dimensão

Coletiva do Direito Individual à Imagem de Indivíduos Pertencentes a Grupos Sociais Vulneráveis ou o Direito à Imagem de Minorias. Tese (doutorado em Direito). Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012, p. 23.

251 SCHWABE, Jürgen; MARTINS, Leonardo (org.). Cinquenta Anos de Jurisprudência do Tribunal

Constitucional Alemão. Beatriz Hennig et al. (trad.). Montevidéu: Konrad-Adenauer-Stiftung, 2005, p. 381.

252 Ibidem, p. 381. 253

Ibidem, p. 394. O trecho destacado é precedido por “As expressões do reclamante precisam ser observadas no contexto de suas intenções políticas gerais e de política cultural. Ele agiu em função da preocupação de que o retorno de Harlan pudesse ser interpretado – sobretudo no exterior – como se na vida cultural alemã nada tivesse mudado desde o tempo nacional-socialista (...) estas preocupações correspondiam a uma questão muito

substancial para o povo alemão; em suma: a questão de sua postura moral e sua imagem no mundo naquela época” (ALEMANHA. Tribunal Constitucional Federal. BVerfGE 7, 198 (Lüth), 1958. Disponível em: <http://www.servat. unibe.ch/dfr/bv007198.html#Rn036>. Acesso em 22 mai. 2015 (grifou-se).

No Brasil, o julgamento pelo STF do também rumoroso caso “Ellwanger”, em 2003254, abarcou semelhantemente a proteção à imagem-atributo de uma coletividade (os judeus), malgrado não tenha havido referência expressa a esta norma constitucional255. No caso, Siegfried Ellwanger escreveu, editou e publicou alguns livros que “tinham como ponto em comum uma visão negativa acerca do povo judeu”256

– portanto, atingia a imagem- atributo desta coletividade.

As coletividades possuem, assim, uma imagem pela qual são vistas pelos demais, igualmente tutelada constitucionalmente. É possível, por exemplo, fazer menção à imagem da classe advocatícia ou da magistratura257. Ou, à imagem da pessoa-residente258. Ou, ainda, como será examinado de modo aprofundado, à “imagem da mulher na sociedade”259

, ou à imagem do homem. Esta imagem da coletividade é dependente também da imagem de cada um dos indivíduos que a constituem, de forma que as perspectivas individuais influenciam a coletiva260, ocorrendo o mesmo em sentido contrário: principalmente em decorrência da estigmatização de grupos, do desenvolvimento de estereótipos, muitas vezes a visão que se tem do grupo prevalece sobre as características individuais261. Estas duas situações podem, inclusive, acarretar conflitos no seio da própria coletividade262. Este tema, contudo, será melhor analisado no quinta capítulo.

A exposição desenvolvida neste capítulo serviu para demonstrar que, desde que começou a ser previsto juridicamente, o direito à imagem teve seu conteúdo expandido, passando a abarcar também o que a doutrina convencionou chamar de “imagem-atributo”. Esta tutela à imagem-atributo, para além de proteger indivíduos, serve também à salvaguarda

254 STF, Tribunal Pleno, HC 82.424/RS, Rel. Min. Maurício Corrêa, julg. 17.09.2003.

255 STF, Tribunal Pleno, HC 82.424/RS, Rel. Min. Maurício Corrêa, julg. 17.09.2003, p. 133-134 e 284 do

acórdão.

256 MARMELSTEIN, op. cit., p. 421.

257 PAPROTTA, Geedo. Anwählte und ihr Ansehen. In: Mittelbyerische, 15 fev. 2014. Disponível em:

<http://www.mittelbayerische.de/region/neu markt/anwaelte-und-ihr-ansehen-21101-art1018942.html>. Acesso em 29 abr. 2015.

258 SILVA NETO, Manoel Jorge e. A Proteção Constitucional à Honra e à Imagem da Pessoa-residente: a

discriminação de origem como ofensa aos direitos individuais. In: Proteção Constitucional à Imagem: dimensão coletiva. Manoel Jorge e Silva Neto (org.). Salvador: Paginae, 2015, p. 83-102. Segundo o autor, “pode-se dizer que a pessoa-residente é ente coletivo despersonalizado que possui vinculações de ordem antropológica, social, cultural e jurídica com a cidade ou estado-membro” (ibidem, p. 91-92).

259 MOURA, Renata Bellé de. A Igualdade Jurídica e a Desigualdade Fática nas Relações de Trabalho Entre os

Gêneros. Monografia (graduação em Direito). Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2013, p. 36.

260

ARCOVERDE, Letícia. Corrupção de Executivos Piora Imagem de Todos na Empresa, Diz Estudo. In: Valor

Econômico, 31.03.2015. Disponível em: <http://www.valor.com.br/carreira/3985378/corrupcao-de-executivo-

piora-imagem-de-todos-na-empresa-diz-estudo>. Acesso em 21 mai. 2015. A notícia faz referência ao artigo: SAWAOKA, Takuya; MONIN, Benoît. Moral Suspicion Trickles Down. In: Social Psychological and

Personality Science, v. 6, n. 3, 2015, p. 334-342.

261 FERRÃO, op. cit., p. 25-26.

de coletividades, enquanto titulares deste direito fundamental – não apenas em função de defesa, mas de exercer positivamente este direito, definindo a imagem do grupo no meio social.