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Subprincípio da igualdade na aplicação da norma (mesmo regime jurídico para os

3. O DIREITO À IGUALDADE DE GÊNERO

3.1 DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO DO DIREITO À IGUALDADE

3.1.1 Subprincípio da igualdade na aplicação da norma (mesmo regime jurídico para os

A ideia de um mesmo regime jurídico para todos os indivíduos, desde que a lei os estabelecesse como iguais, ganhou volume no século XVIII. Na obra “O contrato social”, de 1762, Rousseau afirmava que a lei deveria considerar não um indivíduo, mas uma coletividade; bem como ser abstrata, não podendo fazer referência a uma ação ou objeto em particular294. Assim, para o autor, “a lei pode perfeitamente estatuir que haverá privilégios, mas não pode concedê-los nomeadamente a ninguém. Pode criar diversas classes de cidadãos, e até especificar as qualidades que darão direito a essas classes, porém não pode nomear os que nela serão admitidos”295

. A generalidade e abstração configuravam uma das formas de concretizar a almejada igualdade, fugindo-se às medidas contingentes296.

Buscava-se, também, em alguma medida, atingir a aplicação uniforme da lei, baseando-se no entendimento de Montesquieu, dominante à época, de que o órgão julgador seria mero exegeta297 – devendo seguir a letra da lei298 e apenas ser a boca que pronunciaria as palavras dela299 – o direito à igualdade estaria, assim, direcionado primordialmente ao aplicador da legislação, e não ao seu elaborador, servindo como forma de extinguir o julgamento diferenciado pelo mero fato de uma das partes fazer parte da realeza, nobreza ou do clero300. O fato de um indivíduo ser da classe dominante não impedia que o Estado lhe cobrasse impostos ou processasse criminalmente. Locke afirmava que não era possível ao

293 A denominação é utilizada à observação de que a referência aos “subprincípios” da proporcionalidade –

adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito – em muito contribuiu para facilitar a apreensão “dos conteúdos” da proporcionalidade em sentido amplo.

294

ROUSSEAU, op. cit., p. 47.

295 Ibidem, p. 47.

296 MONCADA, Luís S. Cabral de. Ensaio sobre a lei. Coimbra: Coimbra Editora, 2002, p. 78.

297 MONTESQUIEU. Barão de La Brède e de. O espírito das leis. 2.ed. Cristina Murachco (trad.). São Paulo:

Martins Fontes, 1996, p. 69.

298 Ibidem, p. 87.

299 Ibidem, p. 175. Para um desenvolvimento mais amplo acerca do conceito de lei surgido da modernidade:

MONCADA, op. cit., p. 66-80.

300

“Nessa fase, o destinatário do princípio da igualdade não era o legislador, e sim o aplicador ou executor da lei. Essa formalização do princípio da igualdade rompe com os privilégios e impõe um dever ou obrigação de igualdade” (OLIVEIRA, Luciana Estevan Cruz de. Os Princípios da Igualdade e da Não Discriminação Diante da Autonomia Privada: o problema das ações afirmativas. Boletim Científico da Escola Superior do Ministério

Público da União, Brasília, n. 37, 2012, p. 147). Também neste sentido: “(...) a lei continuou a ser

maioritariamente concebida como uma norma impessoal aplicável a todos e fixando como que um ‘direito comum’ avesso a discriminações e privilégios e estável” (MONCADA, op. cit., p. 78).

legislativo “governar por decretos arbitrários improvisados”301, sendo necessário “governar

por meio de leis estabelecidas e promulgadas, e se abster de modificá-las em casos particulares”302

. Não deveria haver considerações de ordem pessoal na aplicação da lei303. A igualdade neste momento, portanto, significava que: 1. Todos estão sob o alcance da lei, ainda que a própria lei possa estabelecer diferenciações; 2. Os indivíduos considerados iguais pela própria lei não poderiam ser diferenciados no momento de sua aplicação304, seja por um juiz ou por um órgão da Administração Pública305. Não havia, conforme referido, vedação ao estabelecimento de tratamento jurídico diferenciado pela própria lei306. Neste sentido, a França, no pós Revolução Francesa, embora consagrasse expressamente a igualdade, estabeleceu eleições censitárias, de acordo com a renda, ao invés de sufrágio universal, fazendo como que a maior parte da população não pudesse votar307. Entretanto, para uma sociedade que estava banindo os privilégios reais308 e nobiliárquicos309 até então existentes, esta concepção de igualdade já era um grande avanço.

No Brasil, “o princípio da igualdade de todos os cidadãos perante a lei” foi estabelecido com a Constituição Imperial de 1824310, embora nem todos os seres humanos fossem tratados da mesma forma311, sendo a escravidão oficial uma condição jurídica que perduraria até 1888312, ainda que paulatinamente combatida durante o Império313. O mencionado princípio viria a ser mantido em todas as constituições seguintes314. No advento

301 LOCKE, John. Segundo Tratado Sobre o Governo Civil e Outros Escritos: ensaio sobre a origem, os limites e

os fins verdadeiros do governo civil. 3. ed. Magda Lopes, Marisa Lobo da Costa (trad.). Petrópolis: Vozes, 2001, p. 164.

302 Ibidem, 169.

303 ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. 2. ed. Virgílio Afonso da Silva (trad.). São Paulo:

Malheiros, 2011, p. 394.

304

RIVERO, Jean; MOUTOUH, Hugues. Liberdades Públicas. Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão (trad.). São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 64; CANOTILHO, op. cit., p. 426.

305 CANOTILHO, op. cit., p. 426. Robert Alexy afirma que este sentido do direito à igualdade somente poderia

vincular o aplicador e nunca o legislador (op. cit., p. 393-394).

306

SARLET; MARINONI; MITIDIERO, op. cit., p. 542.

307 LOSANO, op. cit., p. 82.

308LYNCH, Christian Edward Cyril. Entre o Leviatã e o Beemote: soberania, constituição e excepcionalidade no

debate político dos séculos XVII e XVIII. Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 53, n. 1, 2010, p. 60- 61.

309 Ibidem, p. 72. Entre os privilégios da nobreza portuguesa do século XVIII estavam a não aplicação de certas

normas do direito comum, a isenção de certos impostos e encargos e a isenção de penas infames (HESPANHA, António Manuel. A Nobreza nos Tratados Jurídicos dos Séculos XVI a XVIII. Revista Fazer e Desfazer a

História, Lisboa, n. 12, 1993, p. 30-31).

310 LOSANO, op. cit., p. 288. 311 ROCHA, op. cit., p. 288.

312 PEDRO, Antônio; LIMA, Lizânias de Souza. História da Civilização Ocidental. São Paulo: FTD, 2004, p.

348.

313 LOSANO, op. cit., p. 290. 314 ROCHA, op. cit., p. 290.

da República, foi ventilada a ideia de “igualdade democrática”315

, embora os ideais democráticos demorassem a ser implementados316. Este sentido de igualdade, alheio à realidade, perdurou durante o século XIX, e, em muitos países, também durante boa parte do século XX, tendo propiciado “a formação de dogmatismos e de mitos cuja superação até a atualidade se entremostra dificultosa”317

; ou seja, ainda atualmente algumas pessoas entendem que a igualdade deve prescindir da análise social.

Estas são as principais considerações acerca do subprincípio da igualdade na aplicação da norma, destacando-se que, mesmo conforme concebido, tal noção nunca foi devidamente implantada, sendo possível afirmar que ainda hoje há aplicação de regimes jurídicos distintos a indivíduos ou grupos definidos como iguais pelas normas. Ressalta-se, ainda, que com a aceitação da tese da eficácia dos direitos fundamentais entre particulares, a igualdade de tratamento jurídico aos reconhecidamente iguais também se impõe neste âmbito.