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4. PUBLICIDADE E VIOLAÇÃO À IMAGEM-ATRIBUTO DE GÊNERO

4.4 ANÁLISE DA PUBLICIDADE ATENTATÓRIA À IMAGEM DE GÊNERO

4.4.2 Parâmetros e análise da publicidade de gênero

4.4.2.1 Perspectiva “binocular”

Foi referido no capítulo anterior, acerca da igualdade de gênero, que é relativamente comum que as interpretações acerca das relações entre homens e mulheres tendam a partir de uma perspectiva “monocular”, enviesada, afirmando-se que o feminino suporta todas as desvantagens das concepções de gênero, ao passo que o masculino é beneficiado com a manutenção da ordem vigente. Considerando-se que anteriormente se fundamentou suficientemente acerca dos equívocos deste entendimento, a abordagem que será feita neste momento será mais breve, limitando-se ao exame desta situação especificamente na publicidade, voltando-se à sua desconstrução.

Na análise das questões de gênero na publicidade, observa-se que, por vezes, situações que são opinadas como abusivas – a exemplo da objetificação ou da obrigação de adequar-se a um padrão – são examinadas apenas pelo lado das mulheres, de que elas são atingidas por estes fatores814. Sem examinar ainda cada um deles – o que será feito posteriormente –, é possível notar que a análise das relações de gênero na publicidade costuma prescindir de uma análise não “monocular”. Contudo, conforme será demonstrado, a falta de um exame “binocular” das peças e campanhas podem levar a afirmações que contrariam a igualdade de gênero na perspectiva adotada neste trabalho, sendo, portanto, incompatíveis com a Constituição815.

814 SAMARÃO, Liliany. O Espetáculo da Publicidade: a representação do corpo feminino na mídia. In:

Contemporânea, n. 8, 2007, p. 51; MIRANDA, Cynthia Mara. A Construção do Ideal de Beleza Feminina em

Peças Publicitárias Audiovisuais. In: Estudos Feministas e de Gênero: articulações e perspectivas. Cristina Stevens, Susane Rodrigues de Oliveira, Valeska Zanello. Florianópolis: Mulheres, 2014, p. 439-440.

815 “São diversos os casos de campanhas com abordagem negativa para o homem tradicional. A Brastemp, na

década de 1990, apresentava vários modelos de homens desrespeitados pela esposa: em um ela o chamava de burro, em outro referia-se a ele como feio, ou sugeria, em um terceiro, que o havia traído porque ele não valia a pena. No mesmo período, numa publicidade de brinquedos Estrela, ao final de um diálogo, a mulher diz que o marido é um chato. Também no comercial de TV para o refrigerante Sukita, do início desta década, um homem de meia idade tenta conquistar uma jovem e acaba sendo completamente ridicularizado. Um modelo “machista” é o personagem de dois comerciais da Panela Panex, da década de 1990. O exagero de masculinidade é

ironizada, provocando o riso e diminuindo a defesa dos receptores, contra os conteúdos preconceituosos veiculados. Permite-se, nesse tipo de abordagem, a desvalorização dos sujeitos dos discursos, admitindo-se o desrespeito ao sexo masculino. Destacamos, ainda, o comercial, de temperos Sazon, de 1997/98, em que um velhinho é repreendido pela esposa por limpar a boca na toalha da mesa e no punho da camisa. Também, nessa linha, em um comercial dos freios Vargas, um homem, na figura paterna convencional, é totalmente humilhado pela família porque ele não se preocupou em fazer a revisão do carro para uma viagem de férias. Nesse caso, chega-se ao extremo de mostrar o filho chutando a perna desse pai irresponsável e, para finalizar a demonstração de insatisfação, o cachorro urina em sua perna” (GARBOGGINI, Flailda Brito. O Homem na Publicidade da Última Década: uma cultura em mutação. Revista Educar, Curitiba, n. 26, 2005, p. 107).

Veja-se, por exemplo, que um anúncio no qual uma mulher encontra-se seminua e deitada no colo de um homem, enquanto outro está por cima dela, ambos sem camisa, com um terceiro homem mais na frente, é visto pela perspectiva monocular apenas como contrário à imagem feminina, porque ela, passivamente “aguardaria ou sentiria prazer no ‘uso e abuso’ ou no sexo grupal/animalesco, desprovido de sentimentos ‘nobres’”816

. Ora, em relação ao ato em si, a característica de animalesco também atingiria aos homens, que, de forma estereotipada, são representados (e interpretados) como quem “usa e abusa”. “Abusar”, na sociedade contemporânea, certamente tem uma conotação ruim, relacionado à violência, que destoa dos valores cultuados, pelo que, em se entendendo que há estereótipo violador à igualdade, também os homens estariam sujeitos a ele.

Interessantemente, se, ao invés de multiplicidade de homens e unicidade de mulher, tem-se a situação contrária, duas mulheres e um homem, a interpretação é a de que a imagem “corresponde à fantasia que muitos homens heterossexuais tem sobre relações com mulheres – de ser ‘homem suficiente’ para ter várias mulheres de uma só vez”817

.

Apenas o reconhecimento da perspectiva monocular poderia explicar o fato de que um anúncio818, interpretado por uma feminista como retratando um estupro “subtendido”, seria apenas discriminatório contra as mulheres819; considerando-se que a representação é mesmo de um estupro, os homens que discordem de tal situação, e estão sendo retratados desta forma, também estão tendo um ataque às suas imagens-atributo em uma dimensão transindividual. Cria-se, assim, um estereótipo de homem-estuprador, que, veiculado reiteradamente820, certamente atinge a imagem-atributo da coletividade masculina.

Ainda explorando as possibilidades da superação da perspectiva monocular, deve-se perceber que situações que se considerariam como violadoras à imagem de um gênero, também o deve ser em relação ao outro. Assim, caso se considerasse ilícita uma publicidade onde um homem monta uma mulher como se fosse uma égua, inclusive com a sela nas costas,

816 MACHADO, Sandra de Souza. Estereótipos: culturas mal (in)formadas – o construto do (falso) ideal

feminino em publicidade e propaganda. In: Estudos Feministas e de Gênero: articulações e perspectivas. Cristina Stevens, Susane Rodrigues de Oliveira, Valeska Zanello. Florianópolis: Mulheres, 2014, p. 432. Conferir figura 1, no apêndice B.

817 O’BARR, William M. Representations of Masculinity and Femininity. In: Advertising & Society Review,

2006, disponível em: <https://muse.jhu.edu/journals/advertising_and_society_review/v007/7.2unit07.html>. Acesso em 22 set. 2015 (traduziu-se). Conferir figura 2, no apêndice B. O autor afirma ainda que “é impossível encontrar publicidades nas quais uma única mulher está tendo prazer com vários homens” (traduziu-se); Conforme visto anteriormente, imagens comerciais neste sentido existem, mas acabam sendo traduzidas com uma conotação ruim, de situação de “sexo animalesco/grupal” ou “estupro”.

818 Conferir Figura 3, no apêndice B. 819

MACHADO, op. cit., p. 436.

820 Sobre o tema, conferir o capítulo anterior, no tópico sobre o feminismo, o qual possui alguns setores que

também não deve ser permitida a veiculação de uma mulher montando um homem, em condições semelhantes821. Por coerência, ou ambas as situações são permitidas, ou nenhuma. Portanto, o julgamento com base nos parâmetros de gênero não é só relativo ao “feminino”, mas também ao masculino822.

Não se está afirmando, com isso, que homens e mulheres encontram-se na mesma situação fática mesmo no âmbito da publicidade. Contudo, eventuais desigualdades devem ser sanadas de forma construtiva, inclusive com possíveis ações afirmativas823, e não através de um modelo concomitantemente “denuncista” das situações de um gênero e de naturalização das mesmas situações quando em relação ao sexo oposto.

Fornecendo mais um exemplo de interpretação calcada em uma perspectiva monocular, pode-se mencionar um artigo acadêmico que analisa uma peça publicitária onde há a imagem de uma mulher segurando seu celular junto a uma galinha, com os dizeres “Fui gravar o toque do meu ‘ex’ e já volto”824

. Nesta situação, ao invés da crítica ser dirigida à imagem de “galinha” que se propaga acerca da figura masculina (no caso, o ex-companheiro da mulher), consegue-se a interpretação de que “a mulher está representada desempenhando uma ação que faz alusão ao mexerico, culturalmente entendido como uma solidariedade feminina de falar mal do ‘ex’ para as amigas, de compartilhar com elas os defeitos do ‘ex’”825

– neste caso, as “amigas” são livre criação da autora do artigo, para proporcionar o seu próprio posicionamento.

É possível ainda mencionar trabalho que, analisando um anúncio onde aparece um casal, afirma que o fato de o homem usar óculos seria uma minimização das mulheres porque “o homem usar óculos chama a atenção, por exemplo, para o sentido da visão. Ele seria,

821 Como pode ser visualizado na figura 4, apêndice B, da marca de roupas Sisley. Houve quem celebrasse a

forma de dominação exposta, aparentemente apenas porque o homem é que era subjugado, conforme se depreende: “[na imagem] você tem uma mulher montando em um homem como em um pônei! De longe um de meus favoritos (...) a mensagem transmitida é clara. Mulheres empoderadas que vestem esta marca dominam os homens e depois montam neles como pôneis”. FELIZ, Luisa. Fhasion Junkie?, 25 mai. 2010. In: Lula Happy. Disponível em: <https://lulahappy.wordpress.com/2010/05/25/fashion-junkie/>. Acesso em 07 set. 2015. Traduziu-se.

822 SILVA, Ricardo André de Barros. A Publicidade e um Novo Gênero Masculino. Dissertação (mestrado em

Publicidade e Marketing). Instituto Politécnico de Lisboa, Lisboa, 2013, p. 11.

823

Neste sentido, o III Plano Nacional de Políticas para Mulheres consignou como meta que “que a publicidade de órgãos do governo não reproduzam estereótipos de gênero, raça, etnia e orientação sexual” (BRASIL. Presidência da República. Secretaria de Políticas para as Mulheres. Plano Nacional de Políticas para as

Mulheres. Brasília: Secretaria de Políticas para as Mulheres, 2013, p. 76). Contudo, posteriormente, o plano

adotou a mencionada perspectiva monocular ao estabelecer como ação para atingir a meta “estimular a

elaboração de código de ética ou código de conduta que garanta a igualdade, reconheça a diversidade e assegure imagem não estereotipada da mulher na publicidade” (ibidem, p. 79), sem referências aos estereótipos

masculinos.

824

Figura 5, no apêndice B.

825 KNOLL, Graziela Frainer. Discursos de Gênero na Publicidade: análise crítica de textos publicitários em

assim, aquele que enxerga”826. O exame enviesado, buscando encontrar “machismo” em

qualquer situação, parece patente, tendo em vista que quem usa óculos é exatamente quem não enxerga bem, pelo que a conclusão deveria ser em sentido contrário, ou seja, de que ele precisa de auxílio para enxergar bem, ao passo que ela, não. A situação retratada nesta peça também se relaciona com outro “parâmetro” que será abordado mais a frente, relativo aos “detalhes” e as múltiplas possibilidades de interpretação.

O que se buscou demonstrar neste tópico é que a análise de igualdade na publicidade também deve abarcar uma perspectiva “binocular” de igualdade de gênero; do contrário, estará fadada a analises redutoras da realidade.