3. O DIREITO À IGUALDADE DE GÊNERO
3.1 DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO DO DIREITO À IGUALDADE
3.1.2 Subprincípios da igualdade na elaboração normativa
Retornando à análise do desenvolvimento histórico, constata-se que, após as primeiras declarações de direitos dos séculos XVIII e XIX, houve a percepção que a mera declaração de que a todos seria aplicado o mesmo regime jurídico (apenas entre aqueles que a lei considerava igual) não era suficiente para corrigir diversos tipos de injustiça, tendo ocorrido ampliação no conteúdo do direito à igualdade318. Não bastava afirmar que “todos podem ter o direito de perseguir os mesmos prazeres, ingressar nas mesmas profissões, encontrar-se nos mesmos lugares; em uma palavra, viver do mesmo modo e perseguir riqueza pelos mesmos meios (...)”319
. Para superar esta situação, desenvolveu-se o que aqui se denomina “subprincípio da igualdade como limite à elaboração normativa” – mais adiante será feita referência ao “subprincípio da igualdade como dever à elaboração normativa”.
315 CALMON, Pedro. História Social do Brasil: a época republicana. São Paulo: Martins Fontes, 2002, v. 3, p. 3. 316 Ilustrativamente, em 1893, o Marechal Floriano Peixoto, sendo contrariado pelo Congresso Nacional,
decretou a sua dissolução (CALMON, op. cit., p. 25).
317 DANTAS, Miguel Calmon. Constitucionalismo Dirigente e Pós-Modernidade. São Paulo: Saraiva, 2009, p.
94.
318 SARLET; MARINONI; MITIDIERO, op. cit., p. 542. 319
É assim que Alexis de Tocqueville define o que seria a igualdade no âmbito civil (Democracy in America: historical-critical edition of de la démocratie en Amérique. James T. Schleifer (trad.). Indianapolis: Liberty Fund, 2010, v. 3, p. 874). Traduziu-se.
3.1.2.1 Subprincípio da igualdade como limite à elaboração normativa
Conforme referido, houve a percepção de que “o princípio da igualdade, reduzido a um postulado de universalização, pouco adiantaria, já que ele permite discriminação quanto ao conteúdo”320
. A igualdade na aplicação do direito não era suficiente para promover todo o significado deste princípio321. Os cidadãos deveriam ser tratados de forma igual no momento da elaboração dos textos normativos322, estabelecendo a ideia de “igual dignidade social”, funcionando como fundamento antropológico-axiológico contra discriminações323. O direito à igualdade passa a vincular não apenas o órgão que aplica a lei, mas também os órgãos responsáveis pela elaboração dos diplomas normativos324.
Onde era livremente franqueado ao legislador estabelecer diferenciações na lei, que era vista como resultado da vontade geral, percebeu-se que não se poderia “permitir toda e qualquer diferenciação e toda e qualquer distinção”325
. Tornou-se necessário maior justificação para estabelecer tratamentos jurídicos distintos326, sendo possível fazer referência a discriminações “legítimas” e “ilegítimas”327. É possível que alguns grupos sejam tratados de forma diversa pelo ordenamento jurídico, sendo legítimas as discriminações desde que haja “correlação lógica” entre os elementos de desequiparação adotados e a desigualdade de tratamento estabelecida, tudo em conformidade com as finalidades constitucionais328.
Se as situações são coincidentes329, ou se elas, embora distintas, não possuem diferenças suficientemente relevantes em relação à norma a ser adotada, não é possível estabelecer desequiparação330. Assim, embora existam diferenças entre homens e mulheres,
320 CANOTILHO, op. cit., p. 427. 321 MIRANDA, op. cit., p. 95.
322 SARLET; MARINONI; MITIDIERO, op. cit., 542. 323
CANOTILHO, op. cit., p. 430.
324 MIRANDA, op. cit., p. 94.
325 ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. 2. ed. Virgílio Afonso da Silva (trad.). São Paulo:
Malheiros, 2011, p. 397.
326
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. O Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2013, p. 16-17.
327 SILVA NETO, Manoel Jorge e. Curso de Direito Constitucional. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2013 , p. 690. 328 MELLO, op. cit., p. 21-22.
329
PÉREZ LUÑO, Antonio-Enrique. Dimensiones de la Igualdad. 2. ed. Dykinson: Madri, 2007, p. 24.
330 Ibidem, p. 24. Essa distinção do autor entre situações que são e que não são distintas tem mais efeito retórico,
tendo em vista que, a rigor, “dois indivíduos ou duas situações nunca são iguais em todos os aspectos” (ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. 2. ed. Virgílio Afonso da Silva (trad.). São Paulo: Malheiros, 2011, p. 399). O autor acrescenta que os juízos de igualdade devem, desta forma, ser limitados às características relevantes à comparação, e não a todas elas, de uma forma “valorativa” (ibidem, p. 399-400), não podendo haver um rigor exclusivamente lógico.
não há razão para tratamento jurídico diverso entre eles no que diz respeito ao matrimônio ou ao poder familiar em relação aos filhos331.
O próprio Montesquieu já fazia alguma referência a esta ideia, ao sustentar que as desigualdades só deveriam ser instituídas em regimes democráticos se servissem para proteger a própria democracia332. A noção atual é significativamente mais ampla, de que só é possível promover desequiparações pela legislação quando houver fundamento em qualquer preceito constitucional333, e não apenas no democrático. Mas é certo que deve haver um “justo critério” para promover diferenciações, havendo uma “proibição geral do arbítrio”334
.
Anteriormente foi feita referência à ideia de que direitos fundamentais estabelecem deveres de prestação e abstenção em favor do titular. Dentro desta perspectiva, a noção de igualdade referida acima estaria relacionada ao dever de abstenção na elaboração normativa: não é possível o estabelecimento de critérios desequiparadores que não têm justificativa lógica com o fim almejado – e desde que este objetivo estivesse em consonância com a constituição –, do contrário há uma intervenção indevida no âmbito de proteção do direito em questão. A igualdade funciona, assim, como um limite à atividade de elaboração normativa. Este conceito de igualdade, contudo, também não se mostrou suficiente para atingir todo o potencial de materialização de uma sociedade mais justa e solidária. Apenas a limitação à elaboração normativa não ensejava a alteração da realidade social.
3.1.2.2 Subprincípio da igualdade como dever de elaboração normativa
O entendimento sobre a necessidade de provimento de igualdade que afetasse o âmbito social, embora não tenha predominado à época, já estava presente em Montesquieu, em sua obra “O espírito das leis”, de 1748, ao sustentar que na democracia a igualdade “real” seria a “alma do Estado”335
. Rousseau, de forma semelhante, defendia que o princípio da igualdade também abarcava a ideia de “que nenhum cidadão seja assaz opulento para poder comprar o
331 PÉREZ LUÑO, op. cit., p. 24. 332
MONTESQUIEU. Barão de La Brède e de. O espírito das leis. 2.ed. Cristina Murachco (trad.). São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 58. O autor cita como exemplo que a pessoa que fosse muito pobre, e precisaria trabalhar constantemente para sobreviver, não poderia exercer uma magistratura, sob o risco de negligenciar suas funções.
333
MELLO, op. cit., p. 41-43.
334 CANOTILHO, op. cit., p. 428. Robert Alexy propõe a fórmula: “tratamentos arbitrariamente desiguais são
proibidos”, sendo arbitrária a diferenciação que não possui “fundamento qualificado para ela” (op. cit., p. 407- 408). O enunciado geral de igualdade estabeleceria, assim, “um ônus argumentativo para o tratamento desigual” (ibidem, p. 409).
335 MONTESQUIEU. Barão de La Brède e de. O espírito das leis. 2.ed. Cristina Murachco (trad.). São Paulo:
outro, e nenhum assaz pobre para ser obrigado a vender-se336. Entretanto, o entendimento destes autores não vingou à época337, em razão da dominação do liberalismo338. Esta situação só foi alterada a partir das reivindicações sociais iniciadas pelos trabalhadores durante o século XIX, culminando com a positivação de direitos voltados à mitigação da desigualdade em textos constitucionais e internacionais e dando início ao Estado Social339.
Ao subprincípio da igualdade como limite à elaboração normativa foi adicionado um novo conteúdo, o qual abarcava a ideia de que é necessário340 – e não apenas possível – que sejam feitas diferenciações quando existirem desníveis entre as pessoas341, sendo possível fazer menção a um “subprincípio da igualdade como dever de elaboração normativa”. Desta forma, este princípio, que não se estendia às situações de fato, sendo imprestável para a correção das desigualdades presenciadas no contexto social342, passa a demandar ações que possibilitem a igualdade de oportunidades343. O conteúdo da norma deixa de apenas impedir certos atos discriminatórios, passando a exigir condutas promotoras da equiparação344, havendo o dever de compensação positiva da desigualdade de oportunidades345. É estabelecido um “dever de diferenciação sempre que isso seja necessário e oportuno para se alcançar uma igualdade efetiva”346
.
Passa-se, assim, a serem utilizadas as “ações afirmativas” ou “discriminação positiva”347, entendidas como “um conjunto de políticas públicas e privadas de caráter
compulsório, facultativo ou voluntário, concebidas com vistas ao combate à discriminação racial, de gênero, por deficiência física e de origem nacional, bem como para corrigir ou mitigar os efeitos presentes da discriminação praticada no passado, tendo por objetivo a
336 ROUSSEAU, op. cit., p. 63.
337 “A Declaração, obra de uma assembleia política, não podia seguir todos os seus [da obra de Rousseau]
matizes. Só conservou um esquema seu, simplificado e amplamente deformado” (RIVERO; MOUTOUH, op. cit., p. 41.)
338 DANTAS, Miguel Calmon. Constitucionalismo Dirigente e Pós-Modernidade. São Paulo: Saraiva, 2009, p.
97.
339
OLIVEIRA, op. cit., p. 150-151. A autora cita a Constituição mexicana de 1917 e a de Weimar de 1919, além do Tratado de Versalhes, em 1919, que criou a Organização Internacional do Trabalho.
340 Neste sentido, Friedrich Engels, no século XIX, relatava que, embora pela legislação o trabalhador e o
empresário estivessem em situação de igualdade para contratar, na prática, a igualdade era apenas “no papel” (on
paper), tendo em vista que os dois estavam em situações econômicas bem diferentes (The Origin of the Family, Private Property and the State. Chippendale: Resistance Books, 2004, p. 79).
341 CANOTILHO, op. cit., 426-428. 342 RIVERO; MOUTOUH, op. cit., p. 65. 343
CUNHA JR., Dirley da. Curso de Direito Constitucional. 7. ed. rev. ampl. atual. Salvador: Juspodivm, 2013, p. 669.
344 ROCHA, op. cit., p. 286. 345 CANOTILHO, op. cit., p. 351. 346
ROTHENBURG, Walter Claudius. Igualdade Material e Discriminação Positiva: o princípio da isonomia.
Revista Novos Estudos Jurídicos, v. 13, n. 2, 2008, p. 82.
concretização do ideal de efetiva igualdade de acesso a bens fundamentais como a educação e o emprego348”. Elas têm o intuito de “extinguir ou ao menos mitigar o peso das desigualdades econômicas e sociais e, consequentemente, promover a justiça social”349.
Muitas dessas ações afirmativas utilizam percentuais mínimos de inclusão de minoria, com o objetivo de que a “maioria” venha a se acostumar às minorias, habituando-se a vê-las em espaços que antes não eram por elas ocupados – sem, contudo, funcionar como ferramenta de gradual marginalização da maioria350. A própria Constituição de 1988 adota ações afirmativas em seu texto, a exemplo do art. 37, VIII e do art. 170, IX351. Em referência às já abordadas ideias de dever de prestação e abstenção, salienta-se que o subprincípio da igualdade como dever de elaboração normativa corresponde, assim, a uma exigência de prestação que favoreça o titular do direito.