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Formação humana: a educação a serviço do capitalismo e a educação para o desenvolvimento humano emancipatório

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P ROCESSOS DE MEDIAÇÃO DOCENTE NAS PRÁTICAS EDUCATIVAS A DISTÂNCIA NA FORMAÇÃO PROFISSIONAL TÉCNICA DE NÍVEL MÉDIO

1. Sociedade e conhecimento: dilemas na formulação de finalidades e objetivos da educação

1.1 Formação humana: a educação a serviço do capitalismo e a educação para o desenvolvimento humano emancipatório

Análises críticas em torno das finalidades e objetivos da educação em âmbito internacional e nacional (LENOIR, 2014b; EVANGELISTA, 2013; LAVAL, 2004), tal como mencionamos no capítulo anterior, apontam o predomínio de perspectivas educacionais voltadas para a obrigação de resultados e para sua responsabilização unicamente pelos sujeitos, numa clara desresponsabilização pelo Estado e forte vinculação aos interesses do mercado. Lenoir (2014b, p. 5 – tradução minha) explica que essa concepção utilitarista dos processos educacionais abandona o modelo institucional em função de um modelo organizacional em que os valores do mercado econômico prevalecem implicando na valorização dos interesses individuais, em processos de exclusão, de alienação social e, de maneira geral, “desviando os processos educacionais dos seus fins humanos e sociais”.

Com base em outra perspectiva teórica, acredita-se que os processos de escolarização servem para formar um indivíduo desenvolvido intelectualmente e consciente de que sua finalidade, como ser humano, deve ser o seu “eu social” (PETROVSKY, 1985b apud MELLO e CAMPOS, 2013, p. 270), o seu eu desenvolvido dentro de uma sociedade concreta, o que significa formar para os interesses coletivos.

Essa visão implica a formação integral ou omnilateral do indivíduo que se refere a “[...] um desenvolvimento multilateral, em todos os sentidos das faculdades e das forças produtivas, das necessidades e da capacidade de satisfação” (MANACORDA, 1991, p. 78- 79), o que quer dizer um ensino para o desenvolvimento de capacidades intelectuais, práticas e morais, não para a limitação do indivíduo, como trabalhador, por meio de um ensino

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reduzido à dimensão da prática profissional. Trata-se de uma educação que tem como princípio o ensino dos conteúdos científicos, por meio de práticas pedagógicas que fortaleçam a relação teórico-prática, cuja finalidade é a formação do homem, no sentido de formação de caráter, de forma que o sujeito seja consciente de si e de seu papel social.

O conceito que explicitamos sobre a educação omnilateral é complementado com os objetivos da educação que podem ser extraídos do pensamento de Vygotsky (1931, 1956), criador da Teoria Histórico-Cultural, e Davydov (1988, 1986), seu seguidor com pesquisas específicas sobre a educação escolar. Para esses autores, são objetivos da educação:

a) Promover a apropriação dos conhecimentos produzidos historicamente e objetivados na cultura material e espiritual da humanidade.

b) Promover o desenvolvimento dos processos psíquicos superiores, a autonomia moral e intelectual, as capacidades criativa e crítica por meio da educação em função da apropriação cultural e do desenvolvimento de comportamentos.

c) Atuar na formação da personalidade, da consciência, na compreensão do próprio valor histórico, dos direitos e deveres, no fortalecimento da relação entre objetivos do indivíduo e objetivos da sociedade.

d) Formar cidadãos que atuem no âmbito social e profissional de maneira consciente e com capacidade de transformação do trabalho e da sociedade.

Em relação ao primeiro objetivo devemos realçar o papel do conhecimento científico e das práticas socioculturais, incluindo a educação formal, na apropriação e continuidade do desenvolvimento cultural e dos valores da sociedade em que se está inserido. No objetivo seguinte, consequente do primeiro, destaca-se o desenvolvimento intelectual, a autonomia e a formação da conduta, a partir da forma de apropriação da cultura. A construção da personalidade, a partir da construção da consciência de si e do seu “eu social”, do entendimento da construção sócio-histórica da personalidade humana, envolvendo a dimensão individual pelos interesses coletivos. O objetivo englobante é a formação de cidadãos com capacidade crítica e criativa, a fim de que sejam capazes de atuar na transformação da sociedade.

Assim, o ensino para o desenvolvimento humano inclui a aquisição de conhecimentos para serem utilizados como ferramentas intelectuais para ampliar qualitativamente a capacidade de pensar e a formação da personalidade, como conscientização do indivíduo em sociedade. Isso quer dizer que o ensino, ao promover a apropriação da cultura pelos alunos, deve ser realizado, empregando meios e processos que desenvolvam sua autonomia crítica e criativa, e também desenvolva nos alunos valores morais vinculados ao objetivo comum.

76 Nessa linha, a Teoria Histórico-Cultural busca compreender melhor os processos psicológicos em estreita relação com o desenvolvimento intelectual e com a formação da personalidade. Segundo Vygotsky (1931, p. 21), “[...] o desenvolvimento cultural se sobrepõe aos processos de crescimento, amadurecimento e desenvolvimento orgânico da criança, formando com ele um todo. Constituem, em realidade, um processo único de formação biológico-social”. Dito de outra forma, o desenvolvimento intelectual não ocorre naturalmente, ele é dependente das aprendizagens socioculturais. Assim, compreender como os processos psicológicos de apropriação da cultura ocorrem ajuda a desenvolver processos de ensino-aprendizagem para o desenvolvimento humano. Não se trata, portanto, da supervalorização da subjetividade em detrimento das significações criadas nas relações sociais.

Nessa perspectiva, a formação da personalidade acontece durante as práticas pedagógicas na escola e em outras práticas socioculturais. A postura pedagógica do professor pode fazer das aulas momentos para além da aprendizagem dos conteúdos ensinando, também, por meio das atividades valores da coletividade. Dessa maneira, a formação da personalidade é mediada pelos processos escolares, na medida em que as práticas pedagógicas na escola também tentam ensinar valores da atividade humana.

Para a tomada de consciência do indivíduo, como parte da sociedade, Petrovsky (1985b apud MELLO e CAMPOS, 2013, p. 271) explica que as práticas escolares devem formar uma correspondência entre os objetivos pessoais do indivíduo com os objetivos coletivos. O indivíduo deve ser conscientemente ensinado de que faz parte de uma coletividade que “[...] é um grupo de pessoas que sendo parte da sociedade se unifica com fins comuns para realizar uma atividade conjunta submetida aos objetivos desta sociedade” (Ibid., p. 270). Para isso, os motivos e necessidades de cada pessoa devem ter relação com os objetivos da coletividade:

O professor experiente sempre pode utilizar as contradições que surgem nos diferentes grupos como força motriz para desenvolver a coletividade em seu conjunto. Isso só não acontecerá se os objetivos da atividade de cada grupo deixar de submeter-se aos objetivos gerais e se encerrar no interior desses grupos. (Ibid., p. 271)

O excerto acima mostra, ainda, que o conhecimento científico não tem supremacia no processo de ensino-aprendizagem que visa o desenvolvimento humano. Ele é o elemento-base para se promover o desenvolvimento intelectual, mas é dependente da forma como é ensinado; só os conteúdos do conhecimento científico não dão conta da formação integral do educando. Na perspectiva da Teoria Histórico-Cultural, o processo de ensino-aprendizagem valoriza os conteúdos científicos e a relação didática pela qual eles são ensinados porque a

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relação entre eles é requisito para o desenvolvimento da personalidade. Essa forma está relacionada com a abordagem dialética explicada como método do pensamento humano (WACHOWICS, 1989) para a construção do conhecimento humano, o que não quer dizer que todo ser humano se aproprie do conhecimento, da mesma maneira. A apropriação dos conteúdos científicos, por meio da abordagem dialética, visa construir um processo de ensino- aprendizagem que leve à construção das capacidades de pensamento criativo e crítico do aluno e da sua autonomia.

A autonomia é construída conforme o sujeito apreende a cultura acumulada e é dependente de conhecimento, tanto a intelectual quanto a comportamental. Pesquisas de diferentes áreas (HONNETH, 2008; HAMELINE, 1999; LENOIR, 2013, 2014a; FREIRE, 1996) além da Teoria Histórico-Cultural também explicam que a autonomia não é nata. Honneth (2008) critica o conceito individualista de autonomia de Kant porque ele remete à ideia de independência e supõe que o indivíduo decide ser autônomo, como uma capacidade que pode ser autodeterminada, desarticulada da realidade concreta do indivíduo. Na perspectiva da Teoria Histórico-Cultural, a autonomia faz parte da personalidade e é construída juntamente com esta, conforme os processos de escolarização e práticas socioculturais dos quais o indivíduo participa no decorrer de sua vida. Essa visão de autonomia faz oposição à compreensão liberal de fundamentação kantiana.

Segundo Rubinstein (1979 apud ARAUJO, 2013, p. 145), “[...] a consciência condiciona a conduta, a atividade das pessoas; a sua vez a atividade das pessoas modifica a natureza e transforma a sociedade”. Assim, a pessoa que não tem conhecimento relacionado às “coisas” que quer fazer também não possui argumentos para agir e nem decidir. A autonomia comportamental (a relacionada a ter iniciativa, capacidade de decisão) só pode ser exercida por uma pessoa capaz de analisar informações, de pensar modelando, de fazer simulações teóricas, dentre outras ações.

Mas para poder pensar, a pessoa também precisa ter “o que” pensar, ou seja, além do problema, ela precisa ter conhecimento relacionado para poder modelar e decidir, como acabamos de dizer. Para ter essas ferramentas intelectuais sobre as “coisas”, ela precisa participar dos processos de escolarização num modo de ensino que a coloque em tarefas que vão requerer os conhecimentos e as ações de modelar, pensar, decidir. A autonomia intelectual é decorrente da posse de ferramentas conceituais e de saber utilizá-las. Assim, existe uma relação dialética entre as autonomias intelectual e comportamental, pois, a partir de elementos sócio-históricos e culturais, externos ao indivíduo, acontece o seu desenvolvimento intelectual que implica novas formas de pensar, novas ferramentas teóricas, as quais vão desencadear

78 novas formas de agir da pessoa.

A autonomia constitui-se de um processo de apropriação de ferramentas teóricas e comportamentais sociais que vai se desenvolvendo, conforme a participação do indivíduo em diferentes práticas socioculturais. Portanto, um estudante adulto “[...] não é um aluno pronto por ser adulto. Pode ser que ele tenha um grau maior de autonomia intelectual, mas também pode não ser, isso dependerá da sua educação. Ainda assim, o adulto possui necessidades intelectuais, bem como outras de ordem psicológica” (COSTA e GOMIDE, 2014, p. 10). Isso quer dizer que, quando o aluno adulto se inscreve num curso, pode ser de aperfeiçoamento, técnico, superior, etc., é porque ele tem uma necessidade latente de aprender algo com alguém e ele já tem alguma autonomia porque tomou tal decisão; o que não quer dizer é que como ele é adulto “o curso” pode lhe prover um material cheio de informações que ele será capaz de aprender tudo sozinho, porque adultos não precisam de ajuda intelectual. Mesmo que o adulto seja capaz de aprender sozinho, por um lado, para ele aprender, em nível conceitual, ou seja, em nível de tornar-se ferramenta intelectual, ele também vai precisar de uma mediação externa de alguém que saiba mais do que ele e saiba a essência do conteúdo, não só sua utilidade. Nessa perspectiva, mesmo o adulto requer um ensino com relação social pedagógica planejada na direção do desenvolvimento humano, pois, em processos de escolarização formal, o objetivo não é só formar competências profissionais.

Nesse sentido, Freire, que trata diretamente da educação de adultos, também destaca que a autonomia do ser humano é construída cotidianamente, conforme as suas experiências na vida, suas necessidades de decisão e seu conhecimento entrelaçados. Para Freire (1996, p. 41), “[...] ninguém é autônomo primeiro para depois decidir. A autonomia vai se constituindo na experiência de várias, inúmeras decisões, que vão sendo tomadas” ao longo da vida. Assim, não existe um ponto final para o desenvolvimento devido ao fato de o sujeito ser adulto.

Em processos de ensino-aprendizagem, autonomia não significa, portanto, deixar o aluno estudar sozinho, sem a ajuda e acompanhamento do professor, mas implica ajudar o aluno a conquistar a capacidade de agir e decidir autonomamente, apresentando atividades, com maior grau de incerteza gradualmente, de modo que ele precise utilizar as ferramentas conceituais estudadas e vá desenvolvendo a capacidade de pensar e agir de maneira autônoma conforme se apropria de tais ferramentas. Entendemos, portanto, que a autonomia é um processo gradual e dependente da apropriação de ferramentas intelectuais. O que pode fazer um profissional que não possui ferramentas materiais e intelectuais? As ferramentas do pensamento são os conceitos apreendidos que poderão servir para a reflexão e ação sobre os

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problemas e desafios encontrados na vida do indivíduo. As aprendizagens afetam o comportamento do indivíduo porque os novos conhecimentos, ao se reorganizarem com os conhecimentos que o indivíduo já tem, ressignificam o conjunto de saberes que vão fundamentar as decisões e ações da pessoa. Por essas razões, a educação dos indivíduos não deve se restringir a ensinos restritos a uma dimensão ou outra, deve ser integral.

1.2 As finalidades da Educação Profissional Técnica: entre a formação integral e a

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