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Paulo Freire: Pedagogia Made in Brazil para Exportação” 78 No final da década de cinqüenta e início dos anos sessenta o Brasil

6. A Quarta República (1945–1964)

6.2 Paulo Freire: Pedagogia Made in Brazil para Exportação” 78 No final da década de cinqüenta e início dos anos sessenta o Brasil

deixou de ser um país “essencialmente rural”. Não que sua produção econômica tenha se tornado uma produção feita nas cidades, de base industrial, mas sim pelo fato de que a população urbana, pela primeira vez, aparecia no censo como maior que a população rural. Por sua vez, o discurso governamental, pelo menos aquele que tinha por base o ISEB, se movimentava na idéia de uma industrialização de caráter nacionalista, enquanto que a prática parecia querer indicar outra coisa: uma industrialização associada aos interesses das indústrias e centros financeiros internacionais. Creio que foi dentro desse clima que nasceu a motivação para que forças intelectuais viessem a discutir a pergunta “que Brasil queremos?”. Alguns, para responder a tal pergunta, colocavam outra: “mas, afinal, como ter algum Brasil se não fizermos todos participarem da democracia e de outros bens e direitos?”

Foi esta segunda pergunta que impulsionou uma série de movimentos sociais, políticos e culturais do início dos anos sessenta. Dentre esses movimentos surgiram Centros Populares de Cultura (CPCs), os Movimentos de Cultura Popular (MCPs) e o Movimento de Educação de Base (MEB). Os dois primeiros estavam ligados à União Nacional dos Estudantes (UNE)79, o terceiro ligado à Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) que, aos poucos, foi cedendo às idéias mais democráticas do pensamento social-cristão. No seio dessa ebulição de idéias é que Paulo Freire se tornou o protagonista de uma ação e, depois, autor de vários livros, que foram se constituindo na “pedagogia de Paulo Freire”  “pedagogia libertadora”, “pedagogia problematizadora”, “pedagogia conscientizadora”, “pedagogia popular” foram os vários nomes que o trabalho de Freire ganhou ao longo dos anos, principalmente depois do Golpe Militar de 1964, que encerrou o período democrático iniciado com a Constituição de 1946, e que obrigou a muitos a viverem no exílio, inclusive Paulo Freire, que só voltou ao Brasil em 1979.

Paulo Freire foi influenciado, na época, pelo nacional- desenvolvimentismo do ISEB, pela sua participação nos movimentos da Igreja Católica, ou seja, pelo “solidarismo cristão” que, nesse período, formava a esquerda da Igreja Católica. Não se deve esquecer que no início dos anos sessenta o Papa João XXIII, que ficou conhecido pelas suas teses em favor dos mais pobres, reformulou a doutrina social da

78 Biografias de Paulo Freire, vistas sob diversas perspectivas, podem ser encontradas em: http://www.ppbr.com/ipf/bio/ Atualmente há o Instituto Paulo Freire, com muito material, tanto de Paulo Freire como de projetos atuais, que sobrevivem após sua morte, graças a seus discípulos. O leitor pode ter acesso a isto em: http://www.paulofreire.org/

Igreja Católica através da Mater et Magistra (1961) e da Pacem in Terris (1962). Mas, no campo pedagógico, Paulo Freire era, tanto quanto foi Anísio Teixeira e, mesmo, por certa influência deste, um seguidor do ideário do escolanovismo, um leitor de John Dewey. Mas a maneira que Paulo Freire trabalhou com essas idéias foi extremamente original e, assim, aqui no Brasil se criou um pensamento pedagógico novo que, uma vez com Paulo Freire no exílio, se espalhou como uma pedagogia para os movimentos populares do Terceiro Mundo. E, depois, como ocorre atualmente, os trabalhos de Freire ganharam um status de filosofia da educação. Transformou-se em um ideário pedagógico para os professores lidarem com diferenças de gênero, diferenças e divergências culturais, de etnias etc., e não mais como no início, quando nós o líamos tomando seus textos como inspiradores de uma pedagogia que visava exclusivamente a educação dos mais pobres. Assim, Paulo Freire, tanto quanto John Friedrich Herbart no século XIX e John Dewey no século XX, se tornou um nome universal, adotado e estudado em inúmeras universidades do Primeiro Mundo (cf. Ghiraldelli Jr. 2000a; 2000b).80

Mantenho, aqui, uma abordagem do ideário freireano como ele se colocou nos anos sessenta.

Tal concepção afirmava ter o homem vocação para “sujeito da história”, e não para “objeto”, mas no caso brasileiro esta vocação não se

80 A caracterização de Paulo Freire como ligado ao nacional-desenvolvimentismo da época de JK e do ISEB, ao socialismo cristão e ao movimento da escola nova é, a meu ver, correta. É o que está no livro clássico de Vanilda Paiva: Paiva, V. Paulo Freire e o

nacionalismo desenvolvimentista. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1982. Todavia,

é preciso notar que o livro de Vanilda se ateve, é claro, ao período inicial dos trabalhos de Freire. Mais tarde, o próprio Freire e seus seguidores  e talvez Freire tenha sido mais influenciado pelos seus seguidores estrangeiros, em determinado momento, do que o contrário, como foi o caso de sua relação com Henry Giroux e, depois, com Peter McLaren  alteraram o curso de suas leituras. Freire namorou com o marxismo mas, também, oscilou entre o leninismo e as posições mais abertas de Gramsci. Chegou a ler algo da Escola de Frankfurt, depois, se entusiasmou com Agnes Heller etc. Por fim, seus seguidores inverteram a flecha de seu pensamento, e isso teve uma repercussão grande e, a meu ver, muito positiva: em vez de usar a “pedagogia do oprimido” para “conscientizar” o que denominavam de oprimido, seus seguidores no exterior passaram a fundir o freirismo com estudos culturais e, então, usaram os livros de Paulo Freire para “conscientizar” os não discriminados a respeito da existência da discriminação em relação aos pobres, negros, mulheres, nativos, dos gays etc. Procurei enfatizar isso no prefácio que fiz para o livro de Peter McLaren e Ramin Farahmandpur, O que você precisa saber sobre pedagogia revolucionária na

globalização, publicado pela DPA em 2001. Para uma visão mais recente sobre Paulo

Freire, inclusive vendo as possibilidades de ligação de sua pedagogia com o que convencionamos chamar de “pós-moderno”, o leitor pode ver minha tradução de Michael Peters, professor de filosofia da educação na Nova Zelândia: Peters, M. Paulo

explicitava, pois o povo teria sido vítima do autoritarismo e do paternalismo correspondente à sociedade herdeira de uma tradição colonial e escravista. Fazia-se necessário — segundo tal concepção — romper com isso, “libertar o homem do povo” de seu tradicional mutismo. A pedagogia deveria, então, forjar uma nova mentalidade, trabalhar para a “conscientização do homem” brasileiro frente aos problemas nacionais e engajá-lo na luta política.

Segundo tal ideário freireano, a educação e a escola colaboravam com a situação de mutismo do povo. A escola oficial, além de autoritária, estaria a serviço de uma estrutura burocratizada e anacrônica incapaz de colocar-se “ao lado dos oprimidos”. Como os escolanovistas dos anos de 1930, e principalmente da década de 1950, e também de acordo com as teses do nacionalismo-desenvolvimentista do ISEB, os primeiros textos de Paulo Freire criticavam a “educação verbalista” o “ensino baseado na memorização”, o “bacharelismo” (a idéia de se educar em vista dos ideais das elites, que queriam o diploma, “o papel”, para o exercício de atividades oratórias e burocráticas), e pregava uma “educação voltada para a vida”, para os problemas circunstanciais (cf. Ghiraldelli Jr., 1990, p. 122).

Procurando se identificar com os “oprimidos” — aqueles que “não têm voz na sociedade”, mas “também produzem cultura” — o ideário de Paulo Freire buscava uma educação comprometida com os problemas da comunidade, o local onde se efetivava a “vida do povo”. A comunidade permaneceu, então, como ponto de partida e ponto de chegada. Daí as teses do ensino regionalizado, comunitário, ligado aos costumes e à cultura do local de vida da população a ser educada (cf. Ghiraldelli Jr. 1990, pp. 122).

O progresso  a industrialização e a urbanização , segundo Paulo Freire, trouxe a preocupação com as populações migrantes, as levas de camponeses que deixavam suas terras e migravam para as cidades e que ficavam à mercê da demagogia dos políticos e da “manipulação dos meios de comunicação de massas”. Contra essa “manipulação”, tal reflexão freireana propôs a “desalienação do povo”, através da instauração de uma “pedagogia do diálogo”, que deveria se basear na horizontalidade entre educador e educando. Deveria ser o “diálogo amoroso” — que é o encontro de “homens que se amam e que desejam transformar o mundo”. Tal diálogo deveria partir das situações vividas pelo educando na sua comunidade. Depois, deveria aprofundar-se nessas situações vividas “problematizando-as”, obrigando assim os educandos a alcançarem uma “visão crítica” de suas realidades. Todo esse processo recebeu uma denominação que empolgou os educadores de esquerda dos anos sessenta: conscientização (cf. Ghiraldelli Jr., 1990, p. 123).

educação calcada numa “ideologia de opressão” que considerava o aluno como alguém despossuído de qualquer saber e, por isso mesmo, destinado a se tornar depósito dos dogmas do professor.

A “educação bancária” foi resumida por Freire em vários de seus livros.81 Aqui, lembro de dez itens que Freire usou para caracterizá-la. 1. O professor ensina, os alunos são ensinados.

2. O professor sabe tudo, os estudantes nada sabem. 3. O professor pensa, e pensa pelos estudantes. 4. O professor fala e os estudantes escutam.

5. O professor estabelece a disciplina e os alunos são disciplinados. 6. O professor escolhe, impõe sua opção, os alunos se submetem. 7. O professor trabalha e os alunos têm a ilusão de trabalhar graças à ação do professor.

8. O professor escolhe o conteúdo do programa e os alunos — que não são consultados — se adaptam.

9. O professor confunde a autoridade do conhecimento com sua própria autoridade profissional, que ele opõe à liberdade dos alunos. 10. O professor é sujeito do processo de formação, os alunos são simples objetos. (cf. Freire, 1974; cf. Ghiraldelli Jr., 1990, p. 123).

O ideário freireano insistia na idéia de que todo ato educativo é um ato político e que o educador “humanista revolucionário”, “ombreado com os oprimidos”, deveria colocar sua ação político-pedagógica a serviço da transformação da sociedade e da criação do “homem novo”. Essa edu- cação, ao contrário da “educação bancária”, deveria problematizar as si- tuações vividas pelos educandos, promovendo a passagem da “consciência ingênua” pata a “consciência crítica”. A idéia básica, ao ser posta em passos pedagógico-didáticos, poderia ser formulada como segue.

Num primeiro momento (primeiro passo = pesquisa) caberia ao edu- cador viver em conjunto com os educandos, tomando contato com a sua vida comunitária. Desde o início do processo pedagógico, portanto, “não existe aquele que sabe tudo, e ensina, e aquele que nada sabe, e é ensinado”; o que existe é o “educador-educando”, que convive e aprende a vida e os problemas da comunidade do “educando-educador”. Nesse processo, o educador-educando recolheria da vida real dos educandos-educadores os “temas geradores”, os assuntos-chaves que circulam na comunidade e que sensibilizam seus habitantes.

O segundo momento (segundo passo = temas geradores) se respon- sabilizaria pela formação dos “círculos de cultura”, o grupo onde se

81 Pode-se encontrar farto material de Paulo Freire e sobre Paulo Freire devidamente organizados no livro: Paulo Freire – uma biobibliografia. São Paulo: Instituto Paulo Freire, UNESCO e Cortez, 1996.

reuniria para um “diálogo amoroso”, humilde, horizontal, educador- educando e educandos-educadores. O método desta pedagogia, que alguns chamaram de método “dialógico”, implicaria o relato dos participantes a respeito de suas experiências de vida. Ao “animador” do “círculo de cultura” caberia resgatar do processo de diálogo os temas geradores, já previamente “sentidos” em dias anteriores, quando da integração do educador-educando na comunidade.

Em seguida, o terceiro momento (terceiro passo = problematização), implicaria a aceitação da idéia segundo a qual “ninguém educa ninguém”, e também ninguém se educa a si mesmo; os homens se educam “em comunhão”, “mediatizados pelo mundo”. Assim, educador- educando e educandos-educadores, levando em conta os temas geradores, se problematizariam, problematizariam o mundo em que vivem e, transformando o que não era até então problema, mas mero incômodo, em verdadeiro problema, sentiriam o desafio da realidade. Assim, escreveu Paulo Freire, os homens e mulheres estariam percebendo como “estão sendo no mundo com que e em que se acham”.

Através da problematização, educador-educando e educandos- educadores poderiam fixar o ponto de partida para a “conscientização” (quarto passo: conscientização). Em um primeiro instante, o educador- educando pode problematizar a visão de mundo dos educandos- educadores, o que seria o germinar do “pensar crítico”, do “desvelamento da realidade”. Mas não bastaria isso. Seria necessário, disse Paulo Freire, para que a efetivação da conscientização, a ação social transformadora (quinto passo: ação social). A educação como conscientização seria, assim, “práxis social” de “libertação de todos os homens da opressão”. O ato de desvelamento só se efetivaria por completo quanto educador-educando e educandos-educadores, juntos, conseguissem se engajar em um processo de transformação social (cf. Ghiraldelli Jr., 1990, pp. 124-126).82

82 Para um maior aprofundamento na filosofia da educação de Paulo Freire e uma comparação com Herbart, Dewey e as tendências pós-modernas, ver: Ghiraldelli Jr., P.

O que você precisa saber em Filosofia da Educação. Rio de Janeiro: DPA, 2000a. E

também: Ghiraldelli Jr., P. O que você precisa saber em Didática e Teorias