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Luiz Antônio Cunha e a Sociologia Crítica da Educação

7. O Regime Militar (1964-1985)

7.1 Leituras em Educação Durante a Ditadura Militar

7.1.5 Luiz Antônio Cunha e a Sociologia Crítica da Educação

O que podemos chamar de “pensamento pedagógico brasileiro”, se é que podemos usar tal expressão, nunca foi algo dominado pela psicologia ou pela filosofia. Embora, é certo, cada área do conhecimento teve, em algum momento, sua preponderância sobre a literatura em educação, devido a vários fatores.

O pensamento pedagógico brasileiro sempre foi, como deve mesmo ser o caso de uma área aplicada como é a educação, uma confluência de saberes. Assim é que a sociologia, que já no “Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova” de 1932, pela influência de Durkheim, estava tão presente quanto a filosofia, representada por John Dewey, reapareceu no debate dos anos sessenta e setenta. Tratava-se, como no passado, da sociologia francesa e, da mesma maneira, ela veio associada a teses de filosofia social e educacional.

Basicamente, estou falando dos livros A reprodução, de Jean Claude Passeron e Pierre Bourdieu, que ganhou sua primeira edição no Brasil em 1975 e em 1982 alcançou sua segunda edição, de L’ecole capitaliste

en France, de Roger Establet e Christian Baudelot, que teve na revista Tempo Brasileiro um capítulo traduzido em 1974, e, finalmente, do

célebre livro Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado, do filósofo marxista francês Louis Althusser (1918-1990).

No Brasil, entre outros, Dermeval Saviani e Luiz Antônio Cunha divulgaram esses estudos no meio educacional, já no âmbito de programas de pós-graduação.

Cunha escreveu alguns artigos sobre o assunto e um pequeno livro introdutório, Uma leitura da teoria da escola capitalista, publicado em 1980. Mas esse conglomerado de autores franceses não ganhou o público com a denominação de outro que não a de Dermeval Saviani, que em vários e repetidos escritos, e principalmente em Escola e

Democracia, os classificou sob a rubrica de “crítico-reprodutivistas”.

O que eram, para Saviani, as “teorias crítico-reprodutivistas”? De uma maneira sistemática e organizada, elas teriam fornecido à intelectualidade um instrumental capaz de desmistiticar a idéia de que a educação (ou a escola) teria um poder de intervenção nas tramas sociais capaz de corrigir as injustiças e obter equalização social. Tais teorias teriam sido muito bem aceitas pelos cientistas sociais e economistas de esquerda, que passaram a demonstrar o fenômeno educativo a partir de seus condicionantes sociais.

Os “críticos-reprodutivistas”, ainda que levando em conta suas diferenças entre si, segundo Saviani, concluíram que à escola formal restava o papel de reprodutora da sociedade de classes, reforçadora do modo de produção capitalista e, por isso mesmo, repressora, autoritária e inculcadora da ideologia dominante. Ficou famoso para os educadores o alerta do filósofo Louis Althusser, que afirmou ver com olhos céticos a

possibilidade de qualquer resultado transformador significativo a partir do trabalho de “abnegados professores inovadores” (cf. Saviani, 1983; cf. Ghiraldelli Jr., 1990, pp. 201-202).

Luiz Antonio Cunha criticou essa formulação de Saviani. O trecho que vou citar é longo, mas vale a pena para clarear o que de fato ocorreu com tal debate, que só se explicitou de forma clara bem mais tarde, em um texto em que Cunha, finalmente, colocou de maneira sistemática suas divergências com Saviani107:

No meu entender, a categoria “teorias crítico-reproduti- vistas” trouxe mais confusão do que esclarecimentos aos educadores, cujo conhecimento de teoria já é tão precário. Enquadradas na mesma categoria teorias tão diversas como a da violência simbólica e a da escola capitalista, e mais, mostrada sua insuficiência em dar conta do fenômeno educacional, o entendimento fica bastante simplificado e debilitado, pois não se precisaria mais estudar tais teorias. Bastaria dizer que elas só se propõem a explicar a reprodução da sociedade, o que é inadmissível, pois todas podem constatar a mobilização dos educadores e as conquistas democráticas que estão à vista, Bastava, doravante, usar a varinha de condão da

dialética e da retórica para fazer os versos de Vandré

adquirirem o status de teoria verdadeira. Os problemas, agora, seriam apenas de política prática: das eleições, das alianças, da ocupação dos cargos, dos métodos de trabalho etc.

Em conseqüência, o quadro sinóptico de Saviani sobre as teorias da educação teve muita aceitação e a categoria “teorias crítico-reprodutivistas” e seu correlato “reprodutivismo” viraram moeda franca na área educacional. (...)

1) A categoria [“crítico reprodutivas”, como Saviani a usou] prioriza o que as teorias de Bourdieu e Passeron, e de Baudelolt Establet teriam em comum, deixando de

107 Uma dos grande males que a Ditadura Militar nos trouxe (pelo menos à minha geração e, principalmente, à geração dez anos mais velha do eu, que foram meus professores  Saviani e Paulo Freire à frente, em meu primeiro mestrado e primeiro doutorado) foi exatamente este: nós, de esquerda, temíamos criticarmos uns aos outros, não só por conta de acharmos que estaríamos nos enfraquecendo perante a direita mas, também, porque havíamos incorporado, em muito, às vezes sem se dar conta, a prática de falta de diálogo sincero público. A crítica de Cunha é tardia, ainda que ele discordasse de Saviani desde o início a respeito da leitura dos autores franceses.

lado, justamente, o que elas têm de diferente, o que é muito mais importante. Para começar, o alcance pretendido por essas teorias era bem diverso: enquanto Bourdieu e Passerou visavam a oferecer condições de entendimento da educação (não só da escola) em

qualquer sociedade onde têm vigência relações de poder

entre grupos ou classes sociais, quaisquer que fossem essas relações, Baudelot e Establet focalizaram apenas a

escola na sociedade capitalista. Elas não são “teorias

setoriais”, que só vêm a educação: estão articuladas com teorias mais amplas, a respeito da sociedade inclusiva, que ocupam o primeiro plano da reflexão sociológica. Bourdieu e Passerou, especialmente o primeiro, são herdeiros de Marx, de Durkheim e de Weber, de quem reelaboraram conceitos, e propuseram conceitos novos, como os de habitat e de campo, que ampliaram muito as possibilidades de compreensão de problemas antigos e novos da Sociologia e da Antropologia. Assim, criticar a teoria da violência simbólica implica criticar todo o edifício teórico que a sustenta, o que ainda não fo feito, no Brasil nem fora dele.

2) O que a crítica ao “reprodutivismo” quis ver nas teorias em questão não me parece procedente. Entendo que ao invés de ambas levarem à suposta impotência, por nada restar aos docentes senão conformar-se com a reprodução da sociedade, elas permitem, isto sim, orientar sua ação, localizando-a diferentemente do que se fazia no Brasil daquela época. Para Bourdieu e Passeron, a mudança se dá fora da educação, ao nível das relações de força entre grupos ou classes sociais e com a mediação da cultura (adjetivada de arbitrária). Para Baudelot e Establet, a mudança da escola na direção dos interesses do proletariado só poderia ser feita na rede primário- profissional e nos “núcleos válidos” do currículo da rede secundário-superior.

3) Enquadrar essas teorias numa mesma categoria e im- putar-lhes o viés de introdutoras da impotência, de “reprodutivismo”, é descaracterizá-Ias, é retirar delas justamente o que se propõem a fazer: dar conta do fenômeno educacional enquanto prática social, apesar disso causar desconforto em uns e outros ou em muitos. Ao mesmo tempo, é reforçar a confortável segurança dos educadores que haviam ficado incomodados com elas. Se algum problema existe, está na onipotência dos edu-

cadores, não nas teorias que pretendem desvelar a ilusão da mudança da sociedade a partir da educação escolar. Essa onipotência se manifesta ora na forma religiosa primitiva de buscar a salvação da humanidade, ora na forma sublimada que, numa caricatura do pensamento de Gramsci, imagina serem os professores intelectuais orgânicos do proletariado. As teorias sociológicas que buscam dar conta do fenômeno educacional podem ser verdadeiras, falsas ou, então, apenas parcialmente verdadeiras. Mas concluir apenas a partir do fato de que os educadores caem vitimados pelo sentimento de impotência quando as conhecem, não é o procedimento adequado ao campo científico. É preciso mais: verificar sua coerencia interna, sua capacidade de explicar os problemas com que nos deparamos e submetê-las à concorrência das “teorias rivais”, visando a avaliar qual delas dá conta de modo mais abrangente das questões definidas como problemas no âmbito do próprio campo científico. Por exemplo, a delimitação do conteúdo a ser ensinado, os modos de inculcação, as formas de resistência, o rendimento da atividade pedagógica, a montagem dos sistemas de ensino, a ideologia docente (inclusive a tal potência trans-formadora ameaçada).

4)A crítica ao “reprodutivismo” foi aceita rapidamente por militantes do movimento docente, por administradores educacionais, por certos meios acadêmicos, pelos técnicos de entidades internacionais (tanto dos grandes bancos quanto das ONGs) e por quadros das sociedades religiosas. Mas, se a crítica foi vitoriosa no combate ao “reprodutivismo” (em termos de receptividade), ela não foi capaz de levar esses agentes a gerar uma nova teoria que desse conta, ao mesmo tempo, do caráter socialmente determinado da educação e da virtualidade transformadora atribuída à educação para com a sociedade que a determina. No entanto, essa virtualidade reassumida ocupou o lugar de um novo dogma, de unia verdade indiscutível e impossível de ser submetida à prova empírica. A esperança, sua mola mestra, sempre jogava essa prova para mais adiante. Pior para a Sociologia. Se, no Brasil, como em outros países da América Latina, a crítica ao ‘reprodutivismo´ buscava respaldar a ação política, ficamos com a ação e a ideologia em estado puro. Na Europa, fica-se com a micropesquisa, sem ação, e com uma ideologia que leva a ver o mundo

social atravessado por tantos problemas e conflitos que só é possível tratar de um de cada vez; e quanto menor, melhor. Lá e cá, lugar para teoria não há!” (Cunha, 1994, pp. 51-55).

A crítica acima, que serve mais como uma exposição das teorias referidas, pode ser reavalida à luz do outro intérprete, Saviani. Não é o caso aqui. Neste espaço, quero apenas mostrar como tais teorias tiveram peso nos anos oitenta, e quais sentidos tomaram.108

108 As posições de Saviani se reproduziram em quase todos os seus textos em que tratou de tendências pedagógicas, em especial no Escola e Democracia, aqui citado.