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Piaget e o Futurismo 97 de Lauro de Oliveira Lima

7. O Regime Militar (1964-1985)

7.1 Leituras em Educação Durante a Ditadura Militar

7.1.1 Piaget e o Futurismo 97 de Lauro de Oliveira Lima

Entre o final da década de 1950 e meados dos anos de 1980, cresceu de maneira signiticativa o número de textos e publicações na área da educação inspirados no pensador suiço Jean Piaget (1896-1980). Escritos de Piaget foram traduzidos para o português e também surgiram traduções dos comentaristas estrangeiros e de pedagogos que buscaram aplicar as teorias da psicologia e da “epistemologia genética” deste pensador a campos específicos da educação. Neste âmbito menciono, entre outros, os livros Didática psicológica de Hans Aebli (seu livro começou a ser estudado no Brasil em meados da década de 1950) e Piaget e a didática, de 1974, de Amélia Domingues de Castro (cf. Aebli, s/d; Castro, 1974). E um dos melhores livros do período sobre o pensamento pedagógico de Piaget foi, não à toa, do próprio Piaget:

Psicologia e pedagogia, de 1970.98 Neste livro, Piaget analisou não só as tendências tradicionais (que ele lembrava que permaneciam vigentes nas escolas soviéticas) e escolanovistas, optando por estas últimas, dado que estas estavam mais de acordo com sua distribuição do desenvolvimento psíquico da criança e do adolescente em fases, o que casava-se com a busca dos escolanovistas em compreender melhor os “interesses próprios” da criança para elaborarem os chamados métodos ativos em pedagogia (cf. Piaget, 1970).

Foi Lauro de Oliveira Lima, com uma serie de publicações, um dos

97 Devo este termo, para qualificar Lauro de Oliveira Lima, à minha primeira professora de Didática, quando da minha primeira graduação, em São Carlos, Haideé Semeguini, que me introduziu nas leituras de Piaget e que sabia como poucos o que de fato era trabalhar com didática. Fico triste em saber, hoje, que os alunos das licenciaturas acham as matérias pedagógica entediantes. A geração mais nova, optou pelos manuais classificatórios (como os textos de José Carlos Libâneo que, embora ajudem muitos professores, mantém o esquema do pensamento típico da escolástica dos velhos seminários, que insistiam em classificar tendências para, no final, apresentar a tendência “vencedora”), e não por uma discussão pedagógica teórica com vistas à prática, como Haideé sabia fazer.

98 Sempre o melhor texto de um autor clássico é um texto clássico deste autor. No entanto, na área de educação, principalmente nos anos finais da Ditadura Militar, quando do crescimento do número de programas de pós-graduação, em geral acostumamos a ficar com os comentadores em detrimento dos clássicos. Este é, também, um tema a ser estudado: a forma com que os professores universitários mais jovens selecionam suas bibliografias para suas aulas. Não raro, mesmo dando um curso básico, os professores não escolhem os clássicos acompanhados de um manual (para ordenar as leituras) para os alunos estudarem, mas escolhem livros de seus orientadores ou daqueles que comandavam o programa de pós-graduação do qual ele foi aluno ou, não raro, escolhem suas próprias teses. Deste modo surge, então, o aluno que leu a tese do professor mas que não tem nem uma visão do conjunto da matéria  proporcionada por um bom manual  nem a iniciação nos autores que delimitara universalmente o assunto  os clássicos. Para uma crítica aos programas de pós-graduação o leitor pode ver: http://www.filosofia.pro.br/textos/treze.htm

primeiros dos que contribuíram de forma significativa para que o escolanovismo piagetiano fosse divulgado entre nós. Certamente, um dos livros mais importantes da produção de Lauro de Oliveira Lima foi A

escola secundária moderna, que ganhou sua primeira edição em 1962 e

chegou à décima edição em 1976.

A idéia central de A escola secundária moderna pautou-se por traduzir, para o plano dos procedimentos didáticos, as conclusões pedagógicas da teoria de Jean Piaget divulgadas pelo Centro Internacional de Epistemo- logia Genética (Genebra). Segundo o autor, o piagetianismo no Brasil — aquilo que ele chamava de “método psicogenético” — assentava-se, no Brasil, historicamente nas “técnicas propostas” pela “literatura pedagógica criada ou divulgada por Lourenço Filho e Anísio Teixeira”. Tratava-se, portanto, segundo Lauro de Oliveira Lima, de uma continuidade em relação ao “movimento da Educação Nova” e, ao mesmo tempo, de uma modificação, pois a teoria piagetiana colocava o procedimento do professor em graus maiores de cientificidade, segundo Lauro de Oliveira Lima (cf. Lima, 1976).

A teoria psicológica de Jean Piaget, que colocou nas mãos do pro- fessorado uma determinada interpretação do desenvolvimento da criança em fases cronológicas, ganhou uma razoável divulgação e praticamente conferiu um novo status de cientificidade às pesquisas pedagógicas e didáticas, e mesmo à profissão de educador. De certa forma, contribuiu para o campo educacional também no sentido de alimentar anseios de caráter corporativo. E aí tivemos os excessos: quem sabia o que Piaget falou a respeito da criança sabia pedagogia, quem não sabia nada de Piaget não poderia falar sobre o desenvolvimento da criança e, assim, não poderia falar de pedagogia. Exceto por esses excessos, a literatura piagetiana trouxe um ganho para a pedagogia no Brasil, que foi a manutenção do tema da pedagogia na atividade infantil, coisa que outras formulações pedagógicas descuidaram a ponto de deixar a criança como elemento da puericultura médica, e não da reflexão filosófico-pedagógica.

Os escritos de Lauro de Oliveira Lima, embora centrados na vertente pedagógica que chamamos de escolanovismo piagetiano, se desdobraram para o campo das técnicas didáticas, muitas vezes gerando um amálgama que ora beneficiava ora confundia o professor. Assim é que a dinâmica de grupo, defendida nos textos de Lauro de Oliveira Lima, era uma técnica didática com características gerais não tão diferentes das outras técnicas que serviram de base para formulações pedagógicas que vinham de teóricos neobehavioristas99,

99 Deve-se sempre fazer uma grande diferença entre o behaviorismo em psicologia (com B. F. Skinner (1904-1990) e outros) e o behaviorismo em filosofia  como ele foi adotado pelo filósofo Quine. A confusão entre tais coisas tem levado a bons filósofos da educação no Brasil, ao não aceitarem o primeiro, não conseguirem ler e entender o

que, em princípio, poderíamos julgar como antagônicos às teorias de Piaget.

Nos anos de 1960 e 1970, o debate propriamente filosófico no campo educacional ficou reduzido, apesar do volume de teorias e pedagogias apresentadas. O debate Skinner versus Rogers ou Skinner versus Piaget centralizou as atenções do professorado.100 Na medida em que a década de 1970 foi transcorrendo, os escritos em psicopedagogia foram se tornando menos filosóficos, mas técnicos, no sentido de menos abertos às dúvidas filosóficas e mais diretos a respeito do que se deveria fazer no termos da metodologia do ensino-aprendizagem. Em determinado momento este tipo de literatura pedagógica, com características bastante próprias, passou a ser adotada como pedagogia oficial, compondo a maior parte das bibliografias dos concursos públicos para o ingresso na carreira do magistério em diversos níveis (cf. Ghiraldelli Jr., 1990, pp. 196-197).

O número de publicações no âmbito desse tipo de literatura pedagógica de caráter mais técnico chegou a ser volumoso e, em alguns momentos, suplantou as periódicas levas de publicações mais tipicamente escolanovistas. O livro Tecnologia educacional  teorias da instrução, de João Batista Araújo, constituiu-se num dos textos chaves da década de 1970, integrando a maior parte das bibliografias dos concursos públicos dessa época. Publicado em 1971, o livro chegou na sua quarta edição em 1976.

Invocando os princípios de “racionalidade, eficiência e produtividade” e, concomitantemente, embasado na ótica do “enfoque sistêmico”, este tipo de literatura pedagógica buscou provar sua superioridade científica sobre as teorias pedagógicas concorrentes. Para tal, apresentava-se enfatizando um quadro dicotômico a respeito das teorias educacionais: de um lado ficavam todas as outras teorias, fixadas como “não- científicas”, de outro lado ficava a pedagogia assentada nas técnicas psicopedagógicas e no “enfoque sistêmico”.

A idéia que se advogou é que as “velhas pedagogias”, dentro dos pares

segundo. Para uma noção do trabalho filosófico de Quine na educação e mais propriamente nas teorias educacionais, o leitor deve consultar: Ghiraldelli Jr, P. O que você precisa saber em didática e teorias educacionais. Rio de Janeiro: DPA, 2000b). 100 Mais adiante, mostro como essa redução do campo pedagógico ao debate em psicologia aplicada voltou à cena de modo exagerado, com o cansativo debate Piaget

versus Vygotsky. Digo cansativo debate porque, em geral, ao contrário da maneira que

Dewey fazia psicologia, atrelada a uma filosofia da educação, estilo que Anísio Teixeira manteve, muitos dos interpretes brasileiros, desconhecedores da filosofia da educação, empobreceram o campo pedagógico ao não compreender a amplitude das noções de Piaget e de Vygotsky se fossem inseridas na discussão filosófica educacional do século XX. Falo sobre isso, mais adiante, analisando um texto de história da educação bastante lido entre os professores, no final do anos oitenta e início dos anos noventa, o livro de História da educação do italiano eurocomunista Mario Manacorda.

antinômicos postos a seguir, ficariam em segundo lugar. Vejam. Os pares antinômicos eram apresentados da seguinte forma: objetivos educacionais operacionais versus objetivos educacionais vagos; otimização de métodos versus uso acidental de métodos; avaliação formativo-somativa versus critérios não mensuráveis de avaliação; educação baseada em teorias da instrução versus educação baseada em preferências e experiências do educador; seqüência de ensino baseada em estratégias versus seqüência dependente do conteúdo e da tradição; análise de custos e efetividade versus desconsideração para com os custos etc. Segundo os tecnocratas governistas, os segundos termos das dicotomias eram características “das outras pedagogias” e do sistema de ensino pré-1964, enquanto os primeiros termos caracterizavam a nova pedagogia baseada nas teorias da instrução (cf. Araújo, 1976). Estas novas pedagogias baseadas nas teorias de instrução de Skinner, R. Mager, R. Gagné e similares compunham o adversário e ao mesmo tempo o parente próximo do piagetianismo da época, pois se por um lado o piagetianismo da época poderia ser contrário a isto, ele só podia se colocar no debate, quase que como uma filosofia da educação, na medida em que se opusesse e/ou se aliasse a tal literatura (cf. Ghiraldelli Jr., 1990, p. 197).

Nesse mesmo período, baseado em leituras piagetianas e nas então leituras sobre teoria da comunicação, Lauro de Oliveira Lima produziu alguns belos livros de utopia pedagógica mais ou menos despolitizados. Pode-se enquadrar nesta leva o livro Mutações em educação segundo

McLuhan, que entre 1971 e 1976 alcançou nove edições, com mais de

95 mil livros vendidos. Em tal texto o piagetianismo de Lauro de Oliveira Lima foi integrado à moderna teoria de comunicação de massas e aos projetos futuristas extrapolados a partir das potencialidades educativas anunciadas por técnicas pedagógicas que não ficavam muito distantes do que diziam livros como o de João Araújo. O futuro da pedagogia, então, dependia menos de vontade política, de decisões filosóficas, de conflitos assumidos entre posições sociais e, sim, mais de opções por uma racionalidade tecnológica que até então não estaríamos dispostos a seguir por razões sabe-se lá qual.

Lauro acertou em muito sobre o futuro naquele livro. Não há quem tenha vivido a época e lido o pequeno livro e não concorde com ele que, hoje, trinta anos depois, o futuro chegou muito rápido  e com as inovações que ele intuía. Mas, talvez, Lauro tenha errado na medida em que pintou o futuro de modo muito ascético naquele pequeno livro. Sem luta política, nada conseguiríamos. Até hoje não conseguimos colocar os computadores e os terminais de informação à disposição de todos  nem mesmo a todos os universitários de instituições públicas  como ele achava que deveria acontecer “naturalmente”, apenas por conta das novas gerações perceberem o que era mais racional e o que não era

racional. Nesse aspecto, o traçado teórico de Lauro de Oliveira Lima, se mantinha interessante, mas já não era tão herdeiro, como ele mesmo dizia, do que pregou Anísio Teixeira e outros adeptos do escolanovismo.101 Como Dewey entendia o que era a educação renovada, ela seria sempre algo na democracia e para a democracia. Estávamos, naquela época, assistindo “2001 - Uma Odisséia no Espaço”, de Kubrick  que Lauro elogiava  mas vivendo sob uma Ditadura que era um tapa-olhos contra qualquer professor jovem que quisesse saber realmente o que é uma ... odisséia.