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4. A Segunda República (1930 – 1937)

4.3 As Propostas Pedagógicas dos Anos Trinta

4.3.1 Ideário Liberal

Em educação, o ideário liberal foi uma vertente forte no período e, até os dias de hoje, permanece como uma formulação agradável, bastante sedutora, que motiva as pessoas a buscar educação e a legitimar as reivindicações pela expansão da rede escolar e pela qualidade do ensino. Mesmo quando o liberalismo40, enquanto doutrina política e social, caiu sob severa crítica, durante o final dos anos trinta, por conta de ataques de comunistas e fascistas41 aos regimes liberais- democráticos, o ideário liberal no campo pedagógico não foi posto de lado.

Tal ideário teve vários teóricos e defensores em cargos governamentais no âmbito federal, estadual e municipal. Suas diretrizes, de um modo geral, se fizeram obrigatórias nos discursos de personalidades de formação diversa. É claro que, nem sempre, tais discursos foram pronunciados com sinceridade. Francisco Campos, por exemplo, autor da Constituição do “Estado Novo” e militante de grupos autoritários, pró-integralistas, enquanto ministro da Educação do “Governo Provisório” não pôde se desfazer de certos postulados do pensamento educacional liberal, ao menos em sua retórica pública. Campos, na IV Conferência Nacional de Educação, promovida pela ABE em 1931 na cidade do Rio de Janeiro, ao discursar perante os educadores presentes, não destoou do credo liberal:

O valor e o futuro do regime democrático estão, porém,

40 O liberalismo. Doutrina de caráter, ao mesmo tempo, econômico e político, calcada na idéia de liberdade individual. Em sua dimensão econômica, trata-se da defesa da liberdade de comprar e vender bens, sustentáculo das modernas economias de mercado. Em sua dimensão política, o liberalismo teve o sentido de ser um conjunto de salvaguardas (liberdades), obtidas pelas classes burguesas durante o processo histórico de sua ascensão à condição de classes dominantes, contra o poder discricionário do rei ou da nobreza, em nome da liberdade do povo. A questão naquele momento (séculos XVII e XVIII) era a obtenção de salvaguardas políticas (públicas) que livrassem as atividades econômicas (privadas) da interveniência arbitrária do soberano absolutista. Neste sentido, a história do liberalismo está intimamente ligada à da democracia. Nos Estados Constitucionais a partir do século XIX (Estados liberal- democráticos), liberalismo e democracia assumiram características complementares: o liberalismo ofereceu as garantias individuais pressupostas pela democracia e esta ofereceu o método, o procedimento para a escolha pública. (Nota de Alberto Tosi Rodrigues, especial para este livro).

41 Fascismo e nazismo. Ideologias políticas totalitárias que assumiram a condição de sistemas sociais e políticos totalitários na Europa no período anterior à Segunda Guerra (a partir dos anos trinta do século XX) e permaneceram no poder até sua derrota militar no conflito mundial. Foram ideologias militarizadas e centradas na veneração a líderes carismáticos (o italiano Benito Mussolini, no caso do fascismo e a alemão Adolf Hitler no caso do nazismo) bem como na mobilização das classes mais baixas da sociedade. (Nota de Alberto Tosi Rodrigues, especial para este livro).

no assentimento livre e refletido de opinião. Tal assentimento, porém, supõe iniciativa, espírito crítico, independência de juízo, capacidade de duvidar e de inquirir, todas as nobres qualidades que tomam o homem verdadeiramente livre. Neste sentido pode-se dizer que em uma verdadeira democracia o problema capital é a educação. Só ela torna possível a existência da capacidade e da técnica por que devem em uma democracia ser tratados todos os problemas. Ou, portanto, a educação forma homens para a democracia ou esta será uma nova forma de organização social, em que a paixão e os instintos, ou, antes, para falar a linguagem da psicologia animal, os reflexos das massas, condicionados por estímulos sabiamente calculados, dêem as respostas mais convenientes aos interesses daqueles que dispõem dos processos ou da técnica hoje tão aperfeiçoadas e poderosas, de manipular a opinião (apud Ghiraldelli, 1991, p. 100).

Se em outros assuntos o “Governo Provisório” fez questão de desviar sua fala e sua ação do campo liberal, na educação o ministro Francisco Campos reiterou a convicção de que “numa verdadeira democracia o problema capital” estaria na educação. E mais: defendeu uma educação “crítica”, capaz de salvaguardar o indivíduo frente aos modernos processos manipulatórios. E, como Anísio Teixeira, na esteira de Dewey, insistiu que a educação capacitaria o país para a resolução de seus problemas.

É claro que Francisco Campos não foi um defensor ardoroso desses princípios. O posto no Ministério da Educação e Saúde é que lhe obrigou a reconstruir seu discurso nesta linha, dado que seu público — os membros mais destacados da Associação Brasileira da Educação (ABE) — continha uma boa parcela de intelectuais que, como ele, eram modernizadores, porém, diferente dele, eram liberais de fato, em um sentido não conservador. Dentre este público estiveram presentes os três grandes signatários do “Manifesto dos Pioneiros de 1932”: Anísio Teixeira, Fernando de Azevedo e Lourenço Filho. Uma boa parcela dos outros signatários do “Manifesto” e as diversas pessoas ligadas ao problema educacional, de uma forma ou de outra, circularam na lógica liberal associada ao ideário da escola nova, então crescentemente delimitada por escritos representativos destes três autores, mais tarde conhecidos como os “cardeais do movimento renovador”.

aspectos: a igualdade de oportunidades e democratização42 da sociedade via escola; a noção de “escola ativa” (com a idéia de atividade pensada tanto de modo amplo quanto de modo estreito, voltada para orientação vocacional-profissional); a distribuição hierárquica dos jovens no mercado de trabalho por meio de uma hierarquia de competências e não por outro mecanismo qualquer; e, por fim, a proposta da escola como posto de assistência social. Anísio Teixeira, Fernando de Azevedo e Lourenço Filho deram ênfase a tais princípios diferentemente. Ou seja, Anísio enfatizou a relação entre a democracia e a educação no mundo moderno, Fernando de Azevedo enfatizou a idéia da “escola ativa” como escola vocacional, Lourenço Filho, por sua vez, criou testes para a hierarquização das vocações e enfatizou o papel de ajuda social da escola.

Em um livro de 1957, Educação não é privilégio, mas que refletia idéias já defendidas nos anos trinta, Anísio Teixeira escreveu que a escola “não podia ficar no seu estagnado destino de perpetuadora da vida social presente”, mas que teria de transformar-se no ‘instrumento consciente e inteligente do aperfeiçoamento social’. Mas, de maneira nenhuma, a tarefa da escola deveria ser a de revolucionar a sociedade ou, menos ingenuamente, participar de qualquer processo revolucionário. Pelo contrário: a escola deveria ser a guardiã da democracia. Para ele, as “desigualdades excessivas” do mundo moderno já teriam inviabilizado este mundo se não fosse a adoção da escola pública e o sindicalismo livre pelos países mais desenvolvidos (cf. Ghiraldelli Jr., 1991, p 101). Fernando de Azevedo, por sua vez, em 1926, quando do “inquérito sobre a instrução pública” para o jornal O Estado de S. Paulo, afirmou que “a escola, em vez de exercer sobre o aluno influências artificiais,

42 Democracia e Totalitarismo. Na escala de gradação dos regimes políticos, democracia e totalitarismo são os dois pontos extremos. Regimes políticos são conjuntos de instituições (regras do jogo) que oferecem a governantes e governados uma estrutura de oportunidades de ação política, ou de limitação a estas oportunidades. A democracia (“governo do povo”) é o regime em que a tomada das decisões obrigatórias para todos é feita por todos os cidadãos qualificados (demos). Ela pode ser definida pela completa certeza quanto aos procedimentos (estabelecimento prévio de quem decide, como decide e sobre o que decide) e pela completa incerteza quanto aos resultados (todas as decisões tomadas dentro dos procedimentos regulares devem ser vistas como possíveis e igualmente acatadas por todos). O oposto deste regime é o autoritarismo, um regime em que tanto os procedimentos decisórios quanto os seus resultados estão sujeitos à interferência discricionária dos indivíduos ou grupos detentores do poder. Totalitarismo é o autoritarismo levado às suas últimas conseqüências. A tal ponto que não se limita apenas ao nível do regime político, espraiando os procedimentos autoritários, para além da política, a todas as esferas da vida social, pública e privada (sociedade total), geralmente a partir de uma forte ideologia autoritária, como nos casos da Itália fascista à época de Mussolini, da Alemanha nazista à época de Hitler ou da Rússia comunista à época de Stálin. (nota de Alberto Tosi Rodrigues, especial para este livro).

deveria dar à criança a ‘iniciativa e a possibilidade de orientação, isto é, de sentir a vocação e conhecer as profissões’, pelos ‘testes’, na verificação das aptidões em germe e na prova dos efeitos do ensino sobre essas aptidões, pela freqüência ao cinema, pelas demonstrações práticas e pelas visitas às fábricas e à lavoura” (cf. Ghiraldelli Jr., 1991, p. 101).

Lourenço Filho endossou as teses de Anísio e certamente comungou com a concepção de escola de Fernando de Azevedo. Todavia, dos três, foi ele sem dúvida que, em várias oportunidades, enfatizou o caráter assistencial da escola. Em 1940, em uma entrevista para a Revista

Fomação, comentando sua gestão à frente da Diretoria de Instrução

Pública no Ceará nos anos vinte, Lourenço Filho disse: “a impressão mais agradável e mais profunda foi a que tive ao regressar, certa vez, a Fortaleza, no Ceará, e ser visitado por dezenas das primeiras crianças da cidade que haviam sido vestidas, calçadas e tratadas pela Caixa Escolar que ali fundei. Foi isto, em 1922: nunca mais esqueci a alegria daquelas crianças, chamadas ao convívio da escola, que dantes não podiam ter. E nunca mais vi tão claramente como a escola pode e deve ter um sentido de ‘serviço social”’ (cf. Ghiraldelli Jr., 1991, p. 102). Os estudos de psicologia de Lourenço Filho vieram a contribuir com a teoria endossada por Fernando de Azevedo, sobre a necessidade da escola dirigir a vocação e a orientação profissional, de modo a colaborar com a divisão social do trabalho na sua tarefa de harmonização da sociedade. A idéia era basicamente durkheimiana: se cada um tiver uma profissão, na qual chegou por vocação, então a sociedade passaria a se organizar de um modo mais coeso, através de uma solidariedade que seria mais apropriada ao funcionamento harmônico do organismo social. Isto pela razão de que cada indivíduo precisaria do outro, do serviço do outro; não haveria espaço para a oposição ao outro ou desprezo do outro; assim, a solidariedade, pela qual a sociedade se manteria coesa, dependeria menos da boa vontade de cada um e mais da própria dinâmica necessária do funcionamento do “organismo social”.

Para Lourenço Filho, segundo o clássico Introdução ao Estudo da Escola

Nova, de 1929, as concepções educativas sempre se basearam em

“noções relativas à natureza do homem”, e o “dinamismo psicológico” ofereceria uma “visão de síntese” insubstituível para o real entendimento desta natureza humana. Estaria aí a grande contribuição da psicologia para a educação. Mostrando as grandes vantagens da psicometria, observou que tal ramo do conhecimento em muito poderia contribuir para a “caracterização objetiva das semelhanças humanas e diferenças individuais”. Primeiramente, a educação poderia beneficiar- se, e vinha se beneficiando, através de uma melhor compreensão dos “padrões de comportamento” típicos de cada “fase evolutiva da criança”. Mas, certamente, o mais importante para a educação não estaria nestas

possibilidades de “diagnósticos”, e sim nas “possibilidades de prognósticos”. Ou seja, a psicologia deveria, segundo Lourenço Filho, cada vez mais colaborar com a educação na medida em que fosse fornecendo tanto “provas de rendimento quanto de personalidade” para que a educação pudesse assentar “técnicas de orientação educacional e de orientação profissional, como também de readaptação social para indivíduos desajustados e delinqüentes” (cf. Ghiraldelli Jr., p. 1991, p. 104).