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Introdução: breves comentários sobre o Direito Urbanístico brasileiro

A ordem jurídica protege os interesses individuais e também os direitos das coletividades. Nessa esteira, os direitos difusos são aqueles cujos detentores são uma coletividade indeterminada e indeterminável de pessoas, como o “direito ao meio ambiente equilibrado” e “o direito dos consumidores a pro- pagandas não abusivas/enganosas”, por exemplo. Esses direitos das coletivi- dades são protegidos das mais diversas formas pelo ordenamento jurídico pátrio. Entre eles, no que se refere ao crescimento das cidades – à ocupação de seus territórios, à oferta de moradia digna, à distribuição de seus equipa- mentos e serviços públicos, à redução de suas desigualdades e segregações, à sua mobilidade, confortabilidade e preservação de áreas verdes –, nossa legislação protege especialmente o Direito à Ordem Urbanística.

Com feito, no Brasil, há uma série de normas legais/jurídicas, dotadas de coercitividade, que vinculam as atuações dos governantes, obrigando-os a elaborar, periodicamente, atos legislativos especiais que regulamentem a expansão urbana dos municípios, sob certos critérios, requisitos de estudos técnicos e de participação popular, balizas e procedimentos predeterminados em leis.

Isso faz parte do Direito Urbanístico, que, no entendimento de doutrina- dores como Hely Lopes Meireles (1977) e George Hage Humbert (2017), se consubstancia como ramo autônomo do Direito Público1 com princípios e

linguagens próprios, sistematicidade, elementos e institutos jurídicos espe- cíficos2 – o que não lhe retira em nada, frise-se, sua multidisciplinaridade

intrínseca e originária, tanto interna como externamente ao mundo jurídico. Tem por objeto o conjunto de normas jurídicas que disciplina a organização das cidades, que rege seus espaços habitáveis, que regulamenta e impõe o ordenamento urbano, com vistas à plena consecução das funções sociais da

1 “Não obstante, subjuga-se, no que é geral e compatível, à égide do Direito Público, guiando-se a partir da supremacia e indisponibilidade do interesse público, bem como da legalidade, impessoalidade, morali- dade, eficiência, publicidade, razoabilidade, proporcionalidade”. (HUMBERT, 2017, p. 17)

2 São institutos jurídicos específicos do Direito Urbanístico: solo criado; parcelamento, edificação ou uti- lização compulsórios; IPTU progressivo no tempo; Plano Diretor de desenvolvimento urbano; desapro- priação sanção; transferência do direito de construir; outorga onerosa do direito de construir; operações urbanas consorciadas. Alguns destes institutos serão tratados mais à frente no presente trabalho.

cidade – habitação, trabalho, lazer, saúde, seguridade, circulação, confortabi- lidade ambiental, infraestrutura urbana adequada e acessível a todos.

Entre os princípios jurídicos próprios e específicos do Direito Urbanístico brasileiro, é imperioso perpassar, mesmo que muito brevemente, pelos:

a. da função social da propriedade urbana; b. da função social da cidade;

c. do planejamento urbanístico; d. da gestão democrática das cidades.

Os princípios da função social da propriedade (arts. 5o, XXIII, 182 e 170,

III, da CF/88) e da função social da cidade (art. 182 da CF e 2º do Estatuto da

Cidade) têm caráter nuclear, de pedras angulares do microssistema do Direito Urbanístico. São prismas sob os quais deve ser focada qualquer interpreta- ção/aplicação dos dispositivos legais da matéria. Visam, em última instância, o bem-estar comum, a satisfação e felicidade coletivas.

O princípio da função social da propriedade limita, dá os contornos da ex- tensão do direito individual à propriedade privada. Do paradigma do direito clássico, liberal, pautado pela subserviência completa à igualdade formal (e fria) perante a lei e pela monetarização dos direitos (conversão em perdas e danos/indenização em pecúnia como modo de ressarcimento pelo dano cau- sado a qualquer tipo de direito), passou-se para o paradigma da igualdade material, atrelado ao Estado de Bem-Estar Social, pautado pela necessidade de promoção da justiça social e pelo entendimento de que nem toda lesão a um direito pode ser convertida em mera indenização em pecúnia. Com o tem- po, novos tipos de direitos surgem e novas formas de tutela desses direitos precisam ser desenvolvidas.

É nesse contexto que o direito à propriedade privada vai perdendo seu caráter absoluto – tão caro ao desenvolvimento histórico da sociedade capitalista –, passando a ser relativizado pelo princípio da função social: deve ser exercido em consonância com o interesse da comunidade.

Ao dono de um imóvel, são, então, impostos deveres, posturas ativas, bem como proibições, tudo decorrente do fato de o bem privado estar inserido num contexto mais amplo, coletivo, com o qual deve obrigatoriamente coa- dunar-se, sob pena de incidência de gravames jurídicos ao proprietário.

Em apertadíssima síntese, um bem, mesmo que privado, tem uma fun- ção social a cumprir. Pelo princípio da função social da propriedade urbana, se não a cumprir, na forma estabelecida na legislação, seu proprietário será submetido a sanções (parcelamento, edificação ou utilização compulsórios; IPTU progressivo no tempo), até que exerça seu direito à propriedade de for- ma harmônica com o bem de todos. Ou até que sofra uma desapropriação sanção (com pagamentos em títulos da dívida pública) promovida pelo Poder Público, por desobediência reiterada às normas que impõem o respeito à fun- ção social da propriedade urbana.

Conforme será mais bem explicado à frente neste artigo, tais sanções, espécies de institutos de Direito Urbanístico (parcelamento, edificação ou utilização compulsórios; IPTU progressivo no tempo; desapropriação sanção) e os requisitos para que um imóvel cumpra (ou não) sua função social em certa cidade precisam ser devidamente regulamentados pela legislação urbanística do município em questão (Plano Diretor) para que tenham aplicabilidade concreta enquanto instrumentos de ordenação da expansão urbana e de combate ao potencial danoso de uma especulação imobiliária desenfreada.

Pelo correlato princípio da função social da cidade, deve o Poder Público atuar de forma constante e incessante pela promoção de moradia digna para todos, de trabalho, de meios de circulação que confiram mobilidade, de es- paços de lazer nas diferentes áreas da cidade, de direitos da seguridade e da saúde, de justa distribuição de infraestrutura, de oferta de equipamentos públicos e de serviços para todos. Deve o Poder Público conter o potencial danoso da especulação imobiliária ilimitada e as investidas segregadoras dos interesses econômicos privados hegemônicos, garantir a participação popular na gestão do espaço urbano, tudo de forma a concretizar a cidade inclusiva, a cidade de todos e para todos, no caminho da sustentabilidade e da confortabilidade ambiental. São, então, constituídos deveres-poderes ao Estado, de prestações positivas e relativas aos direitos sociais dos munícipes, dos turistas, dos trabalhadores e dos cidadãos em geral que se relacionam de alguma forma com aquele espaço urbano.

Importante registrar que o princípio da função social da cidade tam- bém serve de contorno e limites para o exercício da propriedade privada, relacionando-se intimamente com o princípio da função social da proprie- dade urbana.

Nas palavras de George Louis Hage Humbert (autor de tese de doutorado sobre o assunto), mencionando o artigo 182 da Constituição Federal e correla- cionando os princípios em comento:

É dever do Poder Público, em todas as esferas, implementar a política urbana com vistas à consecução das funções sociais da cidade e do bem-estar dos cidadãos.

Aqui o Plano Diretor assume papel importante, vez que eleito ins- trumento básico da política urbana. Basta verificar que o parágrafo segundo do artigo em comento predispõe que a propriedade urbana cumpre a sua função social quando satisfaz as exigências, as dire- trizes e disposições expressas no plano diretor, elevando-o ao status de instrumento básico de ordenação e gestão dos espaços urbanos. [...]

Não resta dúvida de que a política urbana e seus instrumentos de- vem interferir na propriedade, conjugando planejamento adequado – mediante elaboração de Plano Diretor e compreendidas, obviamen- te, as normas que o complementam e minudenciam – e imposição de cumprimento da função social da propriedade, para assim atender os imperativos constitucionais de atendimento das funções sociais da cidade e do bem-estar do cidadão. (HUMBERT, 2017, p. 92; 94)

Nessa esteira, acoplado aos princípios da função social da propriedade e da cidade, vem o princípio do planejamento urbano (CF arts. 175 e 182, EC, art. 2º), que é verdadeiro pressuposto da ordem urbanística. Exige coesão di-

nâmica e técnica das normas jurídicas que versem sobre política urbana, com planos urbanísticos municipais hierarquicamente vinculados, sendo os su- periores caracterizados por normas gerais, diretrizes, disciplinamentos e zo- neamentos mais amplos, bem como pela regulamentação dos instrumentos de Direito Urbanístico, tornando-os efetivamente aplicáveis na cidade. Já os planos inferiores, por sua vez, mais específicos e pontuais, alinhados e con- formados com os superiores, valem-se racionalmente dos instrumentos ur- banísticos já anteriormente regulamentados para dar concreção ainda maior às transformações, avanços e melhorias que se pretende operar na cidade. É indispensável que estejam todos coesos e coerentes entre si, acomodados, interligados e embasados por estudos técnicos que lhes deem unidade, siste- maticidade e efetividade prática na consecução das funções sociais da cidade e das propriedades urbanas.

Assume então o Direito Urbanístico, como decorrência inexorável do princípio do planejamento urbano, especial dimensão técnica e multidisci- plinar, que passa a ser requisito qualificado dos atos legislativos municipais sobre política urbana. Portanto, planejamento urbano só existe quando hou- ver, também, de forma precedente e contínua, a realização/produção de es- tudos técnicos densos, profundos, amplos, atuais e multidisciplinares sobre a cidade em questão, aptos a embasar, alicerçar e nortear o seu ordenamento urbano, categorizar e especificar as situações locais de imóveis que não aten- dam à função social da propriedade urbana, racionalizar territorialmente a aplicação dos instrumentos de Direito Urbanístico, e, assim, alcançar, respei- tar e promover as funções sociais da cidade.

Vejamos o que diz, sobre o Princípio do Planejamento Urbano, George Hage Humbert (2017, p. 53):

Objetiva-se, por este princípio, que as normas, instrumentos e a ati- vidade urbanística não se deem de forma aleatória, mas ordenada, planejada, ordenada, para que cada zona, cada localidade tenha tra- tamento específico e adequado às suas necessidades reais, tendo-se em mente os diversos aspectos da vida na cidade: moradia, produção industrial, lazer, trabalho, administração da cidade etc.

[...]

Com base nesse princípio rechaça-se a administração, a atividade ur- banística improvisada, garantindo uma atuação proativa do Estado, em consonância ao próprio princípio constitucional da eficiência.

À exigência de alicerce técnico denso e amplo, soma-se a exigência de participação popular direta e substancial durante todos os processos de pla- nejamento urbano. Dos estudos e dados levantados pelos técnicos, deve ser perquirida também a vontade popular, a vontade dos diferentes segmentos sociais que compõem a cidade e sobre ela têm direitos, anseios, vontades e reconhecimentos de identidade e de pertencimento.

As décadas da segunda metade do século XX demonstraram que a técnica e a ciência, o cientificismo, o urbanismo racionalista e modernista, em mol- des puramente tecnocráticos, desprovidos de qualquer participação popular, podem levar ao desrespeito à singularidade dos indivíduos, às tradições e à própria história da cidade. Tanto a teia urbana da cidade tradicional quanto a antiga cultura da vizinhança se veem ameaçadas, e as populações de baixa

renda são, frequentemente, expulsas para zonas mais periféricas e carentes de serviços e equipamentos.

A essa constatação, somou-se o período histórico da redemocratização e do agigantamento do anseio popular por instrumentos de democracia par- ticipativa. Consubstanciou-se, assim, o princípio da gestão democrática das cidades: a participação dos distintos segmentos sociais, dos diferentes atores, classes e grupos, inclusive das minorias, se faz imprescindível para a gestão do processo de urbanização. Deve todo e qualquer plano urbanístico, qual- quer legislação urbanística municipal, ser objeto de consulta popular efetiva, substancial e direta,3 desde suas primeiras formulações, bem como durante

a tramitação e até sua ulterior aprovação (ou rejeição) na Câmara Municipal. Dentro desse plexo de princípios e das regras e normas obrigatórias que conformam o Direito Urbanístico Brasileiro, de meados de 2015 a meados de 2016, a Prefeitura de Salvador viu-se diante da obrigação de formular o ato legislativo especial voltado para a regulamentação ordenada do crescimento urbano de nossa capital – uma metrópole historicamente desordenada, se- gregada, com mobilidade deficitária, poucas áreas verdes, trânsitos conges- tionados, pontos de superadensamento, construções em áreas de riscos (des- lizamentos e inundações), deficiência habitacional, ilhas de calor e outros problemas. No plano legislatorial, vale destacar a ausência de categorização

3 Nesse sentido, trazemos importante julgado do Tribunal de Justiça do Maranhão, confirmando a anula- ção de Lei Municipal sobre política urbana, em virtude da ausência de participação popular durante o processo legislativo: “EMENTA: CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. […]. SENTENÇA QUE JULGOU PROCEDENTE AÇÃO CIVIL PÚBLICA DECLARANDO NULAS AS LEIS MUNICIPAIS Nos.5389/2010 E 5.391/2010, QUE ALTERARAM A LEI No 3.253/1992, QUE DISPÕE SOBRE O ZONEAMENTO, PARCELAMENTO, USO E OCUPAÇÃO DO SOLO URBANO DO MUNICÍPIO DE SÃO LUIS, POR AUSÊNCIA DE ESTUDOS TÉCNICOS, DE PUBLICIDADE, DE TRANSPARÊNCIA E DE PARTICIPAÇÃO POPULAR EM SEUS PROCESSOS LEGISLATIVOS, RECONHECENDO INCIDENTALMENTE OFENSA À CF, E CONTRARIEDADE AO ESTATUTO DA CIDADE (LEI FEDERAL No 10.257/2001) E À LEI MUNICIPAL No 4.669/2006, QUE DISCIPLINA O PLANO DIRETOR DO MUNICÍPIO DE SÃO LUIS. LEIS DE EFEITOS CONCRETOS. […] 2. Considerando que as leis que dispõem sobre o zoneamento, parcelamento, uso e ocupação do solo urba- no municipal, são leis de efeitos concretos, não apresentando, pois, características de generalidade e de abstração típicas das demais leis, podem as mesmas ser impugnadas por meio dos instrumentos proces- suais voltados para o controle da legalidade dos atos administrativos em geral, tais como o mandado de segurança, a ação popular e a ação civil pública, não se podendo ter por inadequado o uso dessa última espécie de ação pelo Ministério Público Estadual para, com base em elementos de provas colhidos em inquérito civil público, pedir a decretação de nulidade de leis dessa natureza por ausência de estudos téc- nicos, de publicidade, de transparência e de participação popular no curso de seus processos legislativos, ofendendo incidentalmente a CF e em confronto com o Estatuto da Cidade (Lei Federal noº 10.257/2001) e com a Lei que dispõe sobre o Plano Diretor do próprio município réu”. (TJMA. Mandado de Segurança no 29167/2012, Relator: Desembargador Jamil de Miranda Gedeon Neto, 5 abr. 2013, grifo nosso)

das situações de imóveis em desencontro com sua função social, e a conse- quente não regulamentação dos instrumentos de Direito Urbanístico coerci- tivos – parcelamento, edificação e utilização compulsórios; IPTU progressivo no tempo; desapropriação sanção – que poderiam ser aplicados para se fazer cumprir a função social da propriedade urbana.

Analisaremos, então, ao longo deste artigo, como se deu a elaboração do instrumento legal que passou a disciplinar a expansão urbana de Salvador (o “Novo PDDU de Salvador”4), pautando-se esta análise pelo prisma da legis-

lação existente sobre a matéria no Brasil, no que toca especificamente dois pontos inter-relacionados: a proteção da ordem urbanística pelas exigências legais de estudos técnicos e de conteúdo mínimo para o ato legislativo que regulamentará o desenvolvimento do município. Antes, contudo, faz-se im- portante perpassar pelo processo histórico que:

a. se origina das lutas pontuais por habitação e das batalhas de resistência contra expulsões coletivas e arbitrárias de populações de baixa renda dos centros desde o início do século XX;

b. passa pela formação do Movimento Nacional pela Reforma Urbana e;

c. culmina com a aprovação parcial da Emenda Popular da Reforma Urbana na Constituição de 88 e o advento do Estatuto da Cidade em 2001.

Processo histórico de matriz constitucional do Direito

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