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O “Novo PDDU de Salvador”: conteúdo muito aquém do mínimo exigido pelo Estatuto da Cidade

No caso do “Novo PDDU de Salvador”, a Prefeitura Municipal atuou como se as exigências legais dos arts. 42 e 42-A do Estatuto da Cidade não exis- tissem, como se não tivesse que se pautar pela legalidade durante a elabo- ração/revisão do Plano Diretor. Neste diapasão, de forma absurda, o PL foi encaminhado para o legislativo sem conter a “delimitação das áreas urba- nas onde poderá ser aplicado o parcelamento, edificação ou utilização com- pulsórios, considerando a existência de infraestrutura e de demanda para utilização”, em nítida afronta ao que determina a cristalina redação legal do art. 42, inciso I, do Estatuto da Cidade – reproduzida ao fim deste parágrafo. (BRASIL, 2001)7

Transcreveremos aqui o texto do “Novo PDDU Salvador” sobre esse ins- trumento imprescindível de Direito Urbanístico, a fim de explicitar a frontal

7 Em importante julgado sobre Direito Urbanístico, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul determi- nou que os Poderes Municipais da cidade de Osório/RS cumprissem o art. 42, inciso I, do Estatuto da Cidade, mediante a inclusão no Plano Diretor Municipal do conteúdo mínimo legal exigido, com a ne- cessária delimitação das áreas nas quais poderão ser aplicados os instrumentos urbanísticos de parce- lamento, edificação ou utilização compulsórios. Vejamos a ementa da decisão do Tribunal: “APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO PÚBLICO NÃO ESPECIFICADO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. DIREITO ADMINISTRATIVO. ELABORAÇÃO DE PROJETO DE LEI DESTINADO A ADEQUAR O PLANO DIRETOR DO MUNICÍPIO DE OSÓRIO À LEI N. 10.257/2001 (ESTATUTO DA CIDADE). 1. In casu, o que se pretende é adequar o Plano Diretor do Município de Osório/RS à Lei non. 10.257/2001 (Estatuto da Cidade). Ou seja, a demanda não pretende controle concentrado de constitucionalidade de qualquer ato normativo, mas sim, suprir omis- são de lei infraconstitucional municipal em face de lei infraconstitucional federal. Trata-se de conflito de duas normas infraconstitucionais e a ação busca solução para esta ilegalidade. […] 4. A delimitação das áreas nas quais poderá ser aplicado o parcelamento, edificação ou utilização compulsórios deve estar obrigatoriamente prevista no Plano Diretor. A discricionariedade consiste tão-somente na avaliação da necessidade, ou não, de aplicação dos referidos institutos, e não de sua previsão. Assim, pertinente a ela- boração de projeto de lei que altere o Plano Diretor do Município para atender a previsões contidas nos arts. 5º e 42, I, do Estatuto da Cidade (Lei non. 10.257/2001)”. (Apelação Cível no 70054795836, Segunda Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: João Barcelos de Souza Junior, Julgado em 10/07/2013)

ofensa ao art. 42 – I do Estatuto da Cidade por parte dos Poderes Executivo e Legislativo do Município soteropolitano:

Seção I Do Parcelamento, Edificação ou Utilização Compulsórios Art. 286. Em atendimento à função social da cidade e da proprieda- de, o Município poderá exigir do proprietário de imóvel localizado na Macrozona de Ocupação Urbana, considerado não edificado, subutilizado ou não utilizado, nos termos desta Lei, seu adequado aproveitamento na forma de parcelamento, edificação ou utilização compulsórios, sob pena sucessivamente de:

I – aplicação do IPTU progressivo no tempo;

II – desapropriação com pagamento em títulos da dívida pública. §1o Considera-se não edificado, o terreno ou lote não construído. §2º Considera-se não utilizado, o terreno não construído e não apro- veitado para o exercício de qualquer atividade que independa de edi- ficações para cumprir sua finalidade social.

§3o Considera-se subutilizado:

I – o terreno edificado em que a área construída seja inferior ao coefi- ciente de aproveitamento mínimo (CAMín) estabelecido para a zona em que se localize;

II – o terreno que contenha obras inacabadas ou paralisadas por mais de 05(cinco) anos;

III – a edificação em estado de ruína;

IV – a edificação ou conjunto de edificações em que 80% (oitenta por cento) das unidades imobiliárias estejam desocupadas há mais de 05 (cinco) anos. (SALVADOR, 2016)

Numa leitura inicial e rápida desse artigo, um leitor desatento e menos familiarizado com a matéria pode cair no equívoco da interpretação de que o texto do “Novo PDDU de Salvador” teria cumprido seu mister Constitucional e legal de tornar aplicável os mecanismos de cumprimento da função social da propriedade urbana, estabelecendo a categorização e a individualização dos imóveis subutilizados. Entretanto, para a preocupação de toda a coletividade soteropolitana, não foi isso que ocorreu.

Isso porque, embora o §3º do art. 286 prescreva que “considera-se subu- tilizado o terreno edificado em que a área construída seja inferior ao coefi- ciente de aproveitamento mínimo (CAMín) estabelecido para a zona em que se localize” (SALVADOR, 2016),não houve a respectiva e imprescindível ela- boração do mapa contendo as zonas rebatidas e delimitadas no território da

cidade! Não se sabe, portanto, em que zona um certo imóvel está, e, sem saber isso, não se sabe o CAMin aplicável. Não sabendo o CAMin que se aplica, não se sabe, por conseguinte, se o imóvel está subutilizado ou não.

Ou seja, não houve zoneamento no “Novo PDDU de Salvador”. Há mapas apenas com macroáreas e macrozonas. Mas, o zoneamento a que se refere o §3o do art. 286, a delimitação das “zonas” em que cada “coeficiente mínimo

de aproveitamento mínimo” incidirá, isto “ficou para depois”. Não tem como se saber, portanto, qual o CAMin aplicável ao imóvel, porque não se tem como saber qual a zona que o imóvel está.

Observe que o §5o, a seguir transcrito, explicita que os imóveis não edi-

ficados, subutilizados ou não utilizados ainda dependem de identificação – sem, contudo, determinar prazo para que esse estudo de identificação seja realizado:

Art. 286. [...]

§5o Os imóveis nas condições a que se refere este artigo, serão iden- tificados e seus proprietários notificados. (SALVADOR, 2016)

Da mesma forma, o art. 288 do “Novo PDDU de Salvador” explicita ainda mais o quão longe de ser aplicável no território de Salvador está o instrumen- to urbanístico do parcelamento, edificação e utilização compulsórios:

Art. 288. Lei Municipal específica definirá:

I – as condições, etapas e prazos para o cumprimento da obrigação; II – a área mínima dos terrenos a serem atingidos em função de sua localização na Macrozona de Ocupação Urbana e a identificação dos terrenos a serem atingidos pelo instrumento;

III – a definição do porte dos empreendimentos, para os quais se ad- mite a conclusão em etapas, assegurando-se que o projeto aprovado compreenda o empreendimento como um todo;

IV – as condições para implementação de Consórcio Imobiliário, como forma de viabilização financeira do parcelamento ou edifica- ção do imóvel;

V – os procedimentos para notificação ao proprietário, específicos em se tratando de pessoa física ou jurídica;

VI – a definição do órgão encarregado da notificação ao proprietário e da manutenção de cadastros atualizados que permitam a monitora- ção e fiscalização da aplicação dos instrumentos. (SALVADOR, 2016)

Para agravar a situação de carência de proteção à ordem urbanística em Salvador, sequer foram estabelecidos prazos para que se regulamente o que ainda está faltando para tornar o instrumento aplicável.8

O “Novo PDDU de Salvador”, então, robustece a conclusão que a socióloga Ana Paula Soares obteve após analisar relatórios de pesquisas sobre o conteú- do dos Planos Diretores brasileiros e a (não) aplicabilidade dos instrumentos de Direito Urbanístico de defesa da função social da propriedade urbana:

Em grande parte dos casos, esses relatórios salientam que há de fato uma incorporação massiva dos instrumentos ao texto do PD, mas que eles falham no quesito aplicabilidade. Isso porque não se costu- mam estabelecer prazos e normas para sua aplicação nem formas de monitoramento e revisão. Ressalta-se que, na maior parte dos casos, a aplicação dos instrumentos está submetida à aprovação de lei es- pecífica e que apenas raramente são estabelecidos prazos para re- gulamentação da matéria, o que protela a aplicação do instrumento para um futuro incerto. (CARVALHO, 2016, p. 166)

Vale relembrar que a não aplicabilidade do instrumento urbanístico do parcelamento, edificação e utilização compulsórios acarreta a não aplicabi- lidade também do IPTU progressivo no tempo e da desapropriação sanção, esvaziando por completo a função social da propriedade urbana em Salvador, e, consequentemente, a função social de nossa metrópole.

No que toca o inciso III do art. 40 do Estatuto da Cidade – e sua deter- minação de que qualquer Plano Diretor, obrigatoriamente, possua “siste- ma de acompanhamento e controle” –, o Novo PDDU de Salvador também foi omisso.

8 Em decisão cuja ementa transcrevo a seguir, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul estabeleceu prazo para que os Poderes Municipais de Rosário do Sul/RS delimitassem e regulamentassem as áreas de incidência do instrumento urbanístico de utilização compulsória, com base no art. 42, inciso I, do Estatuto da Cidade. Vejamos: “APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. MUNICÍPIO DE ROSÁRIO DO SUL. PLANO DIRETOR. ADEQUAÇÕES CONSOANTE O ESTATUTO DA CIDADE. PRAZO PARA CUMPRIMENTO. ASTREINTES. Há necessidade de adequações do Plano Diretor do município, para re- gulamentação das áreas de utilização compulsória, na forma do art. 42, inciso I, do Estatuto da Cidade, o que foi reconhecido pelo réu em contestação. PRAZO. Estendido o prazo para apresentação de projeto de lei com as modificações em discussão no Plano Diretor Municipal à Câmara dos Vereadores para 09 meses. [...]. APELAÇÃO PARCIALMENTE PROVIDA”. (Apelação e Reexame Necessário Nº 70065052763, Vigésima Primeira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Almir Porto da Rocha Filho, Julgado em 08/07/2015)

Trazemos, neste ponto, comentários doutrinários sobre o inciso, tecidos pelas Procuradoras Municipais de Porto Alegre Andrea Vizzoto e Vanêsca Prestes (2009, p. 125):

Faz parte do conteúdo mínimo dos planos diretores o sistema perma- nente de acompanhamento e controle da sua execução. É necessário que seja monitorado o sistema de planejamento e gestão da cidade de modo que seja observada e mantida a proporcionalidade entre a infraestrutura existente e o aumento da densidade esperado. Esse processo necessita ser demonstrado e aferido.

O renomado doutrinador José Afonso da Silva (2010, p. 140-141) reforça esse entendimento:

O aspecto administrativo-institucional do Plano Diretor é fundamental para a atuação urbanística do Município. O plano deve prever os meios institucionais necessários à sua implementação, execução, continui- dade e revisão. O processo de planejamento há de ser contínuo; por isso, o plano, como seu instrumento fundamental, há de estar sem- pre aperfeiçoando-se. Ele ‘é uma arma de ação que se desenvolve e aperfeiçoa paralelamente ao próprio desenvolvimento do organismo vivo chamado cidade. O plano não é, por isso mesmo, um documento rígido. Ele se compõe de um órgão elaborador, de um documento-base (Plano Diretor propriamente dito), o qual se apresenta sob a forma grá- fica (plantas e relatórios) e sob a forma jurídica (leis e regulamentos)’. O plano há que prever as mudanças institucionais, organizatórias e jurídicas necessárias ao seu funcionamento. Deve prever a institu- cionalização do órgão de planejamento local, o preparo de funcioná- rios locais para sua elaboração, revisão, implementação e execução, pois tais atividades não podem ser realizadas por técnicos de fora do Município planejado; deve propor as alterações nas leis existentes visando a adequá-las ao processo de planejamento, preparando os anteprojetos de leis indispensáveis à sua implementação e execução, bem como os regulamentos e outros atos jurídicos aconselháveis.

Contudo, cotejando-se o “Novo PDDU de Salvador”, por mais que se procu- re, não se acha nada que lembre um sistema de acompanhamento e contro- le. Sequer poderia ser chamado de Plano. Muito menos de Desenvolvimento Urbano. Isto também está muito bem demonstrado no Parecer já citado neste artigo, elaborado por especialistas do urbanismo.

Em relação às exigências de conteúdo mínimo do art. 42-A do Estatuto, o “Novo PDDU de Salvador” também é omisso, já que sequer há o mapa das áreas suscetíveis à ocorrência de deslizamentos de grande impacto. Um fla- grante absurdo, já que Salvador é caracterizada justamente por uma enorme falha geológica e possui diversas áreas sujeitas a deslizamentos trágicos e fa- tais, tão recorrentes em nossa metrópole. É inacreditável que, mesmo com tantos registros de tragédias de deslizamentos, e mesmo com a exigência legal expressa e clara, a gestão municipal à época não tenha elaborado um mapa com as áreas de risco. Ao se ler o “Novo PDDU de Salvador”, o art. 21 demonstra que o mapa com as áreas de risco (também) ficou para depois – e sem definição de prazo:

Art. 21. Áreas impróprias para a ocupação humana são aquelas propensas a ocorrência de sinistros, em função de alguma ameaça, quer seja de origem natural, tecnológica, quer seja decorrente de condições socioambientais associadas às vulnerabilidades do as- sentamento humano, sobretudo quando ocorrem altas densidades populacionais vinculadas a precárias formas de ocupação do solo, classificadas, a critério do Executivo, conforme os seguintes tipos: […]

Parágrafo único. O Executivo realizará mapeamento das áreas impró- prias para a ocupação humana, a ser incorporado pelo SIM-Salvador, para fins de planejamento e monitoramento, complementando e atualizando as informações já reunidas pelo Plano Preventivo de Defesa Civil. (SALVADOR, 2016)

Nem o mapa das áreas de risco, nem diversas outras exigências do art. 42-A foram cumpridas. Planejamento de ações de intervenção preventiva e realocação de população de áreas de risco de desastre (art. 42-A, inciso III)? Nada disso foi previsto no “Novo PDDU de Salvador”.

Medidas de drenagem urbana necessárias à prevenção e à mitigação de impactos de desastres (art. 42-A inciso IV)? Isto também não foi tratado pelo “Novo PDDU de Salvador”, apesar de existirem áreas de notório conhecimen- to, em nossa cidade, que necessitam destas medidas, a fim de se prevenir danos coletivos.

Analisando o próprio texto do “Novo PDDU de Salvador”, constata-se que não havia estudos técnicos para que se pudesse prever ações de intervenção preventiva nas áreas de risco, que também não foram sequer mapeadas pelos

mesmos motivos – pressa eleitoreira e não produção de estudos suficientes. Vejamos como o art. 97 e os seguintes da própria Lei Municipal em comento demonstram os estudos técnicos faltantes para se proteger a população ca- rente de desastres:

Art. 97. As diretrizes para a drenagem e o manejo de águas pluviais urbanas são:

[…]

V – elaboração de cadastro físico das redes de macro e microdrena- gem de águas pluviais do Município;

[...]

Art. 98. São objetivos prioritários para o Sistema de Drenagem e o Manejo de Águas Pluviais Urbanas:

I – elaborar e manter atualizado o cadastro físico das redes de in- fraestrutura, em especial, das redes de macro e microdrenagem de águas pluviais do Município;

II – elaborar Modelagem Hidrológica e Cartas Geotécnicas;

III – elaborar, implementar, monitorar e avaliar o Plano Municipal de Drenagem e Manejo de Águas Pluviais Urbanas;

IV – elaborar Manual de Drenagem e Manejo de Águas Pluviais, em conformidade com a legislação superveniente. (SALVADOR, 2016)

Ora, tudo ainda está para se “elaborar”. Matérias que, obrigatoriamente, deveriam estar incluídas no PDDU sendo “jogadas para depois”. Nesse caso das áreas de risco, das ações de prevenção e de drenagem, são vidas huma- nas que estão diretamente em perigo. Tudo está para se “elaborar”, e nenhum prazo foi determinado para as “elaborações”.

Como se pôde inteligir ao longo desse tópico, o conteúdo mínimo exigi- do pelo Estatuto da Cidade ficou muito aquém de ser cumprido pelo Plano Diretor aprovado em 2016 pela Câmara Municipal de Salvador. E isto decor- reu, dentre outros motivos (como a falta de interesse político), pela fragilida- de dos estudos técnicos que, em tese, serviram de base para a formulação do PL que veio a ser aprovado.

Saliente-se ainda que esta exigência legal de um conteúdo mínimo para os Planos Diretores está umbilicalmente ligada ao princípio da eficiência, uma vez que o Plano só será capaz de ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana de forma eficiente, se con- tiver, dentre outras coisas, o conteúdo mínimo previsto nos arts. 42 e 42-A

do Estatuto da Cidade. Foi esta a mens legis que deu origem a tais artigos: garantir uma eficiência mínima aos planos diretores, conforme os objetivos e as diretrizes gerais previstas no art. 2º do mesmo Estatuto.

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