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Para a elaboração do PDDU de Salvador, a gestão municipal organizou-se de modo a tentar assegurar formalmente o cumprimento das exigências jurídi- cas atinentes à gestão democrática das cidades; mas cingiu-se apenas aos ri- tos, sem preocupação com a participação real, verdadeira, substancial e de conteúdo, criando um “teatro” democrático. O que melhor descreve o processo é a analogia a uma maratona olímpica, ante a sucessão de longas Audiências Públicas em horários impeditivos da participação dos trabalhadores, nas quais foi garantido o “exercício das falas”, sem, no entanto, considerar as con- tribuições. Ressalva-se o mérito do Município em criar o site Salvador 50015,

onde foram disponibilizados as atas, vídeos, relatórios, minutas do Projeto de Lei, correspondências recebidas etc.

Nesse espaço convidado das quatorze Audiências Públicas, discutiu-se em apenas seis sessões a Minuta do Projeto de Lei do PDDU, e, posteriormen- te, de forma acelerada, o projeto foi apresentado ao Conselho Municipal de

14 Amigo da corte é alguém que, mesmo sem ser parte, é chamado em razão de sua representatividade ou se oferece para ofertar sua opinião em processo relevante, fazendo com que a discussão seja amplificada (artigo 7, parágrafo 2º da Lei nº 9.868/1999).

15 Trata-se de um projeto que visa orientar o desenvolvimento do Município de Salvador até o ano de 2049, quando a cidade completará quinhentos anos, sendo desenvolvido paralelamente ao PDDU e LOUS de Salvador. Informações disponíveis no site Salvador 500.

Salvador, em duas reuniões extraordinárias.16 Na sequência o Prefeito, de

imediato, enviou o Projeto de Lei para a Câmara, em 18/11/2015.

Uma das circunstâncias fáticas que chama atenção é a de que, em ape-

nas 60 dias (18/09 à 18/11), apresentou-se a 1ª Minuta do Projeto de Lei de

atualização do PDDU, realizaram-se seis Audiências Públicas, elaborou-se a 2ª Minuta do Projeto de Lei (que, vale frisar, não foi sequer submetida à socie- dade) e encaminhou-se o Projeto de Lei à Câmara dos Vereadores.17 Tudo isto

em meros dois meses.

Na Câmara dos Vereadores, o Projeto (no 396/2015)18 foi submetido a 18

Audiências Públicas, em ritmo acelerado e também em horários incompa- tíveis com a jornada dos trabalhadores. Efetivou-se o descumprimento do Regimento Interno ao submeter-se a apreciação da constitucionalidade do PL (Projeto de Lei ) à Comissão de Justiça não no início da tramitação, como exige o regimento, mas apenas às vésperas da aprovação, ocorrida em 13 de junho de 2016. Ademais, as emendas parlamentares foram incorporadas e aprovadas sem antes terem sido submetidas ao conhecimento da sociedade civil. Não ocorreu sequer uma única audiência pública cuja pauta fosse algu- ma emenda apresentada. Saliente-se ainda que diversas emendas foram à votação sem conhecimento da totalidade dos edis, que protestaram em ata. Surpreendentemente, as 133 emendas foram votadas em bloco, impossibili- tando recusas individuais.19

Nessa senda de afrontas ao planejamento urbano participativo, vale mencionar, também, que as sugestões apresentadas nas audiências, assim como as emendas aprovadas, não foram submetidas às devidas análises téc- nicas; a equipe técnica restringiu-se a tecer duas ou três linhas sobre cada

16 Foi distribuída aos conselheiros, no momento da sessão, cópia impressa do Projeto de Lei publicado naquela mesma data, inadmitindo-se vistas ou outros expedientes de publicidade, e, na sequência o Secretário de Urbanismo, que também acumulava o cargo de Coordenador Geral do Plano Salvador 500 – PDDU e LOUOS, monocraticamente elaborou o parecer favorável.

17 Registre-se que a primeira audiência foi realizada em 1/8/2014, tendo como pauta o plano de mobili- zação e o regimento interno. Na segunda audiência (em 15/4/2015), houve a aprovação do regimento interno do termo das audiências. Na terceira, discutiu-se a diferença entre Salvador 500 e o PDDU. Na quarta, quinta e sexta audiências, foram apresentados diagnóstico e prognóstico. Da nona à décima quarta, ocorreu a discussão da minuta do PDDU.

18 Teve a primeira audiência realizada em 16 de dezembro, e as demais no período de três meses (fevereiro a abril de 2016).

19 Esclarecendo, a votação foi feita sem que um parlamentar pudesse votar a favor de certa emenda e con- tra outra. Ou dizia “sim” para todas as emendas ou não aceitava nenhuma delas.

proposta, independentemente da complexidade, logo informando a remessa para apreciação da comissão respectiva da câmara que guardava correlação com o tema da emenda. Ocorre, entretanto, que o teor das propostas não foi apreciado por nenhuma comissão: todas foram encaminhadas apenas ao ve- reador – relator do PDDU.

O Projeto de Lei do PDDU foi judicializado por meio de Mandato de Segurança de alguns vereadores, sob o argumentode não cumprimento do Regimento Interno e de não preenchimento dos requisitos mínimos para a Lei do PDDU; também o foi pelo Ministério Público do Estado da Bahia, com duas Ações Civis Públicas. A primeira delas visou evitar as emendas “notur- nas” – como as do PDDU de 2008. A segunda reclamou a devolução do pro- jeto ao Executivo, por não atendimento do conteúdo mínimo do artigo 42 do Estatuto da Cidade. As três ações ainda tramitam, mas muito provavelmente devem ser julgadas sem se adentrar ao mérito, ante a fundamentação de que ocorrera a perda superveniente do objeto da demanda com a ulterior aprova- ção do Projeto de Lei.

Exalte-se que a sociedade civil procurou fomentar “Espaços Criados”, a exemplo do Movimento Participa Salvador20. Buscou assim qualificar a par-

ticipação popular, ofertando discussões, pareceres e estudos técnicos sobre o conteúdo do Plano Diretor. Esse trabalho social notável não foi valoriza- do nem aproveitado pelo Município, que enxergou a iniciativa como “atitude ideológica”. Contudo, o aprendizado durante todo o processo é real e demar- ca historicamente uma alternativa da participação popular no planejamento urbano, nos moldes do advocacy planning.21 Um dos produtos do Participa

Salvador foi a elaboração de uma análise das perguntas/questionamentos oriundas da participação popular e das respostas ofertadas pelo Município, demonstrando que houve percentual de resposta de (apenas) 35% dos ques- tionamentos populares.22

20 O Projeto Participa Salvador foi custeado por recursos de reparação de danos urbanísticos por meio de medida compensatória em Inquérito Civil que tramitou no Ministério Público do Estado da Bahia para acompanhar o processo de revisão do Plano Diretor, visando fomentar a participação popular com supor- te técnico e valendo-se dos espaços virtuais (Facebook, Twitter e website: <participasalvador.com.br>). 21 É um conceito que propõe a ideia do planejador advocatício, um fornecedor de informações, simulador

das condições futuras, um advogado, agente com conhecimento técnico que representa e sustenta os interesses da comunidade em termos de planejamento urbano. Em suma, trata-se de um propositor de soluções futuras como coloca Davidoff (2004, p. 44).

Em Salvador, nunca tivemos tantos “debates” na elaboração do Plano Diretor. Adicionalmente, ocorreram dezenas de oficinas e fóruns temáticos. Todavia, foi um avanço tímido, na medida em que não houve a incorporação efetiva das pro- postas apresentadas ao executivo. Quando o procedimento chegou à Câmara dos Vereadores, havia a compreensão do Ministério Público – que encaminhou uma Recomendação de 93 laudas, em quase nada acatada –, dos setores técnicos e ONGs (que elaboraram o documento “21 Pecados Capitais do PL do PDDU de Salvador”, com ponderações não acolhidas),23 de que o projeto não ofertava re-

quisitos mínimos para sua tramitação, optan do-se pela judicialização.

Pontue-se a perda da chance de realizar, na revisão do Plano Diretor Municipal, uma preparação pedagógica para as discussões, com a conscien- tização dos cidadãos sobre os problemas urbanos, e de receber propostas na escala de Rua e/ou Bairro, o que levaria à percepção da transescalaridade da cidade e da interface dos papéis locais, regionais e mesmo nacionais de cada porção da urbe, permitindo uma participação concreta das classes popula- res no processo. (CARDOSO; VAINER; SOUZA; JÚNIOR, 2010) Diversamente, a classe dominante sempre participou da elaboração dos planos diretores e das leis de zoneamento, embora de forma não ostensiva, fazendo valer seu grande poder econômico e político, pressionando os agentes políticos com êxito. (VILLAÇA, 2005)

Ocorreu, em verdade, a violência simbólica, tal como a define o sociólogo Pierre Bourdieu. No caso em apreço, Essa violência decorreu, como de regra, do apelo tácito a uma hierarquia do saber, na medida em que a fala dos gestores sobre o PDDU pautava-se em códigos não dominados pelos ouvintes e não era feito nenhum esforço real de explicação. Esse procedimento caracteriza um cenário de exclusão e inferiorização do grupo que não detém os termos técni- cos, que deveriam ter sidos decodificados. A ausência do equilíbrio de forças e a sonegação de seu caráter político e conflitual impediram a compreensão da classe popular, configurando a violência simbólica e a dominação. Villaça ressalta o caráter político e a disparidade de forças de tal momento:

Partimos da premissa de que os debates são de natureza política, convocados para expor o poder público à pressões do grupo da socie- dade organizada. Os debates deveriam ser espaço de manifestação de conflitos de interesses, representados por forças razoavelmen-

te equilibradas. Numa sociedade com enormes desníveis do poder político e econômico, como a brasileira, a resultante esse desse jogo de pressões tenderá sempre para o atendimento da necessidade da minoria poderosa em detrimento da maioria. (VILLAÇA, 2005, p. 54)

O pacote do PDDU veio praticamente pronto. As contribuições das Audiências Públicas não foram incorporadas. As alterações inseridas no do- cumento encaminhado à câmara, posteriores às audiências, foram basica- mente de inciativa do executivo, não justificadas. Ao chegar à Câmara dos Vereadores o Projeto de Lei já estava maculado com nulidade insanável. A in- corporação quase integral das emendas ofertadas pelos segmentos ligados aos agentes imobiliários tornou o documento ainda mais prejudicial à coleti- vidade, como se demonstrará no item subsequente.

Do conteúdo obrigatório do Plano Diretor:

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