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A realização das primeiras reuniões comunitárias deve seguir alguns princí- pios básicos: elas devem dar-se em local central e de passagem, para diversifi- car o público e favorecer a divulgação do processo em curso. O local escolhido deve ser simples para não intimidar os presentes e as reuniões devem ser fei- tas à noite ou nos finais de semana para viabilizar a participação ampla dos que trabalham.17 Os intervalos de realização devem ser de pelo menos quinze

dias para não sobrecarregar demais as pessoas, já tão ocupadas. O tempo é uma variável crucial para processos realmente participativos. Não se faz pla- nejamento e gestão democráticos sem dar tempo à sociedade para que ela se organize, se capacite e amadureça propostas.

O convite para os encontros poderá ser realizado por meio de pequenos folhetos que não devem ser entregues com muita antecedência para não se- rem esquecidos, mas a presença de um carro de som no local é de grande valia. A internet, as redes sociais e imprensa em geral são bons caminhos, mas não devem ser os únicos. Em alguns casos há que haver convites formais, através dos Diários Oficiais.

No dia do encontro, cada reunião de bairro deve ser precedida de uma espécie de aquecimento, onde se converse sobre temas pertinentes à vida das pessoas no bairro e a atividade que virá a seguir. Antes da sessão, para estimular conversas entre os participantes que não se conhecem e permitir também a desinibição dos mais tímidos, pode-se fazer, por exemplo, uma ex- posição de fotos locais e dos moradores do bairro em situações do cotidiano. Espera-se que, após a exposição de fotos e o aquecimento inicial, os presentes se reconheçam na atividade e sintam-se mais confiantes. As reuniões devem partir de questões concretas que tocam as pessoas no seu dia a dia e que elas

17 A Câmara Municipal de Salvador, por exemplo, tem feito reuniões e ouvidorias nos bairros, mas muitas vezes estas são realizadas de dia, impossibilitando a participação de muitos moradores que trabalham e estudam.

dominam sem esforço. Dessa forma, mesmo um habitante tímido e semianal- fabeto, por exemplo, mas que esteja interessado, poderá emitir suas opiniões, propor intervenções do poder público em sua rua e, aos poucos, opinar e pro- por sobre seu bairro, sobre a cidade e sobre a política urbana.

A atenção ao espaço é essencial, pois ele muitas vezes contribui para dis- tanciar os participantes. A disposição das cadeiras no salão, em forma de se- micírculos em torno do eixo da atividade e sem distinção para os animadores da experiência, ou convidados, por exemplo, permite maior aproximação e favorece o espírito de igualdade. Certa informalidade é acolhedora. A pessoa que anima a reunião só deve intervir para concentrar as discussões sobre o tema em debate, e mesmo assim de forma tranquila, sem querer impor uma ordem que intimidaria mais as pessoas.

Estas reuniões por bairros devem ajudar os habitantes, por meio de téc- nicas lúdicas, a entender plantas e dados sobre o bairro e a cidade. Elas po- derão ser realizadas com base no estudo do lugar do cidadão, a partir de seu território (SANTOS, 2012), suas referências, vivências, suas relações com a topografia etc. Convém recorrer ao emprego de maquetes,18 mapas e imagens

do local, instrumentos que podem contribuir para familiarizar os moradores com as representações da realidade com as quais os técnicos e especialistas trabalham. Os animadores devem observar a reação dos presentes, de modo a captar sua compreensão do territórios e os estimular para que a explicitem.

A descoberta pelos habitantes dos segredos dos instrumentos (plantas, planilhas, etc.) e dados técnicos (estatísticas, rubricas, etc.) expostos nas reu- niões favorece a inclusão democrática.

As reuniões devem facultar, aos poucos, uma compreensão mais global da cidade, das relações entre cidade e bairro, de modo a tornar claras as prio- ridades de intervenção do poder público em diferentes escalas e horizontes temporais. As reuniões por bairro deverão ter seu número definido, mas o cronograma deve ser flexível,19 a fim de absorver novas demandas de encon-

tros públicos, em diversos formatos, segundo as particularidades de cada

18 A maquete do bairro e sua topografia pode ser elaborada com diferentes materiais, como argila, deixan- do a atividade lúdica e atrativa, também para as crianças. (NUNES, 2002)

19 Além de permitir flexibilidade, alguns cuidados são essenciais na condução das atividades como não permitir a realização de eventos ou audiências em dias de greve ou paralisação do transporte público; elaboração e publicação dos produtos em formato editável (ou seja, possível de ser modificado) e aces- sível à população, controle de alterações entre versões dos produtos.

território/comunidade, as demandas pontuais e o avanço dos efeitos didá- ticos junto à população. As atividades devem buscar a compreensão que as pessoas têm do que estão vendo, estimulando-os a falar, a dar seus próprios exemplos e propostas.

Outras atividades pedagógicas e lúdicas podem e devem ser desenvol- vidas e atrairão certamente um público diversificado, mas não necessaria- mente os moradores com experiência anterior em organização comunitária. Para atraí-los, se fazem necessárias atividades mais “engajadas”, que dizem respeito à resolução direta de carências do bairro e da cidade. É desejável em- preender práticas concretas, como a organização de um mutirão para a reali- zação de algum melhoramento no bairro, já que a experiência coletiva pode ser extremamente pedagógica. A discussão das regras de organização desse mutirão propiciará debates acalorados, o exercício da negociação e a vivência de votações para estabelecer a vontade da maioria. Todos esses aspectos da democracia participativa devem ser vivenciados pelos cidadãos envolvidos.

Em locais sem organização prévia dos moradores, a discussão de temas de interesse de todos provoca o sentimento da necessidade de organizar-se e predispõe à formação de novas lideranças ou a consolidação das já existen- tes. No caso de bairros que já tenham organização, esta será questionada so- bre sua atuação e poderá ser legitimada ou contestada pelos moradores. Esse processo deve ser acompanhado e estimulado pelas pessoas incumbidas da animação, que devem auxiliar o grupo interessado seja na sua organização – providenciando proposta de Estatuto de uma associação de moradores e informações sobre como legalizá-la, por exemplo – seja na aproximação das associações existentes. O foco organizador e emancipatório não condiz com a formalidade oficial. Um processo como esse não será feito em apenas um ano; deve ser progressivo e continuado para promover as mudanças cultu- rais e políticas requeridas para a abordagem de instrumentos de gestão como Orçamento Público, Planos de Bairro, Planos de Bacias e Planos Diretores.

Avançando para a escala da região, cada Prefeitura Bairro pode ser uma estrutura física de acesso à Plataforma Interativa de Controle Social. Esse es- paço deve coletar, expor e produzir dados básicos sobre a história, a estrutura urbana, a economia, a administração e principalmente sobre as condições de vida da população, de forma simples, clara e agradável. O orçamento público municipal, por exemplo, poderá ser comparado a um orçamento doméstico de forma que os munícipes possam entender os fluxos de caixa da Prefeitura

sem dificuldades. Concebe-se essa ferramenta como algo mais que um banco de dados estático, mas como um estimulador do conhecimento e da reflexão sobre a cidade, portanto, não deve ser apenas um acesso a dados no compu- tador ou uma exposição montada. Essa Plataforma se configuraria como um espaço público ampliado para a participação, devendo ter pessoas disponí- veis para acolher o público e conversar, estimular o espírito crítico e também recolher informações da cidadania. Essa função é muito interessante para aprofundar a formação de estagiários que vão atuar em comunidades.

A seguir, ressaltamos alguns dos ganhos reais que uma política de in- centivo à participação popular como a proposta pode propiciar. Em seguida, vamos contrastá-la com a experiência limitada de participação burocrática vivida em Salvador no âmbito do Plano Salvador 500, na elaboração do PDDU e da LOUOS.20

No caso de populações desorganizadas, sejam elas pobre ou ricas, um dos principais resultados da pedagogia da participação é o despertar do interesse pelo coletivo. Os momentos de debate e ação podem propiciar a compreensão da necessidade de ultrapassar os interesses pessoais e imediatos e facilitar a compreensão da necessidade de cobrar do Estado seu papel. A compreensão da globalidade dos problemas e a atitude de partir para sua resolução coletiva ao invés de tentar resolvê-los no âmbito familiar ou de vizinhança podem sig- nificar um sinal de amadurecimento e de aprendizagem de cidadania.

Despertado o interesse coletivo, passa-se à experiência da organização para realização de projetos concretos. Para muitos, então, quase tudo deve ser aprendido, a começar pelo domínio das regras do debate, até a divisão de tarefas com base no talento e habilidades de cada um/a. Muitos desses conceitos e práticas podem ser aprendidos pela simples repetição, mas o mais difícil é a mudança nas relações interpessoais. Superar conflitos, ne- gociar, manter o respeito às pessoas mesmo quando elas falham, tolerar, submeter-se às regras definidas por outros de forma democrática, sentir-se responsável pelo sucesso de todos, tudo isso exige um convencimento inte- rior de que vale a pena perseverar, apesar dos reveses. Com altos e baixos, a vivência dos debates e das ações coletivas deixam marcas, principalmente

20 Ressalta-se aqui que este processo renovou as leis já citadas mas culminou na atualização do Código de Obras do município de Salvador, vigente desde 1979. O Novo Código de Obras aprovado em 2017 também foi alvo de muitas críticas por parte dos técnicos da área de arquitetura e urbanismo, que não foram chamados para participar do processo de discussão.

nos mais envolvidos e essa aprendizagem permite que várias outras inicia- tivas sejam encaminhadas.

A emergência de líderes mobilizadores é outro ganho concreto importan- te de uma pedagogia da participação. A cidadania é um exercício pessoal e coletivo, e a vivência da cidadania coletiva é mediada pela existência desses líderes. Fazê-los surgir e dar-lhes suporte é um sinal de amadurecimento para uma comunidade. Isso só acontece em meio a um grupo com autoestima ele- vada e capacidade de ação autônoma razoável. Um modelo societal arraigado que demanda líderes fortes não desaparece de uma hora para outra, mas en- tre os líderes existentes no bairro vão consolidar-se aqueles que exercem uma liderança mobilizadora mais próxima da pedagogia da participação.

Por fim, a mudança na relação do cidadão com as autoridades municipais é um dos resultados do processo. Essa relação é geralmente distante, com base na dependência e em alguns breves momentos de pressão organizada. Após um processo de pedagogia da participação será possível observar nítida diferença na postura do coletivo em relação às autoridades. A cobrança de soluções, antes limitada à sensibilização de um detentor de poder para com os problemas cotidianos de uma população carente, torna-se uma atitude ci- dadã. Essa cobrança partirá de um grupo conhecedor dos dados e dos proble- mas em discussão, ciente do valor da opinião de cada um e da força do gru- po. Quando acontecem melhorias das condições de vida no curso das ações coletivas, essa experiência coloca os cidadãos envolvidos numa posição mais favorável em relação aos poderes públicos. Ver-se como uma comunidade organizada, capaz de realizações pelo bem comum, produz a percepção do próprio valor e quebra a relação tradicional de dependência, cria a relação cidadã onde quem tem o poder presta contas ao munícipe. Só a partir dessas mudanças pode-se falar de um processo participativo de fato includente, tan- to no sentido político quanto no sentido socioeconômico.

O mote político da pedagogia da participação vem a ser a ativação e o aumento da cidadania, aproximação das experiências públicas à chamada democracia participativa, que pressupõe a co-responsabilidade dos agentes envolvidos. O governo deve servir ao povo ciente de suas necessidades e po- tencialidades e essa população é o agente-participante-transformador que terá no poder executivo um realizador dos seus planos de cidade. No caso da discussão do Plano Salvador 500, um ente governamental incumbido por lei do planejamento promoveu um faz de conta, um arremedo de consulta

à população para “planejar” aquilo que na verdade já tinha em mente como modelo de cidade. Trata-se da participação burocrática, elitista, excludente e incompetente.

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