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No tocante à elaboração do Plano Salvador 500, do PDDU e da LOUOS, foi o

poder judiciário que determinou o cumprimento pela Prefeitura do preceito constitucional de implementar um processo participativo. Mas essa não foi a escolha política da PMS. Sua equipe limitou-se à burocracia, promovendo as ditas consultas em reuniões que não permitiram real participação da socieda- de civil. Com o apoio técnico da empresa paulista FIPE, o Executivo Municipal conduziu um processo de elaboração de documentos mal concebidos, confu- sos e limitados. A empresa foi contratada por quase oito milhões de reais, va- lor excessivo para as finanças da cidade. Com essa soma ou com menos custo seria possível contratar um trabalho bem melhor em termos de conteúdo e de metodologia democrática. Salvador tem alta qualidade técnica em urba- nismo. Foi uma das primeiras cidades brasileiras a serem planejadas. Abriga instituições bem-conceituadas que oferecem formação universitária e de pós- -graduação nesse campo e conta com profissionais reconhecidos nacional e internacionalmente, peritos afetivamente comprometidos com a cidade.

O Plano Diretor que resultou de tamanho gasto foi restrito em seu escopo, construído sem atualização de dados primários sobre a realidade socioeco- nômica da cidade, sem metas explícitas e sem indicadores do seu alcance. O diploma legal assim produzido não permite que haja controle social de sua aplicação. A frustração dos técnicos locais, cuja expertise e comprometi- mento com a cidade foram repetidas vezes ignorados, fez-se cada vez maior à medida que o discurso de retomada do planejamento era alardeado e des- cumprido. O que poderia ter sido uma construção compartilhada entre poder público e sociedade civil foi, na verdade, um processo construído de forma açodada e superficial. As reuniões realizadas não conseguiram mobilizar as diversas camadas da população soteropolitana para decidir sobre o futuro de sua cidade e menos ainda as mais pobres, parcela bastante afetada pelas definições da norma aprovada. A fim de mostra-lo, serão relembrados alguns dos marcos temporais e metodológicos da elaboração do Plano Salvador 500, a partir dos registros sistematizados pela equipe do Participa Salvador.

A Coordenação Geral do Plano Salvador 500 foi criada em 16 de abril de 2014, por meio do Decreto no 24.919/2014, que revogou o Decreto nº 24.392/2013, de outubro de 2013. Este último criava a comissão técnica para a revisão do PDDU e LOUOS do município de Salvador, não tendo no seu esco- po o Plano Salvador 500. Num intervalo de apenas seis meses – de outubro de 2013 a abril de 2014 – o Executivo resolveu investir em um Plano Estratégico a longo prazo (35 anos), como uma espécie de plano guarda-chuva que iria incorporar a elaboração do PDDU e LOUOS. A primeira audiência pública ocorreria em 1o de agosto, convocada através do Diário Oficial do Município (DOM), com antecedência um pouco maior que um mês.

Em março de 2014 o início da elaboração do Plano Salvador 500 foi divul- gado pelo prefeito ACM Neto em evento no Hotel da Bahia, em região central. Contrariamente ao requerido quando se enseja a co-construção inerente aos processos participativos, o Termo de Referência que regeria o processo téc- nico da elaboração do Plano SSA 500 só foi divulgado meses depois, após pressão dos técnicos locais e da equipe Participa Salvador. Ora, em processos realmente participativos, o conteúdo esperado do Plano e sua metodologia já teriam sido mote de discussões públicas.

O Executivo Municipal anunciou o Plano Salvador 500 como um plano estratégico com horizonte de 35 anos que conteria, como produtos parciais, o Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano (PDDU) e Lei de Ordenamento do Uso e Ocupação do Solo (LOUOS). Ora, vê-se logo que o Plano Salvador 500 deveria produzir não apenas dois, mas três grandes produtos: 1. Um Plano de Longo Prazo global para cidade; 2. O Plano Diretor que materializasse na

cidade a proposta do Plano de Longo Prazo; e 3. A LOUOS. Isso significa que o

Plano Salvador 500 seria uma síntese das diversas escalas abordadas nos três produtos citados, construído em uma linguagem que favorecesse sua leitura pela população de Salvador.21

No Termo de Referência estavam descritos dez produtos a serem en- tregues pela contratada: P1 – Plano de Trabalho (contendo cronograma,

21 Embora chamado de Plano Salvador 500, pressupondo uma visualização da cidade a partir dessa di- mensão estratégica quando completar 500 anos, ou seja, dentro de três décadas, esse documento jamais foi publicado. O Plano de Trabalho que deveria ter sido elaborado pela FIPE sob demanda da Prefeitura de Salvador tampouco foi divulgado. Esse Plano de Trabalho foi recorrentemente solicitado pela equipe Participa Salvador em reuniões públicas e sua inexistência, ou não divulgação, compromete enorme- mente toda a estratégia de Planejamento dito “participativo” realizado em Salvador.

metodologia, matriz de responsabilidades); P2 – Plano de Mobilização e Participação Social e Comunicação; P3 – Relatório de Caracterização Atual; P4 – Relatório denominado Salvador e suas Tendências; P4.1 – Relatório de Análise da Legislação Vigente; P5 – Relatório denominado Visão Estratégica

da Salvador que Queremos; P6 – Modelagem Espacial e diretrizes gerais de de-

senvolvimento; P7 – Detalhamento de Planos, Ações e Projetos Estruturantes; P8 – Relatório Modelo de Gestão; P9 – Plano Salvador 500; P10 – Minuta do Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano (PDDU); P11 – Minuta da Lei de Ordenamento de Uso e Ocupação do Solo (LOUOS).

A primeira audiência pública ocorreu em 1o de agosto de 2014, e a última ocorreu em 26 de outubro de 2015, totalizando 14 Audiências Públicas. No to- tal, ocorreram 29 oficinas de bairro, distribuídas em dois ciclos que mobiliza- ram cerca de 1.600 pessoas, conforme sistematização realizada pelo Participa Salvador, já que a Prefeitura em nenhum momento informou esses dados. O primeiro ciclo, de 17 oficinas, ocorreu de novembro a dezembro de 2014,22

e o segundo ciclo, de 12 oficinas, entre julho e agosto de 2015.

Contrariamente ao processo aproximado sugerido na proposta de pedago- gia da participação, que busca atingir as pessoas em seus bairros, na escala cotidiana, onde elas vivem e podem facilmente opinar, as 29 Oficinas de Bairro aconteceram na escala de agrupamentos de bairros. Essa nova subdivisão de Prefeituras-Bairro, até então desconhecida pela população soteropolitana e pelos técnicos, envolvia dezenas de bairros contíguos, alguns muito diferentes e mesmo muito distantes entre si. Esse formato respondeu a uma demanda organizacional da Prefeitura pouco conectada às demandas reais dos cidadãos e seus territórios. Na lógica defendida neste texto, as oficinas de Prefeituras– Bairro deveriam ter sido realmente antecedidas por oficinas de bairro.

Em 14 de julho de 2015 a Prefeitura promoveu o Fórum Internacional para o Plano Salvador 500 com os convidados Andrew Boraine (África do Sul), Claudette Forbes (Reino Unido), Greg Clark (Reino Unido) e Jorge Perez Jaramillo (Colômbia). Foram discutidos, dentre outros temas, a importân- cia da participação popular e da governança compartilhada no processo do

22 A PMS tinha urgência em iniciar os trabalhos e, ao serem realizadas as primeiras oficinas, o calendário divulgado já estava atrasado. Nas oficinas não foram identificados representantes da FIPE, que apenas participavam das Audiências Públicas, sendo então o processo de aproximação com os agrupamentos de bairros tocado pelos técnicos da PMS.

planejamento urbano, dimensão não conquistada pela elaboração do Plano Salvador 500, como trataremos de demonstrar.

Já entre março e abril de 2015 foram promovidos pela PMS cinco Fóruns Temáticos, com os seguintes assuntos: 1. Rumo aos 500: processos e perspec- tivas da socioeconomia de Salvador; 2. Salvador metropolitana: configuração urbana e mobilidade espacial; 3. Ambiente e cultura soteropolitanos: diversi- dade, transformações e territorialidades; 4. Habitar Salvador e 5. Instrumentos urbanísticos: alcances, limitações e possibilidades para Salvador. Esses en- contros contaram com a exposições e participação dos técnicos locais Ângela Gordilho, Luciano Muricy, Maria Elisabete Pereira dos Santos, Paulo Ormindo, Silvio Bandeira de Mello, Juan Pedro Delgado, Grace Gomes e José Ribeiro, Paulo Henrique e Edgard Porto. De fora de Salvador, foram convidados Camila Maleronka, Nabil Bonduki, Paula Santoro e Pedro Bettencourt Correia.

De maneira geral, podemos afirmar que esses fóruns foram pensados em formato similar ao de seminários acadêmicos, em que a grande maioria dos presentes era técnicos do município e/ou Estado, não sendo estimulada a diversidade e melhor representatividade do público presente. O formato de seminário é contraindicado para processos participativos, como os exigidos para a elaboração de Planos Diretores, já que apenas as pessoas já acostu- madas com essa metodologia se sentem atraídas e à vontade para participar. Ainda, estes dependiam de inscrição prévia dos participantes, o que também é fortemente contraindicado em processos de participação cidadã. Cabe res- saltar que não houve incorporação das sugestões dos participantes ao con- teúdo dos produtos elaborados pela PMS/FMLF/FIPE, por falta de sistemati- zação das informações pelos promotores dos eventos.

Verificou-se uma espécie de hierarquização, por parte da PMS/FMLF/FIPE, dos eventos públicos promovidos no processo do Plano Salvador 500: aqueles que eram realizados junto à população mais pobre, as Oficinas de Bairro, não tinham o grau de relevância dos Fóruns ou Audiências públicas. Estes tinham registros em vídeo e/ou ata, permitindo que quem não participou pudesse ter acesso ao conteúdo; já as Oficinas de Bairro não ofereciam essa possibilida- de. Mesmo os que participaram não receberam retorno de suas contribuições em outras oficinas em seus bairros. A síntese das oficinas só foi apresentada em uma audiência realizada longe dos bairros de origem, aliás em bairro no- bre, centro financeiro da cidade, a Avenida Tancredo Neves. A PMS/FMLF/ FIPE também alterou e suspendeu, sem justificativa pública, algumas das

atividades previstas no cronograma apresentado, como os Fóruns Setoriais, que não foram realizados.

De resto, a PMS/FMLF/FIPE antecipou a publicação e discussão do Produto 10 – Plano Diretor de Desenvolvimento, feita antes da publicação dos Produtos P1, P4.1, P6, P7, P8 e P9, caracterizando o atropelamento do processo e a su- pressão de discussões prévias extremamente necessárias à elaboração de um Plano Diretor, restringindo especialmente o empoderamento da população na sua construção, entendendo a participação popular como processo pedagógico.

Essa alteração foi tratada à época pelos técnicos como circunstancial e foi frequentemente atribuída à “pressa de setores da população”. Ficou claro que existiu, na verdade, uma pressa política23 de encaminhar e aprovar o PDDU,

em detrimento da elaboração de um Plano Diretor construído de forma par- ticipativa e que de fato promovesse o desenvolvimento da cidade, de forma justa, ou seja, considerando sua função social.

Após a entrega da minuta do Projeto de Lei do Plano Diretor ao Legislativo Municipal, em novembro de 2015, o processo de discussão do PDDU iniciado

em 2016 trouxe alguns avanços, como a apresentação prévia de um crono- grama de realização das audiência públicas. Em realidade, a metodologia aplicada no Legislativo não superou os impasses do Regimento Interno das audiências proposto e “aprovado” pelo Executivo Municipal em audiência pública esvaziada.24 Ou seja, as regras do jogo e metodologia a ser imple-

mentada novamente não foram objeto de acordos entre os agentes envolvi- dos, tendo sido impostas pela Câmara Municipal de Salvador. A depender da conveniência de quem estava conduzindo o processo, as regras ora seguiam um regimento interno (criado às pressas, especificamente para o processo, após pressão popular), ora seguiam o Regimento da Câmara Municipal, de

23 2016 foi ano de eleição e a equipe do Executivo Municipal se mostrava ansiosa para entregar o Plano Diretor antes do final do primeiro mandato.

24 O Regimento Interno que conduziria as Audiências Públicas no âmbito do Executivo Municipal foi apro- vado na 2a audiência pública, realizada em 15 de abril de 2015, em dia de paralisação nacional de ônibus, tornando impossível para a grande maioria dos interessados – o vasto segmento da população soteropolitana que não dispõe de veículo particular – participar da discussão. Isso se deu apesar do protesto de muitos ali presentes. A audiência transcorreu esvaziada, com público composto, em sua maioria, por técnicos da esfera municipal. Por essa razão o documento foi repetidamente questionado pelos participantes do processo, em todas as Audiências Públicas. Outra fragilidade do processo foi a ambiguidade do art. 13 do RI, que delegava à mesa diretora a definição sobre interrupção ou suspensão da audiência pública.

conhecimento dos vereadores e seu corpo técnico, mas de difícil manejo para a população soteropolitana.25

Como desfecho de um processo desastroso, a votação do Projeto de Lei do PDDU aconteceu no dia 13 de junho de 2016, uma segunda-feira, embora es- tivesse marcada para a quarta-feira da mesma semana. Apenas na sexta-fei- ra anterior foi divulgado que a votação tinha sido antecipada, evidenciando uma manobra para desmobilização da sociedade civil. Mesmo com a anteci- pação repentina na agenda, o dia da votação foi marcado por manifestações contrárias ao Projeto, ficando evidente que a Câmara Municipal abdicou de seu papel de promoção da participação popular, em favor de interesses con- trários aos dos cidadãos soteropolitanos. Cabe dizer também que até abril de 2018 o Plano Salvador 500 não foi finalizado, nem publicado26 para avaliação

dos envolvidos no processo, especialmente a população.

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