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A concepção do Plano Diretor foi sendo moldada em meio à crise do pla- nejamento urbano modernista e funcionalista e do planejamento regula- tório. Tal crise foi acentuada nos anos de 1990, dentro do contexto das

políticas neoliberais de reestruturação produtiva e de desregulamentação estatal. (ARANTES, 2007; BASSUL, 2005)

Em tempos pós-modernistas, a noção de totalidade, típica dos planos diretores dos períodos anteriores, encontrava-se enfraquecida e desacre- ditada. (SAMPAIO, 2003) Delineia-se, assim, uma mudança qualitativa no âmbito do planejamento urbano, com a ideia convencional de plano perdendo terreno para a gestão. Uma das correntes que seguiram essa nova orientação refere-se à chamada plataforma da Reforma Urbana, nos termos defendidos pelo Movimento/Fórum Nacional da Reforma Urbana (FNRU). Apesar de inicialmente se posicionar de forma contrária à figura do Plano Diretor, o FNRU acabou ressignificando esse instrumento, dada a sua institucionalização pela Constituição de 1988. (BASSUL, 2005)

O fato é que uma concepção de Plano Diretor, que incorporou parcial- mente as propostas da Reforma Urbana, vai ser gravada institucionalmente quando da aprovação do Estatuto da Cidade (Lei no 10.257/2001), que re-

gulamenta a política urbana no Brasil. Por essa abordagem, a especificação do cumprimento da função social da propriedade urbana pelo conteúdo do Plano Diretor deve vincular-se aos princípios da Reforma Urbana de garan- tia do direito à cidade, gestão democrática, recuperação da mais-valia urba- na e distribuição equitativa de recursos no espaço das cidades.

A crítica ao planejamento urbano modernista e funcionalista e ao planejamento regulatório também contou com uma versão em que a cen- tralidade da gestão associa-se ao empresariamento de cidades. Trata-se do planejamento estratégico, sendo o plano estratégico seu instrumento. (ARANTES, 2001; CASTELLS; BORJA, 1996)

O planejamento estratégico afirma a emergência do protagonismo lo- cal como resposta à crise urbana instaurada pela desindustrialização e pe- los efeitos negativos, em termos de déficits de infraestrutura e sociais e da aplicação excessiva das políticas neoliberais. (BORJA, 1996)

O protagonismo local estaria centrado em uma cooperação público- -privada, respaldada por um amplo consenso citadino, com capacidade de propulsionar intervenções urbanas para a promoção de uma inserção competitiva da cidade na economia globalizada, pela atração de investido- res por suas vantagens comparativas. (BORJA, 1996)

Uma das ideias centrais do planejamento estratégico é o entendimento de que as cidades são atores sociais complexos, sendo diferentes do governo local,

apesar de incluí-lo. A consolidação desse protagonismo das cidades depende- ria do estímulo a grandes projetos consensuais. (CASTELLS; BORJA, 1996)

Outra noção que está no cerne dessa corrente é a consideração de pon- tos fortes e fracos internos com oportunidades e ameaças externas, sinte- tizadas na matriz Swot: strength (força), weakness (fraqueza), opportunity (oportunidade) e threat (ameaça). (OLIVEIRA et al., 2006)

Para Vainer, o discurso do planejamento estratégico urbano estrutura- -se em três analogias constitutivas: “a cidade é uma mercadoria”, “a cidade é uma empresa” e “a cidade é um pátria”. Este autor afirma a ampla difu- são entre os planejadores da ideia de que a cidade é uma mercadoria a ser vendida, com o marketing urbano impondo-se cada vez mais como uma esfera decisiva do planejamento e gestão de cidades. A analogia cidade- -empresa pressupõe a eliminação da esfera política local, reduzida a uma prática de projeto empresarial. O patriotismo do planejamento estratégico refere-se à adesão a um consenso unilateral a esse projeto. (VAINER, 2000)

De fato, o planejamento estratégico migrou do meio empresarial para sua aplicação, com adaptações, em cidades. O plano estratégico de São Francisco (EUA), de 1981, teria sido o primeiro a transpor técnicas do planejamento estratégico corporativo para o planejamento de uma grande cidade. Na dé- cada de 1990 registraram-se diversas experiências na Europa, sendo a de Barcelona o referencial e depois a da América Latina. (GUELL, 2007)

Não deixa de ser curioso notar que o planejamento estratégico de ci- dades intensifica-se justamente num momento no qual essa abordagem entra em descrédito no mundo corporativo que o originou. A célebre crí- tica de Henry Mintzberg5 a esse modelo amplamente difundido no meio

empresarial desde os anos de 1970 foi sintetizada no seu livro The Rise

and Fall of Strategic Planning, publicado em 1994. O autor propôs uma

5 De acordo com Mendes, Binder e Prado Júnior, as críticas de Mintzberg podem ser resumidas em quatro pontos principais, quais sejam: ‘(a) como ter certeza da validade das análises de pontos fortes e fracos antes de testá-los; (b) Como ignorar a relação entre o passado (estrutura e ambiente) e a estratégia cria- da? A estrutura deveria ser uma conseqüência da estratégia; no entanto, ela acaba sendo a base de refe- rência da formação da estratégia, gerando, portanto, uma contradição; (c) Como enfrentar um ambiente em constante mudança se a empresa já definiu suas estratégias? Ao comunicá-las explicitamente a toda empresa, a estratégia intencionada é absorvida pelas pessoas, tornando-as resistentes a mudanças e (d) ao separar pensamento e ação, pressupõe-se que o estrategista possa analisar e formular sem conhe- cer de perto produtos, fábricas e clientes da empresa’. (MENDES; BINDER; PRADO JÚNIOR, 2006, p. 4)

passagem do planejamento estratégico para a programação estratégica. (MENDES; BINDER; PRADO JÚNIOR, 2006)

A despeito das inúmeras críticas ao planejamento estratégico empre- sarial, ele segue amplamente utilizado por empresas e outras organiza- ções, incluindo instituições públicas. No Brasil, além das experiências de planejamento de cidades, sua adoção é notada em planos setoriais estra- tégicos, tais como planos de turismo (SEVERINO; TOMASULO, 2012); coo- perações internacionais, tais como o plano estratégico de cooperação em saúde da comunidade de países de língua portuguesa (BUSS; FERREIRA, 2010); universidades (FALQUETO, 2012); tribunais de contas de estados e municípios (SILVA; GONÇALVES, 2011); a reforma do Estado de Minas Gerais e o planejamento do governo desse Estado. (CORRÊA, 2007)

Será que podemos diferenciar, para o caso do brasileiro, como sugere Randolph (2007), um planejamento orientado por resultados e estratégias (planejamento estratégico) e outro expresso no Plano Diretor, que busca- ria articular os diferentes interesses dos agentes sociais urbanos, por meio de certas formas de participação na sua formulação?

No terreno da realidade das cidades brasileiras, o idealismo de uma distinção entre essas categorias arrefece, sendo que seus ideários e ex- pressões se interpenetram e influenciam. Há experiências nas quais o plano estratégico assumiu o lugar do Plano Diretor, casos dos Planos Estratégicos I e II da Cidade do Rio de Janeiro do Rio (PECRJ), de 1993 e 2001 (CARDOSO, 2009) e do Plano Diretor Estratégico de São Paulo, de 2002. (GRILLO, 2013)

Houve outras nas quais o Plano Diretor e o plano estratégico concor- riam e ou complementavam-se, tal como a experiência de Juiz de Fora, de 1997 a 2000, em que o município elaborou concomitantemente seu Plano Diretor e seu plano estratégico. (MONTEIRO, 2006)

Mesmo no caso dos planos denominados explicitamente como estra- tégicos, houve acolhimento, em alguma medida, das demandas sociais re- levantes. No âmbito do I PECRJ, por exemplo, foi estabelecido o Programa Favela-Bairro definindo ações de regularização e qualificação urbanística e ambiental de favelas do Rio de Janeiro. (MENDES, 2006) No PDE de São Paulo, de 2002, ao lado de objetivos como PPPs, de interesse do mercado, conviveram outros, voltados para as demandas populares e para a captura pública da mais-valia urbana, tais quais o de inclusão social e melhoria da

qualidade de vida; implementação de Zonas Especiais de Interesse Social, parcelamento, edificação ou utilização compulsórios, IPTU progressivo no tempo. (GRILLO, 2013)

Notamos uma tendência mais recente na qual o Plano Diretor, como instrumento oficial da política urbana, incorporou parcialmente a con- cepção do planejamento estratégico. A nosso ver, esse fato denota uma enorme influência do ideário do planejamento estratégico, que assume outros modos e dispositivos para além da forma de plano estratégico con- vencional. No Brasil, o instrumento da OUC previsto no Estatuto da Cidade tem sido sinalizado como expressão do poder estratégico. (VAINER, 2011)

A OUC é definida nos planos diretores. Sua implementação tem-se dado por meio de PPPs articuladas à definição de um caráter de excep- cionalidade dos parâmetros urbanísticos nas áreas de incidência, com ganhos e contrapartidas ínfimas para a coletividade. (ALVIM; ABASCAL; MORAES, 2011; MALERONKA, 2010) Assim, de modo recorrente, a OUC, tal como em planos estratégicos, tem viabilizado projetos majoritariamente voltados para a apropriação e a gestão empresarial, notadamente imobi- liária, de espaços valorados das cidades brasileiras.

Esse contexto de incorporação do planejamento estratégico na função pública do planejamento urbano torna pertinente a reflexão de Carlos Vainer de que vem sendo gestada, desde os anos 1970, uma profunda mudança de paradigma nesse âmbito. (VAINER, 2011) Associada a essa percepção, parece-nos importante enfatizar a emergência no Brasil, des- de os anos 1990, de um Estado empreendedor e neoliberal. Esse Estado empreendedor manifesta-se em diferentes níveis e escalas de atuação, desdobrando-se também enquanto planejamento estratégico urbano de iniciativa municipal. (OLIVEIRA et al., 2006)

Para Vainer, a generalizada difusão do planejamento pós-moderno, competitivo e estratégico indica a emergência da “cidade de exceção”. A  partir do Rio de Janeiro, marcada pelos impactos de megaeventos es- portivos, esse autor formula que a cidade de exceção corresponde a uma forma nova de regime urbano, nos seguintes termos:

Centralização das decisões, personalização do poder, lideranças carismáticas, regulações ad hoc e flexíveis, em nome da crise e envelopadas na metáfora da guerra, a cidade de exceção realiza, para parafrasear Engels, o sonho da burguesia urbana.

[...] As formas institucionais de democracia representativa burgue- sa permanecem, formalmente, operantes. O governo eleito gover- na, o legislativo municipal legisla... Mas a forma como governam e legislam produz e reproduz situações e práticas de exceção, em que poderes são transferidos a grupos de interesse empresarial. Nestas redes de poder e correias de transmissão paralelas que constituem o terreno propício às parcerias público-privadas, a ci- dade de exceção se conforma também como democracia direta do capital. (VAINER, 2011, grifo nosso)

O ideário do planejamento estratégico tem orientado a ação estatal em todos os níveis e em diferentes políticas, reforçando um vigoroso processo de privatização e mercadorização das cidades e dos espaços públicos. A re- gulamentação em nível nacional das parcerias público-privada; a iniciativa empresarial pelas MIPs e PMIs de elaboração de planos e projetos urbanos assumidos por governos estaduais e municipais; as concessões de patrimô- nio e bens públicos comuns para a gestão e exploração a partir de interesses corporativos; desafetações e venda de imóveis públicos por prefeituras são sinais e léxicos do transbordamento do ideário e da prática do planejamento estratégico para além da esfera do planejamento urbano municipal.

Ainda assim, porém, em todas as situações comentadas anteriormente é necessário ponderar uma instrumentalização absoluta do planejamento es- tratégico para os interesses dominantes, já que existem algumas situações ou perspectivas onde estes absorveram demandas alternativas, mesmo que par- cialmente. Esses exemplos nos falam de uma relativização na qual os planos diretores ou planos estratégicos podem ser tensionados, disputados, reorien- tados e até ressignificados no terreno da realidade em que se efetua a produ- ção social do espaço pelos seus múltiplos agentes e interesses.

Plano Diretor de Salvador: o desencontro entre

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