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É imensa a distância entre um processo legítimo de participação popular no planejamento da cidade com vistas à construção da equidade e da susten- tabilidade e o que aconteceu em Salvador entre 2014 e 2016, na discussão do Plano Salvador 500, do PDDU e da Lei de Ordenamento, Uso e Ocupação do Solo (LOUOS). Vamos mostrá-lo neste texto, que busca comparar uma metodologia de condução de um processo de planejamento realmente participativo e aquele que foi vivido pelos soteropolitanos no período des- tacado. Entendemos necessário evidenciar os limites dessa experiência e

transformá-la em aprendizado com vistas à melhoria de processos partici- pativos. Assim, Salvador poderá, na próxima alteração do seu Plano Diretor, caminhar para uma construção de uma cidade mais justa e humana.

Gestões transparentes e democráticas, com participação popular e con- trole social, vêm sendo buscadas no Brasil nas últimas décadas. O desenvol- vimento da cultura “participacionista” vem fazendo seu caminho no país a partir da ação da sociedade, por meio de seus agentes de emancipação: movi- mentos sociais, instituições de formação e pessoas conscientes e engajadas. É fato também que essa evolução se faz em um ritmo muito menos acelerado do que seria necessário para que a participação das maiorias possa favorecer as transformações que o país demanda.

A Constituição Federal em 1988 previu a participação dos habitantes no planejamento urbano e o Estatuto da Cidade, de 2001, reafirmou com vee- mência sua necessidade na gestão pública, descrevendo as formas como a participação deve transcorrer, desde a formulação até a avaliação de planos e intervenções. Esses avanços legais, que implicam um controle continuado da população sobre as ações dos governantes, ainda não são realidade e os acontecimentos políticos dos últimos anos, das manifestações de junho de 2013 aos retrocessos políticos recentes evidenciam o quanto estes avanços são imprescindíveis para o melhor controle do gasto público e para que este cumpra sua função social.

A participação é um processo que exige tempo, métodos, técnicas e uma profunda compreensão das restrições à cidadania impostas pela história so- cial e política do Brasil. (BURSZTYN, 1984; FAORO, 1987; LEAL, 1975) Não se trata apenas de um ato de vontade política e/ou técnica. Uma real governança democrática significa em essência uma mudança cultural profunda, portan- to, demorada, que envolve a sociedade em novas práticas políticas, as quais precisam ser construídas em processos pedagógicos contínuos. A efetiva par- ticipação populardesarticula a velha monopolização do poder pelos interes- ses pelos interesses econômicos de particulares, pois faz valer a vontade das maiorias. A história e resultados dessas práticas no Brasil, particularmente a do Orçamento Participativo de Porto Alegre nos anos 1990 (FEDOZZI, 1999; GENRO, 1997), mostram isso com clareza, pois nesse caso concreto as priori- dades da ação municipal foram invertidas em favor da população mais pobre. Quando o cidadão e a cidadã “comuns” entram no processo decisório, é na- tural que este evolua. Eles e elas têm objetivos que, na maioria das vezes, são

divergentes ou mesmo contrários aos interesses dos grupos econômicos e po- líticos que monopolizam os destinos da cidade a seu favor. A participação am- pliada, que envolva de fato todos os segmentos da população, além de exigir um processo formativo prévio, demanda também o estabelecimento de critérios e acordos sobre como deve transcorrer o processo a fim de que se evite a mani- pulação. Este texto discutirá algumas das bases teóricas e práticas necessárias para uma gestão transparente e democrática nas definições do Planejamento Urbano, do Orçamento Público e no cotidiano. A fim de passar a um estágio novo da política não se pode prescindir de algum tipo de pedagogia da participação (NUNES, 2002), em especial no campo da política urbana. O caminho metodo- lógico dessa pedagogia, que será explicitada a seguir, foi criado a partir de uma experiência efetuada em Salvador nos anos 1990 e vem sendo posto à prova em grande número de novas situações. Recentemente, constituiu uma das referên- cias para a criação do projeto Participa Salvador, de acompanhamento técnico do processo de elaboração do Plano Salvador 500 – PDDU e LOUOS.

Outro objetivo deste texto é tratar das limitações do processo então vi- vido na cidade, vistas a partir da experiência da equipe do projeto Participa Salvador. Para tanto, convém fazer uma breve contextualização.

Em 2012, o PDDU e a LOUOS de Salvador elaborados em 2008 foram alte- rados de forma tão lesiva às leis maiores que ocasionou uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN) movida pelo Ministério Público do Estado da Bahia (MP-BA). No termo do processo judicial, exigiu-se que fosse aprovado um novo Plano Diretor no prazo de 12 meses, prescrevendo-se a vigência tem- porária temporária de alguns dos artigos das leis declaradas inconstitucionais (Leis Municipais no 8.167/2012, 8.378/2012 e 8.379/2012). Esse novo Plano e

também a nova Lei de Ordenamento deveriam ser elaborados de forma partici- pativa, como determinam a Constituição brasileira e o Estatuto da Cidade (que regulamenta os capítulos do texto constitucional relativos à política urbana).

O MP-BA, em parceria com o Fórum A Cidade Também é Nossa,1 pro-

pôs a intensificação do controle social no curso da revisão do PDDU e

1 O Fórum A Cidade Também é Nossa foi criado em 2008 com o intuito de propor soluções focadas na res- ponsabilidade social no debate das políticas públicas do Município de Salvador e Região Metropolitana. Esse Fórum é atualmente é formado por 38 entidades profissionais e cívicas, de grande prestígio e res- peitabilidade na cidade, entre elas o CREA-BA, o IAB-BA, a OAB-BA, o CAU-BA, o SINJORBA, o SENGE-BA, o CORECON-BA, o CREMEB, o CRCBA. O FACTEN vem funcionando como importante fator de proteção da comunidade de Salvador e Região Metropolitana.

da LOUOS, a ser viabilizado pela contratação de uma equipe técnica que buscasse realizar um acompanhamento contínuo do processo. Isso foi pos- sibilitado pelas verbas oriundas de uma multa ambiental disponibilizadas ao projeto Participa Salvador pelo MP-BA.2 Em 2014, a equipe do Participa

Salvador foi contratada pela Associação Rede de Profissionais Solidários pela Cidadania,3 membro do Fórum A Cidade Também é Nossa. Definiu-

se como seu objetivo geral fazer com que o processo participativo que a Prefeitura de Salvador fora impelida a conduzir fosse mais próximo de uma lógica pedagógica e emancipadora.

Para atingir tal objetivo, a equipe multidisciplinar do Participa Salvador realizou atividades variadas, contando com peritos em Direito Ambiental e Urbanístico, em Urbanismo, em Arquitetura e Urbanismo, assim como em Comunicação e Jornalismo, Design, Administração e Antropologia. Da pers- pectiva da sociedade civil organizada e do Ministério Público, era necessá- rio realizar: 1) a análise crítica dos estudos e documentos oficiais oriundos da equipe contratada pela Prefeitura, a Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (FIPE)4 e fazer recomendações de alteração, se necessário; 2) fis-

calizar o cumprimento dos prazos de convocação das Audiências e outros eventos públicos, e de divulgação dos documentos e estudos produzidos pela

2 A equipe do Participa foi formada por Carl von Hauenschild (Arquiteto e Urbanista), Henrique Azevedo (Arquiteto e Urbanista), Thaís Rebouças (Urbanista), Marina Teixeira (Arquiteta e Urbanista), Fernanda Gonzalez (Advogada), Jane Burgos (Advogada), Fernanda Pimenta e Arilma Borges (advogadas), Guida Queiroz (Administradora), Paula Ribeiro (Bacharel em Humanidades), Júlio Reis (Jornalista), Ana Camila Esteves (Assessora de Comunicação), Francisco Ribeiro (Jornalista), Kátia Santos (Comunicadora Social), Felipe de Carvalho (Advogado). Essa equipe contou com o aconselhamento voluntário de Prof. Dr. Ordep Serra (Antropólogo), à época coordenador do Fórum A Cidade Também é Nossa e de Profa. Dra. Débora Nunes (Urbanista), coordenadora da Rede de Profissionais Solidários pela Cidadania. Os estagiários de equipe foram: Aline Santos, Chauana Araujo, Juliana de Athayde, Taiane Moreira e Thiago Silva. Elisete Bispo foi a apoiadora logística por parte da ONG Rede.

3 Fundada em 1998, a Associação Rede de Profissionais Solidários pela Cidadania é uma ONG que se dedica a projetos de mobilização cidadã, participação popular, economia solidária e desenvolvimento sustentável. Surgiu em decorrência do trabalho desenvolvido no bairro de Vila Verde, onde aconteceu a supracitada experiência de pedagogia da participação, e desde essa época atua junto a comunidades apoiando processos de organização na busca da melhoria das condições de vida e da cidadania plena. 4 A FIPE foi contratada pelo Executivo Municipal, através de dispensa de licitação no 043/2014, publicada

no Diário Oficial em 2 de dezembro de 2014. A dispensa foi ancorada na Lei Federal – Lei de Licitações, artigo 24, inciso XIII, que permite a dispensa de licitação na contratação de instituição brasileira incum- bida regimental ou estatutariamente da pesquisa, do ensino ou do desenvolvimento institucional, ou de instituição dedicada à recuperação social do preso, desde que a contratada detenha inquestionável reputação ético-profissional e não tenha fins lucrativos. Para ver a publicação no DOM, acesse: <http:// participasalvador.com.br/wp-content/uploads/2015/02/Consultoria-T%C3%A9cnica-Contratada.pdf>.

Prefeitura/FIPE para a discussão, 3) trabalhar para a real participação da po- pulação e incentivá-la por diversos meios, e foi o que buscou ser empreendi- do pela equipe Interdisciplinar do Participa Salvador.

O Participa, como era chamado, promoveu importantes fóruns de discus- são,5 contando com os especialistas mais renomados da cidade em diversos

temas, com vistas à construção de base qualificada para os debates públicos promovidos pela Prefeitura/FIPE; além disso, divulgou amplamente6 os docu-

mentos e atos oficiais referentes ao Plano Salvador 500 e revisão do PDDU e LOUOS, exigindo que fossem criados os meios para uma ampla participação de todos os interessados. A metodologia de avaliação utilizada era construí- da ou redesenhada a toda semana, pelas contingências do processo e pelas alterações do cronograma, com exclusões de Audiências Públicas e de dis- cussões importantes, a exemplo dos Fóruns Setoriais inicialmente previstos. Houve acompanhamento das Audiências Públicas, das Oficinas de Bairro e dos fóruns temáticos. Os documentos produzidos podem ser acessados no

site.7 Não foram adotados instrumentos para aferir questões subjetivas dos

sujeitos envolvidos devido à pequena dimensão da equipe, dos recursos e do tempo disponível.

Apesar das dificuldades, a experiência foi enriquecedora: permitiu que cidadãos e movimentos sociais tomassem ciência do processo de elaboração e do conteúdo tanto do Plano Salvador 500 como, em especial, do PDDU. Por diversos motivos, a equipe técnica encontrou dificuldades para realizar o acompanhamento pretendido. Houve atraso da Prefeitura na divulgação do cronograma e dos primeiros documentos pertinentes ao Plano; mais atraso na realização de audiências. Por outro lado, houve atropelamento dos prazos e consequente condensação da publicação dos produtos do Plano Salvador 500,8 em pouco tempo, já no final do processo. Isso dificultou imensamente o

5 O Participa Salvador promoveu oficinas e saraus em alguns bairros, organizou o evento Projeto de Lei do PDDU de Salvador, Reflexões Propositivas, junto ao Ministério Público, sobre o tema e apoiou a realiza- ção de um Colóquio organizado pelo IAB.

6 O Participa conseguiu divulgar os conteúdos pelas redes sociais, algumas comunicações com mais de 2 mil curtidas na página da equipe, enquanto que a PMS não parecia se preocupar em mobilizar as pes- soas por meio de sua página do Facebook.

7 Ver: <www.participasalvador.com.br>.

8 Para mais informações, ver site do Participa Salvador: <http://participasalvador.com.br/2015/06/17/ como-funciona-a-comunicacao-do-plano-salvador-500/>.

acompanhamento sistemático do processo, etapa por etapa, segundo previs- to no Plano de Trabalho da Equipe Participa, que então buscou auxílio ex- terno, convocando técnicos renomados9 para algumas tarefas, em particular

análises dos produtos elaborados pela Prefeitura/FIPE.

Apesar dos avanços obtidos pelo Participa Salvador, houve limitações. A atuação do grupo compreendeu dois momentos diferenciados. O primei- ro transcorreu com ênfase maior no estímulo à participação; o segundo foi caracterizado por um viés mais técnico e de controle jurídico do processo, tendo lugar tão logo a Prefeitura e a FIPE aceleraram a publicação de docu- mentos. Por excesso de trabalho, nessa altura não foi possível à equipe re- duzida do Participa continuar no processo de mobilização, com momentos lúdicos e pedagógicos, particularmente no diálogo com a população mais po- bre. Sem dúvida, esse esforço deveria ter sido feito pela própria Prefeitura, que falou tanto em participação, ou pela equipe da FIPE. A comunicação do Plano Salvador 500 foi bastante criticada em audiência pública, quando lhe foi exigida a publicação de um Plano de Comunicação com conteúdo mínimo de informações técnicas, quando nada a discriminação do número de peças e a definição público-alvo. Ao cabo, o Plano entregue pela Prefeitura não se mostrou efetivo: esteve longe de lograr o envolvimento da população sotero- politana de forma representativa.

Antes de iniciar a análise do que de fato se passou, discutiremos breve- mente a lógica que baseia a proposta de uma pedagogia da participação, ex- pondo vantagens e assinalando desafios dos processos que ela implica. Ao fi- nal do texto, essas vantagens e desafios serão exemplificadas na proposta de uma Política de Incentivo à Participação Popular a ser aplicada em Salvador, ou em outra cidade brasileira, para a construção de uma cultura de participa- ção. Levaremos em consideração as dificuldades vividas na experiência com o Plano Salvador 500 (Plano Estratégico), PDDU e LOUOS, tendo em vista pro- por caminhos para a superação desses óbices.

9 Inaiá de Carvalho, Juan Moreno, Heliodorio Sampaio, Luiz Antonio de Souza, Gloria Cecília Figueiredo, Gabriel Brasileiro, Luiz Moraes, Ronaldo Lyrio, Angela Gordilho, Fernando Alcoforado, Armando Branco, Angela Franco, Manoel Nascimento e José Aloir Neto.

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