Além do que já havia sido previsto no texto Constitucional, o Estatuto da Cidade – a Lei Federal no 10.257/2001, que regulamentou a Constituição no âmbito da política urbana – estabeleceu que “a política de desenvolvimento urbano tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções so- ciais da cidade e da propriedade urbana”. (BRASIL, 2001)
Os artigos 39 e 40 do Estatuto trazem mais regulamentações sobre o Plano Diretor, reafirmando que é o instrumento básico legal a ser utilizado para nortear, de forma ordenada, o desenvolvimento e a expansão urbana de um município. Vejamos tais artigos em suas completudes:
Art. 39. A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expres- sas no Plano Diretor, assegurando o atendimento das necessidades dos cidadãos quanto à qualidade de vida, à justiça social e ao desen- volvimento das atividades econômicas, respeitadas as diretrizes pre- vistas no art. 2º desta Lei.
Art. 40. O Plano Diretor, aprovado por lei municipal, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e expansão urbana.
§ 1º O Plano Diretor é parte integrante do processo de planejamento municipal, devendo o plano plurianual, as diretrizes orçamentárias e o orçamento anual incorporar as diretrizes e as prioridades nele contidas. § 2º O Plano Diretor deverá englobar o território do Município como um todo.
§ 3º A lei que instituir o Plano Diretor deverá ser revista, pelo menos, a cada dez anos.
§ 4º No processo de elaboração do Plano Diretor e na fiscalização de sua implementação, os Poderes Legislativo e Executivo municipais garantirão:
I – a promoção de audiências públicas e debates com a participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade;
II – a publicidade quanto aos documentos e informações produzidos; III – o acesso de qualquer interessado aos documentos e informações produzidos. (BRASIL, 2001)
Importante pontuar a definição de ordenar, já que a carga semântica con- tida neste núcleo verbal do art. 2º foi utilizada novamente pelo legislador no
art. 39 ao reafirmar que o Plano Diretor expresse a “ordenação da cidade”. Ordenar é definir um regime jurídico coerente, capaz de produzir ordem, e não desordem. Como bem leciona Carlos Ari Sundfeld:
Se é verdade que a própria existência do Direito Urbanístico é uma reação ao crescimento urbano sem ordem e ao caos gerado pelas atuações individuais, ele não pode traduzir-se na substituição do caos privado pelo caos estatal. O urbanismo não é um projeto de estatização pura e simples, mas de racionalização urbana via atua- ção estatal. Assim, a ação urbanística do Estado só se legitima se estiver racionalmente orientada. Aí entram os planos urbanísticos. (SUNDFELD, 2002, p. 56)
Nesse contexto, o art. 2º do Estatuto da Cidade, por meio de seus incisos (aos quais o supratranscrito art. 39, caput, fez referência expressa), forneceu as diretrizes gerais que devem ser seguidas, perseguidas pelo planejamento urbano contido num PDDU. Diversos termos e expressões constantes nestes incisos explicitam os estudos técnicos que são imprescindíveis para fornecer bases seguras à formulação de um Plano Diretor de desenvolvimento urbano que cumpra, de forma eficiente, suas já ressaltadas funções legais.5
Ou seja, além do princípio Constitucional do Planejamento Urbano, sobre o qual já tratamos, o Estatuto da Cidade trouxe ainda regras objetivas nesse sen- tido, exigindo certos e específicos estudos técnicos para a elaboração de Plano Diretor. Dada sua importância, reproduzimos o artigo 2º do Estatuto na íntegra:
Art. 2º A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvi-
mento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, medi- ante as seguintes diretrizes gerais:
I – garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à in- fraestrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao tra- balho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações;
II – gestão democrática por meio da participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade na formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano;
III – cooperação entre os governos, a iniciativa privada e os demais setores da sociedade no processo de urbanização, em atendimento ao interesse social;
IV – planejamento do desenvolvimento das cidades, da distribuição espacial da população e das atividades econômicas do Município e do território sob sua área de influência, de modo a evitar e corrigir as distorções do crescimento urbano e seus efeitos negativos sobre o meio ambiente;
5 A exigência legal de estudos técnicos que alicercem Proposta de Lei de Plano Diretor tem sido cada vez mais reafirmada pelos Tribunais pátrios. A seguir, ementa de decisão do Tribunal de São Paulo, julgan- do inconstitucional Lei sobre Plano Diretor, dada a ausência de estudos técnicos: “Ação direta de incons- titucionalidade - Lei municipal que altera substancialmente a lei que dispõe sobre o Plano Diretor do Município - Necessidade de ser o processo legislativo - tanto o referente à elaboração da Lei do Plano Diretor como daquela que a altera, integrado por estudos técnicos e manifestação das entidades comunitá- rias, fato que não ocorreu - Audiência do Conselho Municipal de Política Urbana que não supre a exigência da participação popular, caracterizadora de uma democracia participativa – Ação procedente”. (TJSP, ADIn nº 0207644-30.2011.8.26.0000, DJ 21 mar.12, Desembargador Relator Walter de Almeida Guilherme).
V – oferta de equipamentos urbanos e comunitários, transporte e serviços públicos adequados aos interesses e necessidades da pop- ulação e às características locais;
VI – ordenação e controle do uso do solo, de forma a evitar: a) a utilização inadequada dos imóveis urbanos;
b) a proximidade de usos incompatíveis ou inconvenientes;
c) o parcelamento do solo, a edificação ou o uso excessivos ou inade- quados em relação à infraestrutura urbana;
d) a instalação de empreendimentos ou atividades que possam fun- cionar como polos geradores de tráfego, sem a previsão da infraestru- tura correspondente;
e) a retenção especulativa de imóvel urbano, que resulte na sua sub- utilização ou não utilização;
f ) a deterioração das áreas urbanizadas; g) a poluição e a degradação ambiental;
h) a exposição da população a riscos de desastres
VII – integração e complementaridade entre as atividades urban- as e rurais, tendo em vista o desenvolvimento socioeconômico do Município e do território sob sua área de influência;
VIII – adoção de padrões de produção e consumo de bens e serviços e de expansão urbana compatíveis com os limites da sustentabili- dade ambiental, social e econômica do Município e do território sob sua área de influência;
IX – justa distribuição dos benefícios e ônus decorrentes do processo de urbanização;
X – adequação dos instrumentos de política econômica, tributária e financeira e dos gastos públicos aos objetivos do desenvolvimento urbano, de modo a privilegiar os investimentos geradores de bem-es- tar geral e a fruição dos bens pelos diferentes segmentos sociais; XI – recuperação dos investimentos do Poder Público de que tenha resultado a valorização de imóveis urbanos;
XII – proteção, preservação e recuperação do meio ambiente natural e construído, do patrimônio cultural, histórico, artístico, paisagístico e arqueológico;
XIII – audiência do Poder Público municipal e da população inter- essada nos processos de implantação de empreendimentos ou ativi- dades com efeitos potencialmente negativos sobre o meio ambiente natural ou construído, o conforto ou a segurança da população; XIV – regularização fundiária e urbanização de áreas ocupadas por população de baixa renda mediante o estabelecimento de normas espe- ciais de urbanização, uso e ocupação do solo e edificação, consideradas a situação socioeconômica da população e as normas ambientais;
XV – simplificação da legislação de parcelamento, uso e ocupação do solo e das normas edilícias, com vistas a permitir a redução dos custos e o aumento da oferta dos lotes e unidades habitacionais; XVI – isonomia de condições para os agentes públicos e privados na promoção de empreendimentos e atividades relativos ao processo de urbanização, atendido o interesse social.
XVII – estímulo à utilização, nos parcelamentos do solo e nas edi- ficações urbanas, de sistemas operacionais, padrões construtivos e aportes tecnológicos que objetivem a redução de impactos ambien- tais e a economia de recursos naturais.
XVIII – tratamento prioritário às obras e edificações de infraestru- tura de energia, telecomunicações, abastecimento de água e sanea- mento. (BRASIL, 2001)
Da leitura desses incisos, depreende-se que a consecução dos objetivos por meio dessas diretrizes legais exige estudos técnicos aprofundados sobre aquelas temáticas no âmbito municipal, produzidos com supedâneo em da- dos atualizados.
Afinal, apenas a título de exemplo e valendo-se da própria redação le- gal para melhor explicar, é preciso saber, de forma atualizada (porquanto não se ordena, não se racionaliza um desenvolvimento com base em dados defasados): “a situação socioeconômica da população”; “os limites da sus- tentabilidade ambiental, social e econômica do Município e do território sob sua área de influência”; bem como identificar as “distorções do cresci- mento urbano e seus efeitos negativos sobre o meio ambiente”; os “interes- ses e necessidades da população” e “características locais”. (BRASIL, 2001) Isto – e todo restante exigido pelas diretrizes legais do artigo em comento –, sem sombras de dúvidas, demanda estudos técnicos de qualidade, apro- fundados e elaborados com base em um levantamento atualizado dos da- dos do município.
Para se inibir “a retenção especulativa de imóvel urbano, que resulte na sua subutilização ou não utilização” (BRASIL, 2001), é imprescindível reali- zar, de antemão, estudos que consigam mapear, na extensão territorial da ci- dade, onde está ocorrendo, efetivamente, esta retenção especulativa danosa.
Há ainda vários outros artigos do Estatuto da Cidade, conformadores de regras jurídicas impositivas, que condicionam a elaboração de Projeto de Lei que verse sobre o PDDU de um município à realização de estudos técnicos consistentes.
O art. 28, §3, por exemplo, ao regular o instrumento urbanístico da ou- torga onerosa do direito de construir, o Estatuto da Cidade aduz que “o Plano Diretor definirá os limites máximos a serem atingidos pelos coeficientes de aproveitamento, considerando a proporcionalidade entre a infraestrutura existente e o aumento de densidade esperado em cada área”. (BRASIL, 2001) Ora, somente estudos técnicos podem aquilatar esta proporcionalidade, for- necendo subsídios para que a política adotada preze, de fato, pelo devido or- denamento e planejamento territorial da cidade.
A fim de sintetizar a explanação sobre o caráter técnico do Direito Urbanístico – e consequentemente de seu principal instrumento, o Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano –, é válido transcrever os ensinamentos do doutrinador José Afonso da Silva (1995, p. 78):
A institucionalização do processo de planejamento importou em convertê-lo num tema do Direito, e de entidade basicamente técnica passou a ser uma instituição jurídica, sem perder suas características técnicas. Mesmo seus aspectos técnicos acabaram, em grande parte, juridicializando-se, deixando de ser regras pur- amente técnicas para se tornarem normas técnico-jurídicas. […] O planejamento, assim, não é mais um processo dependente de mera vontade dos governantes.
É uma previsão constitucional e uma provisão legal. Tornou-se im- posição jurídica, mediante a obrigação de elaborar planos, que são os instrumentos consubstanciadores do respectivo processo.
E de Victor Carvalho Pinto (2011, p. 234):
Todo conteúdo do Plano Diretor, como o traçado do sistema viário, a localização das praças e a definição de índices urbanísticos, é de natureza técnica, ou seja, encontra-se inserido no universo das atribuições profissionais do urbanista. […]. A definição dos usos e dos índices urbanísticos, como coeficientes de aproveitamen- to, taxas de ocupação, altura de prédios, recuos frontais, laterais e de fundos, áreas e testadas mínimas de lotes e largura de ruas também constituem matéria técnica, por exigirem conhecimentos específicos para que possam ser elaboradas e até compreendidas. O Plano Diretor deve ser considerado, portanto, um documento técnico de urbanismo, que só pode ser elaborado por profissionais legalmente habilitados.
Desta forma, o planejamento converte-se no principal instrumento de controle da tecnologia pela sociedade. No processo de planeja- mento atuam os órgãos setoriais quanto os grupos de pressão, mas essas influências têm de operar sobre uma base tecnicamente con- sistente. Somente ao produto desse processo pode ser atribuída uma presunção de representação do interesse público.
Sendo assim, é incontroverso que, para se elaborar um PDDU que cum- pra suas missões legais, é preciso, antes, diagnosticar, com amplos e profun- dos estudos técnicos, as características, os problemas e os potenciais de uma cidade, buscando regulamentar e ordenar sua expansão urbana de forma a identificar/combater/reduzir os problemas existentes, fomentar os poten- ciais e promover melhor qualidade de vida para seus habitantes e visitantes: isto é uma obrigação legal do gestor municipal e dos vereadores, jamais uma mera análise de “conveniência e oportunidade”.
Com efeito, conforme demonstrado, são claras as regras e exigências legais de alicerçar com estudos técnicos densos a elaboração de Projeto de Lei que formule/revise/atualize Plano Diretor, tendo os estudos rigor, ca- pacidade, profundidade e contemporaneidade para tanto. Contudo, mes- mo assim, o Poder Executivo do Município de Salvador (durante o final da primeira gestão de ACM Neto) elaborou e encaminhou o PL 396/2015, alcunhado de “Novo PDDU de Salvador”, para a Câmara Municipal, sem que houvesse tido a realização dos estudos exigidos pela legislação: fez- -se apenas um simulacro. E a Câmara Municipal deu continuidade ao des- respeito à Constituição e ao Estatuto das Cidades, deliberando, votando e aprovando o “Novo PDDU de Salvador”, a Lei no 9.069/16, sem que houves-
se o mínimo de base técnica para tanto. Nem mesmo o conteúdo mínimo exigido o PL detinha.