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Liberdade de iniciativa e livre concorrência

2. O SISTEMA BRASILEIRO DE DEFESA DA CONCORRÊNCIA SBDC

2.1 PARÂMETROS CONSTITUCIONAIS DO CONTROLE DE CONCENTRAÇÃO

2.2.1 A pluralidade de interesses tutelados pelo direito da concorrência

2.2.1.1 Liberdade de iniciativa e livre concorrência

No Brasil, a livre iniciativa encontra previsão em vários dispositivos e pode-se dizer que configura uma projeção da liberdade individual no campo da economia.68 Primeiramente, a liberdade de iniciativa figura como fundamento da República Federativa do Brasil no artigo 1º, IV, ao lado da soberania (I), da cidadania (II), da dignidade da pessoa humana (III), dos valores sociais do trabalho (IV, 1aparte) e do pluralismo político (V).

No tocante à ordem econômica, a Constituição Federal elege expressamente a livre iniciativa como elemento essencial da ordem econômica, sobre o qual ela se estrutura. Ademais, a liberdade de iniciativa vai além da liberdade econômica. Não se pode deixar de mencionar que no texto constitucional encontram-se outros dispositivos que configuram desdobramentos ou especificações da livre iniciativa: à liberdade de associação (artigos 5º, XVII e 8º), ao direito de propriedade privada (art. 5º, XXII), à liberdade do exercício e escolha de trabalho, ofício ou profissão (art. 5º, XIII).

A liberdade pode ser conceituada como sensibilidade e acessibilidade a opções de comportamento e de resposta69. Nesse sentido, a garantia constitucional de livre iniciativa implica em dois aspectos que merecem ser destacados.

67 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 13.ed. ver. e atual. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 364.

68 BICHARA, Jahyr-Philippe. La privatisation au Brésil: aspects juridiques et financiers. Paris : L'Harmattan, 2008, 249 . p. 47-48.

69 GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1998. 9. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2004. p. 185.

O primeiro deles refere-se ao condão de “constitucionalizar” o conjunto de normas que estimulam e protegem o exercício das atividades econômicas de modo empresarial. Nesse sentido, Fábio Ulhôa Coelho exemplifica essa assertiva, explicitando que o preceito da autonomia patrimonial das sociedades empresariais no campo do direito societário é uma forma de garantia da livre iniciativa, porque permite aos empreendedores aplicar recursos em atividades empresariais sem comprometer todo o seu patrimônio70.

Noutro aspecto o princípio da livre iniciativa surge como uma garantia contra a ação do Estado71 e contra entes privados para tutelar o direito de empreender atividades econômicas. Por um lado, tolhe-se do Estado a possibilidade de restringir desarrazoadamente a atividade empresarial – vale lembrar que o texto constitucional atribuiu à iniciativa privada o primado do domínio econômico72. Por outro, atribui-se ao ente estatal o dever de defender a liberdade econômica contra a concorrência ilícita.

É importante analisar seu conteúdo e sua relação com a livre concorrência, cujas existências e conservação estão abstratamente relacionadas. Para todo ator econômico que atua concreta ou virtualmente no mercado, há uma zona, a priori, imprecisa de escolhas concretas e economicamente significativas de atividade criadora, por exemplo, a escolha de poder ou não celebrar contratos. O âmbito, a priori, sem definição de alternativas concretas e economicamente pertinentes de agir criativo consiste, vagamente, no que se compreende por livre iniciativa73.

Portanto, livre concorrência e livre iniciativa estão evidentemente conectadas. Dessa forma, na proporção em que a livre iniciativa é margem de poder de criação em um mercado, a sua identificação com um âmbito de atuação competitiva fica bem próximo. Logo, aparentemente, há uma coincidência de conceitos, porém a relação entre as duas realidades tem maior complexidade. A liberdade econômica, apenas, é dimensionada realmente no plano das interações econômicas concretas, marcado pela disputa concorrencial em busca da obtenção e ampliação dos lucros “monopolísticos”. Essa dinâmica produz e aumenta assimetrias de poder, que, por sua vez, tornam-se elementos estruturais para o fortalecimento

70 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial. Volume 1 8.ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 188.

71 FIGUEIREDO, Leonardo Vizeu. Lições de direito econômico. 3. ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2010. p. 62-63.

72COELHO, Fábio Ulhoa. Manual de direito comercial: direito da empresa. 25.ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 49.

73 SCHUARTZ, Luiz Fernando. “Dogmática jurídica e Lei 8.884/94”, in: Revista de Direito Mercantil, v. XXXVI, n. 107, jul.-set. 1997, p. 70-71.

da liberdade econômica dos atores mais competitivos no mercado, simultaneamente restringindo e até eliminando a liberdade dos agentes desprovidos de eficiência74.

Assim sendo, ainda que razoável a hipótese de existência de um liame entre livre iniciativa e livre concorrência, essa relação não é de identidade e nem se configura linearmente. A livre iniciativa não constitui definição meramente negativa, isto é, a sua conceituação exige, além da possibilidade lógica (inexistência de contradição) ou jurídica (inexistência de proibição), a ocorrência concreta de ao menos duas alternativas de ação relevantes percebidas ou perceptíveis pelo ator e ao alcance da sua vontade autônoma. O poder de alterar o ambiente em que age transforma o ator em força motriz do sistema econômico e também revela o núcleo conceitual da liberdade de iniciativa, que reside no pressuposto de oportunidade de fruição criativa dos recursos econômicos privados, reconhecidos juridicamente e assegurados pelo Estado. 75

Muito foi falado sobre a consagração da liberdade econômica no texto constitucional como um fundamento da ordem econômica, que foi reflexo das limitações estatais em promover o desenvolvimento econômico e social pela ferramenta da intervenção direta no domínio econômico. Esse fator é de caráter consequencial e se alicerça sobre a eficácia econômica da iniciativa individual que afasta os resultados negativos da ingerência da autoridade política. A excessiva intervenção do Estado na economia pode ser contraproducente à geração de riqueza, pois a politização dos processos econômicos induz a deformações na alocação de recursos e afeta negativamente o papel epistêmico dos mecanismos de mercado76.

Entretanto, quando o texto constitucional proclama a liberdade econômica como fundamento da ordem econômica, entende-se que, além do reconhecimento do sistema de mercados como melhor modelo econômico para a criação de progresso econômico, a Constituição Federal alberga a liberdade de troca como uma dimensão da liberdade. Assim, o sistema de mercado, antes de justificar-se pelos benefícios econômicos, apresenta um fundamento ético em si, o exercício da liberdade77.

A livre concorrência (artigo 170, IV) está relacionada a todos os demais princípios e fundamentos da Constituição Brasileira, em especial com os da ordem econômica. Entretanto,

74 SCHUARTZ, Luiz Fernando. “Dogmática jurídica e Lei 8.884/94”, in: Revista de Direito Mercantil, v. XXXVI, n. 107, jul.-set. 1997, p. 71.

75 SCHUARTZ, Luiz Fernando. “Dogmática jurídica e Lei 8.884/94”, in: Revista de Direito Mercantil, v. XXXVI, n. 107, jul.-set. 1997, p. 71-72.

76GIANNETTI, Eduardo. Vícios privados, benefícios públicos?: a ética na riqueza das nações. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 137.

77 SEN, Amartya Kumar. Desenvolvimento como liberdade; tradução Laura Teixeira Motta; revisão técnica Ricardo Doniselli Mendes. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 20-21 e p. 136-137.

a liberdade de concorrência guarda estrita ligação com livre iniciativa, tendo em vista que esta se desdobra em duas garantias: acessibilidade ao mercado e subsistência nele. Se, por um lado, observa-se uma liberdade pública a ser exercida contra o Estado, por outro tem-se a liberdade de continuidade de participação no mercado. Em outros termos, a livre concorrência pode ser oposta, não somente ao poder público como também aos atores privados, para obstar empecilhos injustificados ao livre empreendimento de determinado agente no mercado78.

Observa-se que o Supremo Tribunal Federal – STF é conferido um tratamento oscilante à livre concorrência79. Da jurisprudência do Tribunal emana o entendimento de que, em algumas oportunidades, a liberdade de concorrer assume o caráter de direito individual e, em outras, configuraria um direito social e econômico80.

Um bom mercado regulado tende naturalmente a oferecer os melhores bens e serviços, sempre de forma mais eficiente possível por meio da livre competição, pois esta é a grande responsável pela oferta de qualidade.

78 BRUNA, Sérgio Varella. O poder econômico e a conceituação do abuso em seu exercício. 1.ed. 2.tir. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001. p. 134-136.

79Em decisão proferida na Medida Cautelar em Ação Cautelar a livre concorrência é referida como um direito econômico e social, vide: “EMENTA: RECURSO. Extraordinário. Efeito suspensivo. Inadmissibilidade. Estabelecimento industrial. Interdição pela Secretaria da Receita Federal. Fabricação de cigarros. Cancelamento do registro especial para produção. Legalidade aparente. Inadimplemento sistemático e isolado da obrigação de pagar Imposto sobre Produtos Industrializados - IPI. Comportamento ofensivo à livre concorrência. Singularidade do mercado e do caso. Liminar indeferida em ação cautelar. Inexistência de razoabilidade jurídica da pretensão. Votos vencidos. Carece de razoabilidade jurídica, para efeito de emprestar efeito suspensivo a recurso extraordinário, a pretensão de indústria de cigarros que, deixando sistemática e isoladamente de recolher o Imposto sobre Produtos Industrializados, com conseqüente redução do preço de venda da mercadoria e ofensa à livre concorrência, viu cancelado o registro especial e interditados os estabelecimentos. Grifos nossos. (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Medida Cautelar em Ação Cautelar n.º 1657, Relator: Min. JOAQUIM BARBOSA, Relator p/ Acórdão: Min. CEZAR PELUSO, Tribunal Pleno, Data de julgamento: 27/06/2007, Data de Publicação: DJe DIVULG 30/08/2007 PUBLIC 31/08/2007)”.

Por sua vez, o entendimento manifestado na Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 319 QO a livre concorrência é tomada como um direito individual, vide: Ação direta de inconstitucionalidade. Lei 8.039, de 30 de maio de 1990, que dispõe sobre critérios de reajuste das mensalidades escolares e da outras providencias. - Em face da atual Constituição, para conciliar o fundamento da livre iniciativa e do princípio da livre concorrência com os da defesa do consumidor e da redução das desigualdades sociais, em conformidade com os ditames da justiça social, pode o Estado, por via legislativa, regular a politica de preços de bens e de serviços, abusivo que e o poder econômico que visa ao aumento arbitrário dos lucros. - Não é, pois, inconstitucional a Lei 8.039, de 30 de maio de 1990, pelo só fato de ela dispor sobre critérios de reajuste das mensalidades das escolas particulares. - Exame das inconstitucionalidades alegadas com relação a cada um dos artigos da mencionada Lei. Ofensa ao princípio da irretroatividade com relação a expressão "marco" contida no paragrafo 5. do artigo 2. da referida Lei. Interpretação conforme a Constituição aplicada ao "caput" do artigo 2., ao paragrafo 5. desse mesmo artigo e ao artigo 4., todos da Lei em causa. Ação que se julga procedente em parte, para declarar a inconstitucionalidade da expressão "marco" contida no paragrafo 5. do artigo 2. da Lei no 8.039/90, e, parcialmente, o "caput" e o paragrafo 2. do artigo 2., bem como o artigo 4. os tres em todos os sentidos que não aquele segundo o qual de sua aplicação estao ressalvadas as hipóteses em que, no caso concreto, ocorra direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada. Grifos nossos. (Supremo Tribunal Federal. Ação Direita de Inconstitucionalidade n.º 319 QO. Relator: Min. MOREIRA ALVES, Data de Julgamento: 03/03/1993. Data de Publicação: DJ 30/04/1993).

80 ANDERS, Eduardo Caminati (coord.); BAGNOLI, Vicente (coord.); PAGOTTO, Leopoldo (coord.). Comentários à nova lei de defesa da concorrência: Lei 12.529. de 30 de novembro de 2011. São Paulo: Método, 2012. p. 6.