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1. A FORMULAÇÃO DO ANTICOMUNISMO CATÓLICO NO BRASIL E A FUNDAÇÃO DO

1.1. A definição e a abordagem do anticomunismo na historiografia brasileira

1.1.1. O anticomunismo católico

Um dos trabalhos que veio a contribuir para a nossa abordagem é o trabalho de Cândido Moreira Rodrigues38 sobre a revista A Ordem, o periódico oficial do Centro Dom

Vital, do Rio de Janeiro.

Rodrigues nos fornece uma nova abordagem histórica e metodológica que possibilita repensarmos esse tema de pesquisa, diferindo bastante das produções analisadas anteriormente. Em sua pesquisa, esse autor investigou e analisou a produção da intelectualidade leiga católica39 ligada ao Centro Dom Vital. Este, sob a direção de Jackson de Figueiredo, depois de Alceu Amoroso Lima, surgiu em 1921 e transformou-se no principal órgão de difusão do pensamento católico no Brasil.

Várias são as contribuições de Rodrigues: a análise das matrizes políticas, ideológicas e filosóficas que forneceram a base para compreendermos as ações e os posicionamentos da Igreja Católica; o exame dos princípios que fundamentaram a moral católica; a investigação dos liames da doutrina que possibilitaram a maior participação do laicado na vida da Igreja e; a ideia de que a disseminação de periódicos diocesanos foi uma das estratégias frente aos acontecimentos da década de 1930 no Brasil, um indício importante para ligarmos a análise da produção norte-rio-grandense, que possuía o jornal A Ordem como seu veículo divulgador, à análise da revista A Ordem.

38 RODRIGUES, Cândido Moreira. A Ordem: uma revista de intelectuais católicos (1934-1945). Belo Horizonte: FAPESP, 2005.

39 Sobre a participação de intelectuais na década de 1930 junto à elite eclesiástica será discutida no decorrer da dissertação.

30 Ao analisar as matrizes do pensamento católico na revista A Ordem, as quais seriam depois disseminadas nos demais veículos da imprensa católica, Rodrigues observa que o posicionamento dos ideais da Igreja no Brasil pelos intelectuais católicos, recebeu a influência de certos pensadores europeus dos séculos XVIII e XIX e, dentre os autores que teriam dado respaldo e fundamentação teórica àqueles se encontrariam vários dos principais autores contrarrevolucionários, tais como Edmund Burke, Louis Ambroise De Bonald, Joseph De Maistre e Juan Donoso Cortés.

Para Rodrigues, estes autores contrarrevolucionários teriam desempenhado um papel central na função de construir refutações em face aos questionamentos produzidos pelos socialistas e liberais e às mudanças dos valores vigentes da monarquia e do poder da Igreja católica. Como o autor bem define,

Numa perspectiva mais ampla, a providência, o anti-individualismo e o catolicismo seriam os pontos principais para a formação e a consolidação de uma vida política saudável, segundo a visão dos contrarrevolucionários franceses.40

Esse apontamento forneceu parte do argumento de nosso trabalho, pois, de acordo com Cândido Rodrigues, é possível verificar a constituição e fomentação teórica, política e filosófica do pensamento católico e, que este teria resultado na formulação de um discurso questionador das consequências e mudanças que remetem à desordem, advinda dos males postulados da Revolução de 1789 e da derrocada da monarquia absolutista e, contrário à modernidade. Este discurso se posicionaria na oposição aos princípios republicanos, de igualdade de classes, da soberania popular, da democracia, da destruição dos laços familiares e da eliminação do poder da Igreja frente ao Estado.

Em geral, os contrarrevolucionários defenderiam o retorno à filosofia da natureza (ordem natural), o direito de propriedade, o absolutismo, a hierarquia social e a tradição histórica e,41 segundo Rodrigues, também demandavam a condenação do mundo moderno, nas seguintes condições:

(...) como aquele que rejeitava a “autoridade da Igreja” e afastava Deus como princípio de ordenamento da sociedade. É assim que “as propostas restauradoras de uma ordem social”, baseada nos valores cristãos,

40 RODRIGUES, Cândido. Op. cit., p. 41. 41

31 “alimentavam o mito do retorno à cristandade medieval”, a partir do restabelecimento do poderio papal sobre a sociedade e da reconstituição de sua Constituição.42

Devido às mudanças relacionadas aos adventos da Reforma e da Revolução Francesa, os contrarrevolucionários defendiam um pensamento voltado para uma ordem pautada nos valores tradicionais de cunho católico. Para estes a sociedade só permaneceria equilibrada se estivesse de acordo com os preceitos da religião cristã e de um governo político-religioso, no caso, exemplificado pela monarquia.

Seria essa refutação contrarrevolucionária da modernidade em favor da ordem que forneceria a base para a elaboração das estratégias da Igreja Católica na primeira metade do século XX. De acordo com Rodrigues, seria possível sintetizá-lo no pensamento de Joseph De Maistre:

Sua principal reivindicação é o restabelecimento das relações entre ordem religiosa e ordem política (altar e trono). Para ele, a fidelidade à Igreja Católica Romana era o único meio de estabilidade social, e os protestantes do passado representavam os jacobinos do presente.43

Quanto a isso, o pensamento conservador do contrarrevolucionário espanhol Juan Donoso Cortés aborda outro ponto relevante para compreendermos o anticomunismo católico: a justificativa estabelecida em preceitos históricos e teológicos da possibilidade de implantação da ditadura como a melhor solução para se mantiver a ordem:

Se Deus, algumas vezes, manifestava sua vontade soberana “violando essas leis que ele mesmo se impôs”, e considerando-se que as mesmas eram análogas às da sociedade, não poderia o homem classifica-lo como portador de atitudes ditatoriais? Nessa questão residia a prova, segundo Cortés, de que nenhum partido poderia querer governar sem que mantivesse uma estreita relação com Deus, com seus meios e formas de governo, nem se furtar a adotar o meio, “algumas vezes necessário, da ditadura”.44

O argumento utilizado por Cortés contra a modalidade de regime político surgido com o advento da Revolução Francesa, o liberalismo, é o mesmo que defende a soberania

42 DIAS. 1996, p. 30-31 apud RODRIGUES, 2005, p. 39. 43 Ibidem, p. 51.

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32 eclesiástica acima dos valores econômicos e políticos.45 Em relação ao socialismo, salienta que este não estaria de acordo com o sistema político vinculado aos preceitos da doutrina católica, pois teria como fim o aniquilamento do Estado, das classes sociais e das instituições políticas-religiosas. Para Cortés, o único sistema adequado seria a Monarquia, a qual define como sendo uma política religiosa.46

Para caracterizar a República como um meio que leva ao comunismo “panteísta”, Cortés recorre aos mesmos princípios que Burke, De Bonald e De Maistre recorreram, por exemplo, ao considerá-la como produto da Revolução Francesa, e esta, por sua vez, como fruto de uma catástrofe inesperada e, portanto, obra da Providência. Realidade, Cortés considera a Revolução como o dia da “grande liquidação de todas as classes da sociedade” pela Providência, de modo que a república, ao ser instaurada, havia declarado sua própria derrocada. Os princípios de liberdade, igualdade e fraternidade eram, para ele, provenientes não da República, mas sim “do Calvário”.47

A análise empreendida pelo historiador Renato Amado Peixoto,48 da fabricação da identidade e espacialidade católica norte-rio-grandense na década de 1930, por meio do livro ‘Os Holandeses no Rio Grande’ de Padre Heroncio, observa que esta importante obra, produzida no contexto da Guerra Civil Espanhola, foi uma das estratégias usadas para fomentar a identidade norte-rio-grandense que, influenciando toda a produção historiográfica no estado, resultaria na beatificação dos Protomártires do Brasil (no caso específico, os massacrados nos engenhos de Cunhaú e Uruaçu em 1645).

Nesse artigo o autor levanta os seguintes questionamentos: Como entender essa descontinuidade do evento na Colônia, o massacre de Cunhaú e Uruaçu, em relação a sua ênfase na formulação do discurso anticomunista? Por que a Igreja retoma esse assunto em 1937? Como é retomado contemporaneamente?

Através desse questionamento chegou à conclusão que o anticomunismo presente nessa obra não se remetia apenas contra os postulados do comunismo, na medida em que, em relação ao pensamento católico não se aplica estritamente essa concepção. Percebe-se que o

45

RODRIGUES, Cândido. Op. cit., p., 71. 46 Id.

47 Ibidem, p. 69.

48 PEIXOTO, Renato Amado. Duas Palavras: Os Holandeses no Rio Grande do Norte e a invenção da

33 discurso da Igreja preexistia ao comunismo e, portanto, urge pensá-lo enquanto um discurso mais amplo contra aos preceitos da modernidade que focou no combate ao protestantismo, à Maçonaria, à Revolução Francesa, e aos postulados políticos de viés liberal e socialista.

Na verdade, em relação ao comunismo no século XX, a Igreja vai se utilizar do mesmo discurso usado contra os seus inimigos de séculos anteriores. O comunismo será apenas um dos inimigos da Igreja e representará os problemas restantes. Como bem se percebe é uma continuidade do discurso católico que vem desde o século XIX e preexiste aos problemas trazidos pela Revolução Bolchevique e se insere nas estratégias do Centro Dom Vital: é uma forma da Igreja Católica se colocar frente às mudanças e desafios contemporâneos.

Padre J. Cabral, norte-rio-grandense, diretor do jornal da Diocese do Rio de Janeiro A

Cruz é outra figura importante para quem Peixoto nos chama atenção em relação à análise do

anticomunismo, uma vez que este faz a articulação e contribuição do pensamento católico do estado com o Centro Dom Vital a partir da ligação com Dom Marcolino Dantas. Segundo o autor, “torna razoável apontar que desde antes do Levante Comunista as ideias do Padre J. Cabral influenciavam diretamente o clero e o pensamento católico norte-rio-grandense.” Essa produção será a grande base para a formulação do anticomunismo, pois em 1933 era publicado o Livro ‘A Miragem Soviética’, portanto, bem antes do Levante Comunista de 1935.

De acordo com Peixoto49, para entender a Igreja no Rio Grande do Norte, se faz necessário compreender a relação entre as diferentes escalas de produção do pensamento católico e suas dinâmicas. A Igreja era vinculada ao pensamento produzido no Centro Dom Vital, sediado no Rio de Janeiro, e o pensamento católico norte-rio-grandense estava vinculado ao que era produzido no Rio de Janeiro de modo contínuo.

Por sua vez, já em 1933, com o lançamento do livro de Padre Cabral, se podia observar a preocupação da Diocese para fundar em Natal o jornal A Ordem, uma vez que o apostolado da imprensa ficou sob a responsabilidade da Congregação Mariana. No estado, os marianos estariam envolvidos nessa articulação e, conforme apontou Peixoto, não seria por acaso que a Ação Integralista no Rio Grande do Norte, a Congregação Mariana e o jornal A

49 PEIXOTO, Renato Amado. Católicos a postos! A relação entre a Ação Católica e a Ação Integralista no Rio Grande do Norte até o Levante Comunista de 1935. In: IV Encontro Estadual de História da ANPUH RN, 2010, Natal. Anais do IV Encontro Estadual de História. Natal: ANPUH-RN, 2010, v. I.

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Ordem seriam todos fundados na mesma data, 14 de julho, mas em anos diferentes, pois isto

era “como uma alusão a Revolução Francesa, não necessariamente para comemorá-la”.50 Portanto, observamos no trabalho de Rodrigues (2005) e Peixoto (2013) a possibilidade de empreender o exame da formulação do anticomunismo católico no plano nacional em referência ao posicionamento dos pensadores contrarrevolucionários do século XIX e ao descontentamento e as consequências das mudanças ocorridas na modernidade advinda da Revolução Francesa, em vez de remetê-lo diretamente aos postulados ou aos defensores da Revolução Russa.

É essa abordagem do anticomunismo que, por meio da nossa análise das fontes consultadas, seja na revista A Ordem (Rio de Janeiro), seja no jornal A República de Natal, onde o discurso anticomunista foi fomentado pelas organizações familiares estaduais, seja no jornal A Ordem da Diocese de Natal, onde foi formulado pelos membros leigos e pelo clero norte-rio-grandense, percebemos que a construção do ideário anticomunista católico se fez em uma abordagem ampla que não faz apenas alusão à Revolução de 1917 e aos postulados do PCB, mas, sobretudo, à Revolução Francesa, se verificando sua formulação na oposição à modernidade, ao liberalismo, ao judaísmo, à maçonaria, ao Rotary e ao protestantismo.