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Olhares Cruzados

No documento Marcados Pelo Amor (páginas 149-155)

Anos atrás

Capítulo 39 Olhares Cruzados

Capítulo 39 – Olhares Cruzados

Era mais que um simples sarau, muito além de singelas apresentações, era o espaço e o momento perfeitos para que artistas conquistassem alguma oportunidade e fazendeiros poderosos usassem o dom de seus subordinados a fim de lucrarem como nunca antes conseguido. No salão de formato circular que tinha os assentos confortáveis dispostos em círculo, pessoas de diferentes regiões e até mesmo nações enchiam o local, todas com algo em comum: tinham poder, tinham riquezas e tinham gananciosas ambições. O lugar estava cheio. Repleto. Silencioso.

O espetáculo teve início com o posicionamento do maestro conhecido diante sua orquestra, era um sujeito de baixa estatura, cabelos compridos e face robusta, seus gestos eram ágeis, a batuta era uma antiga aliada de seus dedos. Fez o movimento de preparação. Os músicos posicionados ao centro do salão se alinharam como os corpos celestes se alinham no romper do eclipse. A música teve início.

Ao lado de seu marido, um dos homens mais poderosos que ali se fazia presente, Laís não se sentia confortável no ambiente de exibicionismos e bajulações, seus olhos vagueavam pelo lugar enquanto a mente se distanciava da realidade, era guiada pelas tantas preocupações, era levada a altitudes desconhecidas.

Mas a consciência retornou.

Ao cruzar de olhares já conhecidos.

Heitor, um homem que procurava manter boa relação até mesmo com aqueles cujos atos repudiava, foi gentilmente convidado a participar do evento que de tempo em tempo movimentava a província de São Pedro, não pensou duas vezes, não perderia a oportunidade de contemplar a face de sua amada, de respirar o mesmo ar que ela, mesmo que tal ação fosse perigosa, pudesse ser tida por loucura.

A música de pouco lhe importava, seus olhos estavam cravados na meiga mulher distante de si no comprimento do diâmetro entre ele e ela.

Estavam frente a frente.

A distância não evitou que as almas se excitassem.

Dominada pela eterna saudade que sentia por aquele que demasiadamente amava, a baronesa não pôde evitar o tímido sorriso ao vislumbrar o amante, seu peito se aqueceu, o coração se agitou, como quis naquele intenso momento ter o poder de encurtar as distâncias e tocar o rosto de seu grande amor.

Desde que fora ameaçado por não saber controlar uma paixão infindável, o nobre cavalheiro tentava esquecer a mulher a qual se lançara sem receio algum, tentava expulsá-la de sua alma, porém, quanto mais tentava vencer os próprios afetos, mais sucumbido a eles ficava, perdia a batalha, o fascínio avultava.

Frederico, um homem astutamente observador, repousou a mão pesada sobre o joelho da esposa, pressionou a região expondo que de sua percepção nada escapava,

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150 Capítulo 39 – Olhares Cruzados

levou os olhos severos à direção que enfeitiçara Laís, não foi capaz de descobrir quem ali estava, Heitor abaixou a cabeça, a aba do chapéu escondeu sua face.

— É ali — direcionou o rosto da mulher para o centro do salão —. É ali onde os músicos estão.

— Eu sei... — abaixou os olhos —. Ainda tenho plena visão.

— Se aprecia enxergar as paisagens à sua volta sugiro que se contente em ter olhos para o que determino, pode custar caro almejar outros horizontes, o preço de suas adoráveis íris!

Ao lado da mãe, fixando a atenção sobre os músicos que, atentos ao seu mestre, executavam cada nota das partituras que examinavam, Ana pensou em Artur, no dia que ao seu lado estaria diante o olhar de todo o mundo, no dia que a liberdade os abrasaria com força. Contudo, enquanto esse desejoso futuro não chegava, teria que se acalmar e se conformar com a presença de Pedro, o rapaz ao seu lado, alguém que, como ela, sentia-se sentenciado a um vindouro tormento.

Eram admirados por aqueles que os contemplavam.

Eram julgados como o casal perfeito pela sociedade estagnada em sua intolerante hipocrisia.

— Tocam perfeitamente bem... — o escritor por prazer, conformado pelo destino, tentou um diálogo, procuraria ao menos criar uma amizade, talvez os dias fossem mais suportáveis, com maior otimismo até mesmo o amor poderia nascer.

— Realizam um sonho, por isso todo o prazer exposto... — a donzela, acorrentada sentimentalmente a um rapaz que lhe despertava tantas inspirações, permitir-se-ia à conversa, quem sabe conseguisse mudar uma mente apavorada —. O prazer da realização... Será que um algum dia concretizaremos nossos verdadeiros sonhos?

Pedro, que também desejava por reviravoltas, retornou ao silêncio, não poderia ser conquistado por discursos rebeldes, não poderia ser incentivado por palavras de guerra, tinha pessoas a proteger, gente que já sofria, que poderia sofrer dores piores.

— Sabe quem eu amo? — Ana reconheceu tal mudez, era a quietude do medo, a angústia do desafiar, o receio de guerrear e fracassar, ao seu lado estava um aliado em potencial, guerrilheiro importante, só precisava despertar a coragem naquele espírito.

Encarou o semblante surpreso. Revelaria seu segredo —. Um escravo — em voz baixa, apenas para que entre eles a conversa fosse compreendida, a confissão aconteceu —. Sim, um escravo, ele é o amor da minha vida, por quem lutarei enquanto houver tempo!

O rapaz surpreso encarou os próprios dedos por alguns segundos, procurou pelas palavras certas, procurou forças para se abrir, mas faltou a valentia.

— Você não precisa aceitar o que pessoas arrogantes determinam, não precisa aceitar uma vida que não lhe pertence, ao contrário, tem todo o direito de ser quem verdadeiramente é, só precisa acreditar nesse poder — querendo convencer, disposta a conquistar o jovem moço com palavras amistosas, Ana enlaçou os dedos,

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151 Capítulo 39 – Olhares Cruzados

transmitiu segurança, gesto assistido pelo barão que sorriu satisfeito, não imaginava que o diálogo desenrolado dava volume à uma conspiração contra o seu reinado —.

Sei que ama ou que ainda amará alguém, mas essa pessoa não sou eu, nunca seria, meu coração já foi conquistado e não posso negar isso, é impossível, é inútil, causa dor...

— Se você soubesse o estrondo que meu segredo causaria se um dia revelado, se soubesse as tragédias que poderiam acontecer, não estaria me falando essas coisas, sentiria pena, sentiria pavor... — encarou o doce olhar da dama que o observava com cuidado, desejosa por auxiliá-lo —. Muito me espanta que não sinta esse mesmo assombro, nossas histórias em muito se assemelham!

— Não sinto medo, sinto amor... — sorriu gentilmente —. Disponha-se a lutar, não estará sozinho, tenha certeza disso!

Estava ansioso, entusiasmado, mal conseguia se conter aguardando que seu nome fosse anunciado no palco, para que, enfim, pudesse tocar diante a multidão que o assistiria. Suas mãos suavam, os olhos reluziam.

Foi apresentado ao público como João.

Mais um escravo que julgaram estar à venda.

Deslizou o arco sobre as cordas para verificar a afinação do instrumento, estava tudo perfeito, mas ficou ainda melhor quando seus olhos flagraram o sorridente semblante de Sara e o beijo a ele destinado, sentiu-se ainda mais confiante recebendo os olhares motivadores de Rute e Victor, aquele era o seu momento, a realização de um grande sonho, a concretização de antigos anseios.

Silêncio.

A melodia começou.

O adolescente que ao entrar causou murmúrios, agora era prestigiado por homens cobiçosos. O negro um dia silenciado, agora tinha todos os ouvidos voltados a si. Fechou os próprios olhos. Não precisava da regência que achou desengonçada.

Desprezou a partitura lhe apresentada, a música era algo que pertencia à sua alma, era o que respirava dia e noite.

Tocava bem.

O som gostoso emocionava.

Som cuja sutileza Ana reconheceu.

Reconheceu seu autor.

Continua...

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152 Capítulo 40 – Celebração

Capítulo 40 – Celebração

Aquele mesmo som, melodioso, sublime, capaz de emocionar, era o que soava na fazenda do barão de São Pedro, o que tornava os árduos dias de lida dos escravos um pouco mais suportáveis, o mesmo som que garantia paz e tranquilidade aos corações que sofriam por amar, que eram penalizados por desejarem o romantismo.

Ana, tocada pela música que encantava a todos os presentes, prestou maior atenção no violinista habilidoso, conhecia-o bem, soube reconhecer os traços que ele e Artur compartilhavam, confessou que o disfarce caíra bem, apenas queria saber como tiveram a proeza de esconder sua dificuldade no caminhar. Agradeceu aos céus, teria a chance de cumprir sua promessa, levaria a Artur uma grande notícia, algo que o alegraria, que traria conforto, que ofertaria sossego.

Frederico nunca apreciou o som de Felipe, nem mesmo dedicou algum tempo para ouvi-lo, não pôde identificar o escravo fugido, mas, imitando os gestos dos demais, aplaudiu aquele que sempre humilhou.

O jovem adolescente, finalizado sua apresentação, emocionou-se ao receber tantos aplausos, ao ser gratulado pelo maravilhoso dom que possuía, mas sabia de um triste fato: aplaudiam-no por respeito ao seu senhor, ao que supostamente o tinha por propriedade, com quem precisariam negociar se quisessem embelezar suas propriedades com um artista tão bom.

— O que achou? — o barão se dirigiu à esposa.

— É um grande violinista!

— Bastante jovem, se bem treinado melhorará ainda mais e garantirá às minhas festas o título de melhores por muito tempo — denunciou suas intenções —. Vamos levar! — quem resistiria às suas ofertas, quem recusaria negociar com um dos mais ricos sujeitos? Frederico estava convicto de que aquela peça já lhe pertencia.

Ao sair do palco, Felipe deixou a todos curiosos por saberem a quem ele pertencia, mas o tal senhor não se apresentou, por enquanto permanecia no anonimato.

Outros talentosos escravos se apresentaram, emocionaram e foram aplaudidos, quanto mais venerado fosse um artista, mais caro era o seu preço, mais cobiçado ele era, conquistá-lo não passava de um gesto egoísta, disputa entre grandezas.

O evento se encerrou após duas horas de duração.

As negociações começaram a acontecer.

Enojado pelo que acontecia, disposto a livrar Felipe de tais incômodos, Victor dirigiu-se aos bastidores do espetáculo, onde tantos artistas aguardaram pelo momento de suas apresentações, onde o adolescente esperava nervoso pela companhia de seu amigo.

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153 Capítulo 40 – Celebração

— Foi o melhor da noite! — discreto, mantendo as aparências, o nobre homem elogiou aquele que dependia da sua bravura, queria abraçá-lo, celebrar a conquista, mas olhos perversos existiam por todos os lados.

— Mas precisamos ir — o violinista falou com apreensão —. Meu antigo senhor está aqui, temo que me reconheça...

— Não há o que temer, ele está distraído! — Ana surgiu de repente assustando os companheiros que ansiavam por serem imperceptíveis no meio da multidão —.

Acalmem-se, um amigo está nos encobertando... Felipe, senti saudades!

Abraçaram-se emocionados.

Há muito tempo não se viam, gostavam um do outro, formavam uma família que era construída em oculto, uma família que se defendia e protegia.

— Não imagina o quanto estou feliz por ter presenciado a realização de um sonho, se eu pudesse sairia gritando o quanto me sinto orgulhosa por ter um amigo que tira lágrimas da plateia quando encosta em seu instrumento, você merece as melhores considerações!

— Já eu fico tão contente por vê-la aqui, comemorando uma importante conquista que fiz, sabe que outros em seu lugar não agiriam com o mesmo ímpeto...

Como me reconheceu?

— Você e seu irmão possuem semelhanças, a começar pelo coração que possuem.

— Como eles estão? — recordou-se de seus amados familiares, daqueles que o inspiraram a prosseguir na jornada —. Se soubessem a falta que fazem...

— Eles estão bem apesar de todos os infortúnios que conhece, mas se angustiaram quando souberam que você não chegara ao quilombo, essa saudade que oprime é sentida por eles também — revelou.

— Não tive a sorte de encontrar o quilombo, mas fui agraciado pela sorte de conhecer um grande amigo, alguém que me ajudou a tornar tudo isso possível:

Victor! — apontou ao parceiro.

— Não é capaz de imaginar o quanto é bom para mim descobrir que há mais um nobre ser humano lutando por aqueles que todos os dias são injustiçados, largados à própria sorte — Ana se virou ao guerrilheiro, agradecia-o pelo honrado gesto —. Esse garoto tem um grande valor na vida daqueles que tiveram o prazer de conhecê-lo, tudo que lhe desejamos é a eterna felicidade — lançou o sorriso radiante ao querido adolescente.

— Ele é mesmo especial, como tantos outros que esperam ansiosos pelo dia de sua liberdade — o Protetor não se julgava um herói ou alguém magnífico, achava apenas que fazia o que qualquer um deveria fazer, o que era aceitável ao verdadeiro ser humano fazer.

— Não deixe de dizer à minha mãe e ao meu irmão o quanto os amo, que estou bem e a cada dia mais feliz, e que sonho com nosso reencontro num lugar de regozijo!

— E ele acontecerá, acredite nisso em todos os amanheceres!

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154 Capítulo 40 – Celebração

Discreta, recompondo-se após a muita satisfação por ter descoberto o paradeiro de Felipe, Ana voltou ao encontro da mãe que a aguardava ansiosa por saber se o garoto era mesmo o antigo escravo, a baronesa se contentou com a revelação, desejava toda a dignidade ao povo negro.

Mãe e filha dirigiram-se ao encontro de Frederico que, embora no meio de amistoso diálogo com Victor e Egídio, movia os olhos em variadas direções no interesse de encontrar o violinista que tanta admiração causou. Precisava de tal aquisição, precisava manter os títulos que o engrandeciam.

— Vejo que já não há o que fazer aqui, podemos partir? — Laís sugeriu ao marido.

— É. Tem razão... — esticava o pescoço, mas nada de encontrar o tal músico —.

Rapazes — dirigiu-se aos companheiros —, até breve! — ergueu o chapéu que usava, virou-se de costas em hora inoportuna, flagrou a causa de suas ambições —. Você! — avançando por entre homens e mulheres, conteve Felipe pelo braço, trouxe seus olhos aos dele —. É você mesmo! — à sua dianteira duas mulheres se angustiaram.

— Algum problema? — Victor se colocou ao lado do músico, mostrou que era o presumido senhor.

— Pelo contrário, acredito que hoje será o dia de sua maior sorte! — o barão reconheceu a própria invasão, largou o violinista, tomou alguns centímetros de distância.

— E por que eu deveria ouvir isso? — Victor falava com firmeza, mostrava-se um sujeito sério, obstinado.

— Por esse negrinho darei a quantia que desejar, basta que dê os números — fez a oferta.

A atenção de pessoas próximas se voltaram à negociação, também queriam o mesmo violinista, mas não ousavam competir com o afortunado barão, perderiam.

Em um momento tão nefasto, Felipe voltou a se sentir como uma simples mercadoria, objeto que deveria garantir lucros a quem o possuísse, sentiu a dignidade conquistada ser lançada ao pó. Encarou seu amigo, gesto imitado por Sara e Rute, seguido por Laís e Ana.

— Importune outros, este não está a venda — Victor pegou o adolescente pelo braço e deu às costas.

— Não pode recusar à minha oferta — incrédulo, Frederico interrompeu os passos do Protetor com sua voz grave e impostora, atraiu seus olhos para si.

— Sou seu escravo? — Victor questionou com ousadia.

— Não... — o barão respondeu confuso.

— Então eu posso recusar a sua oferta.

Felipe seguiu livre.

O aglomerado se dissipou.

Além de perplexo, Frederico ficou exasperado, nunca negaram aos seus pedidos que soavam como ultimatos.

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