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Sentir-se Humano

No documento Marcados Pelo Amor (páginas 39-43)

20 anos depois

Capítulo 09 Sentir-se Humano

Capítulo 09 – Sentir-se Humano

Com a trágica, revoltante e inesperada morte dos pais pelas mãos de homens devassos e gananciosos, Victor se encheu de coragem e vontade por manter vivo o legado da família que amava, da qual herdara o nobre espírito, o coração disposto a cuidar, o sutil trato para com as pessoas sem repudiar quaisquer diferenças, repudiando apenas aquele que era possuído por perversão.

Viajou pelo país dominado por europeus, por homens brancos, ricos, que se achavam superiores pela cor da pele, pelo sangue que possuíam, pela origem que tinham. Homens miseráveis de alma. Apodrecidos em seus intentos. Dignos de pena por se permitirem a uma insana crueldade. Estalou-se no sudeste, na província de São Pedro, onde ninguém o reconheceria, o descobriria, onde também seu peito ardia pelas injustiças que aos olhos eram expostas.

Queria imitar os passos daqueles que tinha por heróis, queria cumprir a promessa que firmara com o pai em seus últimos minutos, mas não queria ser silenciado, não queria que a história se repetisse, não queria que mais uma vez os oprimidos perdessem alguém que se dispunha a libertá-los. Decidiu agir, lutar, confrontar os temidos, zombar da cara dos prepotentes, fazer-se mais forte que os poderosos, faria tudo isso sem nunca revelar o rosto. Não se sentiria um medroso, ao contrário, usava de uma valente estratégia.

E, então, cheio de sonhos e esperanças nasceu o Protetor.

Aquele que estendia a mão aos escravos fugidos.

Aquele que fazia o sonho da liberdade se transformar em algo real.

Desvestido do disfarce que o tornava lendário, montado em um jumentinho que parecia exausto dos anos de constante trabalho, Victor voltou à cidade, torceu para que o garoto a quem salvara tivesse lhe dado crédito, agradeceu ao vê-lo sentado num canto atendendo a recomendação do moço que trabalhava na hospedaria.

Sendo grato ao seu amigo, o guerreiro se sentou ao lado do adolescente ansioso, observou-o com piedade, viu no jovem um alguém indefeso, assustado, amedrontado pela vida, alguém que desejava apenas por um pouco de paz.

— Ele me contou que salvou alguém corajoso, que não se deixou intimidar pelas ameaças e tentou alcançar aquele que por certo é o seu maior objetivo, devo dizer que estou honrado por conhecer um jovem tão destemido — estendeu a mão —.

Chamo-me Victor, pode confiar em mim — simpático, exibia sorrisos, queria ser ao solitário o amigo que necessitava.

— Felipe — receoso, o garoto aceitou o cumprimento, sentia vontade de correr, avançar por entre as árvores o quanto pudesse, mas se lembrou que seria ridiculamente inútil, subestimava-se todos os dias por aquilo que chamava de defeito.

Marcados Pelo Amor escrito por Amilton Júnior

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40 Capítulo 09 – Sentir-se Humano

— Sabe, Felipe, que ninguém ouça o que vou dizer, mas o que acontece nesse mundo tão bruto me enoja constantemente, fico pensando o que passa em suas mentes, o que sentem seus corações... — não se incomodou pelo silêncio do jovem garoto, sua intenção era fazê-lo se sentir bem, livre de quaisquer imposições, livre de quaisquer regras, livre para ser quem era —. Eu sinto raiva, ódio e me sinto um covarde por não conseguir fazer nada para mudar isso, tudo o que eu queria era que houvesse justiça e que fôssemos vistos como iguais independente de cores, iguais porque somos humanos.

“Iguais porque somos humanos”.

A declaração tocou Felipe, mexeu em seu íntimo e fez nascer o desejo de que todos pensassem daquela forma, sua mãe não sofreria, seu irmão viveria o amor que quisesse, seu povo desfrutaria da doce liberdade.

— Sinto-me como um animal, ou até menos que um animal — quebrou o silêncio expondo seu profundo sentimento, aquilo que o afligia, que não saía de seus intentos, o mais indigno sentimento que um homem pode experimentar.

Naquele momento, sem esperar por algo tão forte e impactante, Victor sentiu o coração dilacerar, a alma se angustiar e o espírito se irar. Em seus quarenta anos de vida, vendo e ouvindo tantos absurdos cometidos de semelhantes contra semelhantes, o guerreiro nunca ouvira a resposta de um jovem, alguém tão novo, tão puro, a resposta que alimentou seu anseio por transformar toda uma sociedade adoecida.

— Nunca mais se sinta assim — empático, com a humanidade aflorada, Victor evitou as cerimônias, não se importou com estigmas, esqueceu-se até mesmo que gente maldosa pudesse flagrar sua ação, mas ofertou ao escravo acostumado com açoites e grosserias um afetuoso e carinhoso abraço.

Espantado com a atitude daquele que faziam parte do grupo dos opressores, Felipe se permitiu àquele momento no qual dois seres humanos permitiam que as almas se comunicassem, se tocassem, rompessem com as falas ignorantes de um povo intolerante. Quando foi que pensara que um branco o tocaria daquela forma? Se alguém lhe dissesse jamais acreditaria que um branco fora capaz de amar um negro.

Mas era o que vivia. Muito estimou a descoberta.

— O Protetor é um amigo querido, alguém que admiro, alguém que me enche de esperanças — Victor encarava seu ouvinte, estava emocionado, estava certo de que garantiria ao injustiçado a vida que de fato merecia —. Ele me pediu para que o protegesse, fosse seu parceiro, cuidasse de sua segurança e estou disposto a ser um grande amigo, alguém que estará ao seu lado sempre que precisar, mas não posso forçá-lo a isso, não posso lhe impor as minhas vontades, quero que aceite minha amizade.

Felipe, impressionado com o tratamento, lembrou-se de sua família, daqueles que jamais sairiam do seu coração, daqueles que queria salvar da escravidão. Sua decisão seria tomada pensando neles, por amor a eles.

— Se eu aceitar promete que me ajudará a resgatar minha mãe e meu irmão?

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41 Capítulo 09 – Sentir-se Humano

— Prometo que farei o possível para que possam se abraçar despreocupados quanto ao mundo, possam se amar livremente!

— Fico feliz por ganhar um amigo! — mais uma vez envolto no abraço amistoso, no abraço que subliminarmente rogava perdão pelos atos bárbaros cometidos em nome de inexplicáveis preconceitos, o adolescente agradeceu aos céus por estar se sentindo humano pela primeira vez, era uma experiência inestimável, queria que todos provassem dela.

¤ Vinte anos se passaram.

Vinte anos de completa escuridade, de dias nublados, acinzentados, dias que não tinham cor, não tinham emoção, não faziam sentido e nem davam expectativas, dias que passavam vagarosamente, dias de nula alegria, de nenhuma satisfação.

Encarando-se no espelho, pensando em quando se livraria da máscara que cobria parte do seu rosto, que escondia a cicatriz do dia que queimara a face ao revelar ao pai que estava grávida e este reagir rudemente, se é que poderia se livrar dela, Rute pensou também que a vida já não lhe dava razões para acreditar num futuro luminoso, cheio de realizações, no qual pudesse amar completamente e fosse amada infinitamente, um futuro que idealizou quando jovem, quando as coisas pareciam tão fáceis e prazerosas.

Por recomendação do pai, vestia-se de preto, suas roupas não tinham outra cor se não esta, precisava manter o título que carregava nas costas, a forma como era conhecida pelos arredores. Aquele que a expulsara de Portugal anunciou em terras brasileiras que a filha viúva precisava recomeçar em outro lugar, onde nada a remetia ao homem que amou, onde estivesse livre para voltar a sorrir.

Mas quem se interessaria por uma mulher tão sombria quanto ela? Quem se aproximaria de alguém cujo rosto precisava ocultar? Não se sentiu acolhida, antes provou do isolamento de uma sociedade que nunca soube lidar com aqueles que não atendem às suas egoístas expectativas, rendeu-se à solidão, vivia no casarão reclusa do mundo, escondida das pessoas, sendo chamada de Viúva Solitária, servindo de histórias assustadoras às crianças desobedientes e chacota às moças que ansiavam pelo matrimônio.

Passava os dias com os próprios pensamentos.

Vez ou outra observava a rua da janela de seu quarto que ficava no segundo andar.

Sua única companhia era a da criada.

— Dona Rute, sei que sua resposta não muda, mas eu jamais me cansarei de tentar tirar dos seus lábios o belo sorriso que sei que possui — Sara, a garota que trabalhava para a mulher descrente, tirou-a de seus devaneios —. O que acha de um passeio no jardim? Está um belo dia de sol lá fora, não deveria perder as graças da vida.

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42 Capítulo 09 – Sentir-se Humano

Encarando a garota tão jovem, Rute recordava-se de sua juventude, de suas esperanças, de seus desejos, da força que possuía, do quanto era bom ter o direito de sonhar.

— Com algumas pessoas a vida é injusta e o sol que nos oferta queima-nos até as raízes... — disse desconsolada.

— Será que algum dia poderá me contar o que aconteceu? Tenho-a como uma mãe, sabe disso, sabe que quero vê-la feliz... — aproximou-se de sua ama.

— Agradeço pelo seu apreço... — abraçou a adolescente —. Mas não se importe com minhas infelicidades, preocupe-se em ser o que não pude ser, em ser feliz! — depositou um beijo sobre os fios dourados, acariciou-os com ternura, queria chamá-la de filha, mas não podia, a única coisa lhe permitida era viver mentiras.

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