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AS POLÍTICAS DE PRESERVAÇÃO NAS INSTITUIÇÕES BRASILEIRAS A legitimação do serviço de proteção ao patrimônio histórico brasileiro, criado

durante o Estado Novo, em um período de exceção, “um arremedo do regime fascista italiano”50, de cunho eminentemente nacionalista, foi dado pela soma dos

intelectuais envolvidos no processo que embora modernistas na sua essência, buscavam uma afirmação da nacionalidade na tradição cultural, assim, para o governo constituído passava-se de um passado de conquistas e bravura para um estado moderno, consolidava-se a importância do momento vivido naquela década de 1930 de tantas transformações. Tradição e ruptura era a dicotomia intelectual vigente.

“Romper com os cânones estabelecidos – nas artes, na literatura e, um pouco mais tarde, na música e na arquitetura – e, ao mesmo tempo, buscar as raízes culturais

49 BURGARELLE, Rodrigo. Tombamento parcial permite venda de área. O Estado de São Paulo.

Caderno Metrópole, 22 de maio de 2010.

50 LOPEZ, Adriana e MOTA, Carlos Guilherme. História do Brasil: uma interpretação. São Paulo: Ed.

da cultura brasileira: esta foi a ideia, vinda de navio, na bagagem dos artistas que foram estudar na Europa, no início do século XX”.51

Com esse direcionamento, buscando as raízes da cultura brasileira, os intelectuais, dirigidos no SPHAN por Rodrigo de M. F. de Andrade e conduzidos entre a busca pelas raízes e balizados pelos ditames do modernismo liderados por Lúcio Costa, são estimulados a viajar por todo o país para inventariar o patrimônio brasileiro. São privilegiadas, nesse momento, as cidades mineiras, as ruínas das Missões Jesuítas, as casas Bandeiristas Paulistas, o Pelourinho na Bahia, Olinda em Pernambuco e alguns exemplares coloniais ligados aos ciclos econômicos do Brasil, principalmente ao ciclo do açúcar, do ouro e do café, ligando as fazendas do interior carioca e paulista. Pela extensão territorial brasileira, o SPHAN percebeu sua impotência em trabalhar todo o território e nas décadas subseqüentes valeu-se das estruturas estaduais para aprimorar seu inventário.

O foco do levantamento preliminar incluiu obras consideradas de valor excepcional. Duas equipes foram formadas nessa primeira fase: uma voltada para tratar da Conservação e Restauro e a outra para estudos e tombamento. Além dessas divisões organizacionais, havia as diretorias regionais: DF e Estado do Rio; Amazonas e Pará; Maranhão, Piauí e Ceará; Rio G. do Norte, Paraíba, Pernambuco e Alagoas; Bahia e Sergipe; São Paulo e Mato Grosso; Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul; Minas Gerais e Mato Grosso. As Delegacias Regionais deveriam propor o rol de bens a serem tombados e as divisões técnicas ficariam responsáveis pelos estudos e fundamentações necessárias.

É fácil perceber que nessa primeira fase, os bens patrimoniais de arquitetura mais recente, por exemplo, os exemplares de arquitetura eclética, nem foram sequer citados para compor a relação dos bens de valor excepcional do país. Por um lado, porque eram recentes e por outro não traziam a raiz colonial pesquisada. Foi apenas quando surgiram os órgãos estaduais de preservação que os bens de interesse e conotação regional, que não tinham suas construções ligadas ao período colonial é que passaram a ser considerados bens de valor artístico e histórico de grande significado para cada região onde estavam localizados. Posteriormente, alguns desses bens também foram considerados excepcionais para o próprio IPHAN. Como exemplo, destacamos a Estação da Luz que só em 1996 foi tombada pelo órgão federal e considerada excepcional como a mais importante construção em ferro da arquitetura brasileira.

Os instrumentos de preservação previstos pelo IPHAN quando da sua criação eram: o tombamento, a regulamentação, os registros e os inventários. Mas, para operacionalizar esse trabalho, foram definidas algumas prioridades, que deram sentido e ação ao órgão. Foram estabelecidas as diretrizes para os tombamentos, as regulamentações jurídicas para lidar com as restrições ao direito de propriedade; as áreas prioritárias dentro do vasto território brasileiro que deveria ser esquadrinhado para definir-se o que proteger; iniciou-se o inventário sistemático dos bens culturais, documentando e pesquisando todos os cenários encontrados, inclusive registrando o estado em que se encontrava cada bem ou conjunto de bens. E então, começou-se o registro do tombamento dos bens definidos, nos quatro livros

51 GONÇALVES, Cristiane Souza. Restauração Arquitetônica: a experiência do SPHAN em São

de Tombo que foram instituídos. Foi nesse descobrimento do país que se descortinou um Brasil histórico, repleto de contextos regionais e com culturas variadas de formação muitas vezes mais indígena e negra do que portuguesa e europeia.52

Além do inventário e do tombamento, que são instrumentos de proteção do patrimônio, ações de intervenção para contenção do processo de deterioração do patrimônio ora inventariado, foram necessárias. Algumas só de proteção, mas outras mais determinantes para a manutenção do bem, o que mostrou com mais clareza a postura técnica dos especialistas que foram reunidos no SPHAN. É consagrada a intervenção de Lúcio Costa nas Missões Jesuítas, com criação do Museu das Missões, uma obra contemporânea a conviver com as ruínas históricas, criando um espaço no mesmo local para preservar e expor o acervo encontrado nas escavações do conjunto. Não remover os vestígios das Missões do seu local, foi uma atitude que por si só valeu toda a intervenção ali realizada.

“Da visita de Lucio Costa a estas localidades, resultou o relatório que analisou vários assentamentos, tendo sido percorridos os “povos” de São Miguel, Santo Ângelo, São João Batista, São Lourenço, São Luís e São Nicolau. Em consequência do estado de seus remanescentes, o arquiteto sugeriu a concentração de todo o legado missioneiro em São Miguel, não apenas para torná-lo mais acessível, mas por ser este último o único que ainda apresentava interesse arquitetônico. Uma vez definidas as medidas de preservação, a serem realizadas mediante a consolidação das ruínas, cabia ainda proteger o rico acervo da imaginária religiosa e torná-lo acessível ao público, por meio da criação de um museu.”53

Luis Saia, engenheiro-arquiteto paulista, inicialmente assistente técnico de Mario de Andrade e que posteriormente veio a ocupar o cargo de Diretor da Regional de São Paulo, após a morte do mesmo, sempre teve uma conduta profissional voltada à preservação, lastreada em pesquisa e em registros documentais, pesquisando suas tipologias e decidindo criteriosamente pela intervenção documentada e embasada. Nessa fase heróica o SPHAN foi revolucionário e seu Diretor e técnicos determinados em mapear o conjunto do patrimônio histórico brasileiro e a adotar, sempre que preciso e dentro dos procedimentos mais adequadas tecnicamente, as posturas de salvaguarda apropriadas. Essa atitude estabeleceu respeitabilidade ao órgão e até uma áurea de relevância dessa atividade muito maior do que as atribuídas a outros setores públicos. Talvez pelo poder de atração e de manutenção de equipe tão qualificada, com posturas profissionais dedicas e apaixonadas fizeram com que preservar e restaurar fossem atividades revestidas de um “certo glamour” que enaltecem os profissionais que nesse contexto atuam até hoje.

A década de 1950 se caracteriza pelo desenvolvimentismo, eram os anos do crescimento industrial, do início da era do automóvel, das rodovias, os planos e a construção de Brasília, a arquitetura moderna imperava. Se bem os órgãos de preservação continuassem atuantes, o foco dos debates da questão nacional se

52 BORTOLOTO, Tais Branco. A forma urbana e a coisa pública na preservação do patrimônio:

espaço, política e sociedade na analise de dois sítios tombados: o caso do Marais, em Paris, e do Bexiga, em São Paulo. p. 26.

53 CARRILHO, Marcos José. A Transparência do Museu das Missões. Arquitextos, São Paulo,

volta com mais força para a visão de uma corrida para o futuro, que de certa maneira relegava o passado a um papel de âncora, mais do que de protagonista. Já nas décadas de 1960 e 70, os temas do patrimônio passam a ganhar em todo o mundo um maior status face aos encontros internacionais de especialistas promovidos pela UNESCO, que resultaram em 1964 na Carta de Veneza, voltou-se a valorizar as ações de preservação, mas nesse estágio, começaram a ser criados os conselhos e departamentos estaduais e municipais de patrimônio, que mudaram significativamente o papel do SPHAN, pois suas funções começaram a ser assumidas pelos novos órgãos estaduais. Essa mudança de direção foi muito importante para a expansão de medidas de preservação e a ampliação do patrimônio protegido, pois o conceito de excepcionalidade deixou de ser nacional e ganhou um caráter regional, incluindo-se nessa avaliação a representatividade do patrimônio para as comunidades locais.

Os critérios inicialmente definidos pelo SPHAN para determinar a necessidade de tombamento de um bem estavam ligados às suas origens, que envolviam as raízes culturais brasileiras, documentos do período colonial e as edificações que representavam os primeiros ciclos econômicos do Brasil. Com a criação, a partir dos anos 1970, de órgãos em outras esferas administrativas, e mesmo com a consolidação dos inventários nacionais que vinham sendo elaborados pelo órgão, esses critérios foram sendo reavaliados de maneira a incluir bens de representação regional. A preocupação em compreender os bens dentro de seu conjunto, e não mais isoladamente, levou à consolidação do conceito de “mancha” e entorno, ampliando também a seleção de bens passíveis de preservação. Após a Constituição de 1988, os critérios de preservação também foram ampliados para incluir os bens ambientais e aqueles ligados ao patrimônio imaterial.

Os órgãos regionais que foram se consolidando seguiram, a grosso modo, os passos do IPHAN (que assumiu a denominação de Instituto a partir de 1994), ou seja, identificando os bens de valor excepcional regional para registro e tombamento. Sempre que necessário, uma intervenção de proteção ou de restauração, essas medidas eram feitas dentro dos limites dos orçamentos do Estado. Como o estado sempre teve orçamentos muito restritos para obras de restauração, muito do patrimônio inventariado encontra-se comprometido, sendo mesmo que muitas edificações acabaram se perdendo, ou estão em ruínas.

A participação social nos processos de preservação

Atualmente a proposição para o tombamento de um bem ou conjunto frequentemente parte da sociedade, de grupos de moradores da região, de associações culturais, esportivas, religiosas, etc.; enfim, a sociedade organizada aprendeu a formular e mesmo a embasar essas reivindicações com estudos e documentos para então apresentar suas solicitações através de abaixo-assinados junto ao órgão de preservação afeto a área. Eventualmente, esse pedido é analisado pelos técnicos do departamento de preservação e se recomendado o tombamento vai para referendo ou aprovação do Conselho. E assim que é dado início a um processo de pedido de tombamento o bem passa para a tutela do Estado, ou seja, intervenções no edifício de qualquer natureza deverão ser submetidas a avaliação dos técnicos e aprovadas pelos respectivos Conselhos.

A partir das décadas de 1960 e 70 a orientação da UNESCO para a preservação dos sítios históricos, mobilizou e sensibilizou as sociedades locais no sentido de valorizarem os seus bens patrimoniais, tanto pela importância dada aos fatos de referência como para a garantia da qualidade ambiental vivida. Graças a valorização do ambiente de cada lugar, vê-se surgir um novo mercado interessado nesses mesmos documentos históricos, não é mais apenas as comunidades locais que estão preocupadas com a perpetuação de seus bens e a transmissão desses valores para as futuras gerações, mas é sim um novo contingente de público interessado em conhecer os aspectos diferenciais das cidades do mundo: é o turismo cultural que ganha força, pelas facilidades de deslocamento e pela globalização dos meios de produção que favorecem a circulação de bens, informações e pessoas.

Nesse contexto a política de preservação ganhou um novo agente aliado, os responsáveis pelo desenvolvimento do turismo passaram a também se preocupar com a preservação, buscando novos atrativos para esse mercado sempre sedento de novidades.

O patrimônio, além de ser referência para a comunidade de onde ele faz parte, passa a ser uma fonte de renda e de atrativo ao novo público, o turista. Como sede de um museu ou de um centro cultural, ou como cenário de uma cidade que oferece ampla oferta turística, o patrimônio da cidade precisa ser mantido, recontextualizado, inserido como oferta cultural, enfim trabalhado para uma nova inserção.

Dessa forma, as questões de preservação ficaram cada vez mais inseridas no conceito de revitalização e as circunstâncias de reutilização que são apresentadas, visto ter-se percebido que o patrimônio só representará algo útil à sociedade se viabilizada a sua integração à realidade que o circunscreve, permitindo que o tombamento possa significar proteção efetiva. O culto ao monumento passa a inserir-se na vida cotidiana e na contemporaneidade do modo de vida da sociedade moderna.

O refinamento da proposta memorial das ciências humanas determinou a expansão do campo cronológico de inserção dos monumentos históricos, através da expansão na tipologia e da expansão do público conquistada pela democratização do saber e pelo desenvolvimento da sociedade de lazer e pelo turismo cultural. O culto do patrimônio tornou-se parte integrante do culto à cultura e, a França foi o primeiro país a saber explorar esses diferenciais. A valorização do bem, além da restauração e da conservação, é obtida através de alguns procedimentos que passam a ser adotados para valorizar o edifício histórico e inseri-lo no mundo contemporâneo. Entre eles destaca-se: os efeitos especiais com iluminação e som ambiente, os espetáculos de luz e som - interferências que não permitem ao visitante dialogar diretamente, sem intérpretes, com o monumento -; ou a realização de animação cultural com grandes eventos, shows, apresentações de orquestras, óperas e outros grandes acontecimentos. Ou, ainda, o que hoje em dia é sistematicamente praticado, até por exigências da sociedade que usufrui e valoriza o bem patrimonial, a modernização das instalações com melhorias regeneradoras inseridas no bem que retrata o passado.54

O uso do edifício como cenário, para a publicidade ou mesmo como ambiente de consumo como o de uma livraria, ou boutique, ou restaurante, teatro, enfim uma série de novos usos, que muitas vezes é “ajambrado” para se adaptar ao bem promovido. A atenção à qualidade dessas intervenções e a forma como as adaptações são propostas merecem atenção especial e, neste momento, os órgãos de patrimônio que devem analisar os projetos de intervenção são chamados a usar todo o conhecimento adquirido nesses anos de formação para coibir os abusos, mas acima de tudo, orientar as intervenções, dentro dos princípios técnicos adequados à natureza e à tipologia da edificação e de seu entorno.

Neste ponto entra-se numa questão crucial da discussão deste trabalho que envolve a reutilização do bem histórico, que cada vez mais, contextualizado dentro de uma perspectiva de inserção em uma sociedade moderna que almeja conforto, novas informações, e novas tecnologias, mas que pode também se servir do passado, não só como bem reduzido ao consumo, mas também como elemento de formação cultural.

A utilização dos edifícios de valor histórico só permite sua utilização regular pela consolidação, restauração e reforma que muitas vezes acarretam desfigurações essenciais à sua reconversão com adaptações às exigências dos tempos modernos a, por exemplo, funções culturais (museu, biblioteca, escola, universidade, instituições e fundações), ou utilitárias e de prestigio (ministérios, hotéis, sedes sociais), ou mesmo comuns (escritórios, moradia, comércio). Com é sabido, os trabalhos de infraestrutura têm custos significativos, dificultando a garantia de que a reutilização será viável, o que em geral, só se consegue em prejuízo da funcionalidade, ou com grandes investimentos. Daí a importância das leis de incentivo à cultura que nessas circunstâncias podem viabilizar recursos para realização de grandes intervenções voltadas efetivamente a preservar os testemunhos da história. Esse pode ser o percurso a ser trilhado.

6. INTERVENÇÕES SOBRE LUGARES: REFLEXÕES, DEBATES E EXEMPLOS