• Nenhum resultado encontrado

2. Submersão demorada no contexto: Moldura Metodológica

2.4. Do desenho do estudo

2.4.1. Primeiro momento: esboço inicial

a) Autoquestionamento e decisão de ação

Ao iniciar este mergulho investigativo “a primeira etapa do percurso de construção de um projeto de investigação é constituída pela própria experiência e vivência pessoal e profissional do investigador” (Afonso, 2014, p.48). Desta feita, os oito anos consecutivos de vida em Angola legaram na investigadora um tal desassossego que se materializou

num constante autoquestionamento que se foi agudizando e consolidando em contexto angolano.

O contacto permanente com crianças provindas de meios socioeconómicos distintos, quer as crianças de um colégio privado de topo (onde foi professora) com acesso a tudo, quer as crianças que nada têm, residentes nos musseques109 da periferia da cidade capital (onde

foi voluntária), foi decisivo para que a investigadora constatasse as diferenças abismais da realidade social e educacional a que estas crianças são sujeitas. Foram sendo assim elaboradas questões relacionadas à forma como o futuro de Angola está a ser moldado. O questionamento, paulatinamente, com o passar dos anos avolumava-se e envolvia constatações relacionadas com determinadas temáticas, como: (1) as necessidades sociais que estas crianças tinham de ambas as partes (por um lado, a falta de bens materiais e por outro emocionais); (2) a capacidade e criatividade dos sujeitos locais em encontrar respostas às suas necessidades; (3) o trabalho de improviso e informal tão característico destes cidadãos; (4) a existência de redes de apoio familiares e/ou de tradições de interajuda/cooperação entre amigos, vizinhos, colegas de trabalho (como é o caso do sistema da kixikila110) que acabam por contribuir para a resolução de algumas dessas

necessidades; (5) a existência do significado alargado que o conceito de família assume em Angola, admirando a capacidade que os angolanos têm em lidar com isso, organizando as suas vidas com este conceito por bússola; (6) as diminutas competências relacionadas com o saber ler e escrever que um número alargado de cidadãos apresenta e que, por vezes, os impedem de melhorar esse apoio fulcral à sua família e consequentemente, de se autorrealizarem; (7) entre outras, a presença ou ausência de políticas governamentais sociais que atentem tais necessidades, essencialmente, as de educação de adultos, uma vez que, atuando na educação dos pais poder-se-ia influenciar os resultados na educação das respetivas crianças.

109 Os musseques de Luanda são assentamentos de carácter informal localizados maioritariamente nas áreas

peri-urbanas da cidade, são a representação física da segregação social no espaço urbano desta cidade capital de Angola (Bettencourt, 2011).

110 O sistema da kixiquila é uma associação de poupança e crédito rotativo, em inglês Rotating Saving and

Credit Association, ROSCA é o acrónimo pelo qual é referida na literatura económica. É utilizada num contexto informal em diversos países e continentes. É feita pelas pessoas, através da livre associação, pela criação de grupos de auto-ajuda financeira. Contribui para processos de combate à pobreza, de entreajuda e de desenvolvimento local, numa lógica “de baixo para cima”, centrados nas pessoas, reforçando a comunidade e promovendo o empowerment das pessoas. Este trabalho, baseado num contexto angolano, tem como relação-chave a kixikila e o desenvolvimento (Costa, 2011).

Mais tarde, os dois anos a co-coordenar projetos de educação no âmbito da cooperação oficial portuguesa, com a Guiné-Bissau, permitiram a investigadora tomar conhecimento de uma outra realidade, tanto a nível do contexto africano como a nível de atuação na área da cooperação para o desenvolvimento. Ao longo do seu trabalho, de conceptualização, de reflexão, de mediação, de resposta diária e por vezes imediata, a investigadora ia formulando questões relativas a temáticas como: (1) as diferentes visões subjacentes a uma iniciativa de CD; (2) os benefícios e não benefícios que uma estratégia de cooperação internacional bilateral traria para um país; a concretização do diálogo entre os parceiros e interesses subjacentes a ambas as partes; (3) a elaboração dos instrumentos técnicos, documentos oficiais e estatísticas internas; (4) como é que se conseguia passar da teoria (se é que se passava) para a prática e o que é que tais projetos deixavam realmente no terreno; (5) como é que os agentes locais quer políticos quer sociais eram envolvidos nas atividades, se é que eram envolvidos ou questionados. A investigadora atenta a estes contextos e ações e permanentemente, a tentar compreender/apreender tais temáticas encontrou aqui um meio propício para iniciar o seu questionamento científico.

O primeiro passo deste processo foi o esboçar de uma hipótese preliminar do que poderia estar a acontecer no terreno, relacionada com estas áreas de trabalho, sendo ela: os dados estatísticos fornecidos pelos países em desenvolvimento às entidades internacionais são determinados por um percurso/processo peculiar que, por vezes, não lhes confere a legitimidade suposta.

Posto isto, seria interessante cruzar estas duas áreas e direcionar o questionamento no sentido de entender/perceber que práticas de cooperação para o desenvolvimento poderiam existir passíveis de serem investigadas acontecer no local. Que práticas seriam identificadas, que resultados seriam evidentes no terreno, como seriam monitorizadas, que intervenientes e políticas as legitimariam, entre outros fatores, como é que os resultados estariam a ser levados ao nível nacional e internacional. Seria, portanto, interessante identificar a prática de uma forma bottom-up.

Desde logo, se entendeu que estas realidades só poderiam ser estudadas à luz de uma “teoria enraizada [que] dá preferência aos dados e ao campo de estudos, relativamente aos pressupostos teóricos. Estes não são aplicados à questão estudada, mas antes descobertos e formulados, ao tratar do campo e dos dados empíricos que nele se irão encontrar” (Flick, 2005, p. 42). A seleção dos sujeitos da investigação, à luz desta teoria, foi realizada de acordo com a sua importância para o tema de estudo, mais do que

propriamente pela sua representatividade, o que contribuiu para o clarificar da complexidade do tema em causa. Os métodos foram adequados a esta teoria (já esclarecidos anteriormente) e houve uma “suspensão do conhecimento teórico à priori que o investigador (…) [trouxe] para o terreno” (Flick, 2005, p.42) até que a questão de investigação fosse completamente estruturada pelos próprios sujeitos de investigação. Desta feita, mergulhou-se no terreno apenas com curiosidade de saber mais sobre o objeto de estudo e com algumas questões gerais para responder.

No âmbito de uma teoria enraizada, a circularidade que caracteriza a distribuição dos momentos do modelo de investigação é uma característica fundamental desta abordagem. E para além dos problemas que possa representar em certos momentos, por exemplo, no que refere a estudos que procurem financiamento ou na avaliação do projeto com indicadores tradicionais, esta caraterística apresenta-se neste estudo como uma mais- valia, pois permite ao investigador “uma reflexão permanente sobre o processo de investigação, no seu conjunto e sobre a interligação de cada um dos passos com os outros – pelo menos quando é coerentemente interpretada” (Flick, 2005, p.44).

b) Objeto de estudo (1º andamento)

Angola, um país em desenvolvimento, tem realizado um percurso único, não só a nível económico - com um crescimento que se destaca no continente africano, mas também a nível social - apostando na unidade e coesão nacional e num clima de paz, embora tenha pela frente muito trabalho a realizar. Isto porque e no que respeita à educação e desenvolvimento, Angola é um país influenciado por um passado conflituoso que deixou profundas marcas nas suas crianças e jovens ao abstê-los de frequentar a escola. Hoje o país possui adultos em idade ativa que nem sequer sabem escrever o próprio nome, possui mulheres que não sabem ler e escrever, mas com vontade de apreender para mais tarde ensinar os seus filhos e/ou netos. O país possui cidadãos que não sabem ler e escrever o suficiente para conseguirem um emprego de forma a sustentar a família, ou por exemplo, ser capaz de receber uma formação profissional para progredir na profissão e passar a auferir um maior salário. Tal contexto é também caracterizado por um índice de pobreza elevado 37% (INE, 2015) da população para o qual contribuem as consequências do analfabetismo. Esta realidade cívica enquadra-se atualmente, numa conjuntura económica em crise, quer nacional quer internacional, o que tem dificultado a atribuição de fundos para ajuda ao desenvolvimento que possam colmatar tais dificuldades.

A nível internacional, o ano de 2015 foi um ano fundamental no que refere a políticas internacionais, pois factos como: a conclusão e avaliação dos Objetivos do Desenvolvimento do Milénio (ODM), a definição dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), sua implementação, futura monitorização e a definição da nova agenda para o desenvolvimento, onde as empresas são chamadas a intervir, consideradas como novos atores do desenvolvimento, contribuíram para uma mudança na arquitetura da cooperação internacional. É esta a época em que se colocam em causa formas tradicionais de cooperação entre o Norte e o Sul onde, respetivamente, se encontram os países desenvolvidos e países em desenvolvimento, uma vez que estas já não têm o mesmo impacto que tiveram em anos anteriores. Já não se enuncia a eficácia da ajuda ao desenvolvimento, mas sim a eficácia do próprio desenvolvimento onde todas as instituições têm um papel importante a desempenhar, entre outros: atores estatais e não estatais, cooperação entre países com diferentes estágios de desenvolvimento, novas estratégias alternativas de ação, cooperação sul-sul e/ou cooperação triangular e novas formas de parcerias público-privadas para o desenvolvimento.

Face ao contexto global e à conjuntura nacional, o governo angolano continua a apostar nas relações de cooperação internacional, tal como refere o PND (2013-2017). Perante este cenário e vendo-se com a necessidade de responder aos compromissos internacionais, nomeadamente, no âmbito da educação de adultos - alfabetização, a tutela optou por implementar em 2012 um dos seus programas nacionais (PAAE) já com resultados demonstrados. Estes resultados foram possíveis, graças a diferentes estratégias de cooperação estabelecidas neste âmbito, nomeadamente, as estratégias de parceria entre o Estado e estes novos atores do desenvolvimento – as empresas.

Assim sendo o nosso objeto de estudo coincide com esta forma de cooperação, materializada nas parcerias que o governo estabelece com a sociedade civil de forma a concretizar o PAAE, nomeadamente, as parcerias entre o governo e uma ONG, entre o governo e instituições religiosas e entre o governo e o setor privado, com especial atenção para as empresas.

Estes três tipos de parceiros do Estado foram selecionados de acordo com dois critérios a considerar, tais como (1) organizações que não fossem instituições públicas ou de carácter político e (2) que possibilitassem o confronto entre os discursos (como dizem fazer) e a ação (como se evidencia fazer). Seria pertinente analisar os discursos proferidos pelos agentes de desenvolvimento, recentemente, considerados como os novos agentes

do desenvolvimento - as empresas e contrapor essa informação perante os discursos e a ação dos agentes de desenvolvimento mais tradicionais como são os casos das ONG e das instituições religiosas.