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C RISE DA D IVISÃO T RADICIONAL ENTRE P ROPRIEDADE I NDUSTRIAL E A RTÍSTICA

1.6. A SPECTOS C ONCEITUAIS DA P ROPRIEDADE I NTELECTUAL

1.6.2. C RISE DA D IVISÃO T RADICIONAL ENTRE P ROPRIEDADE I NDUSTRIAL E A RTÍSTICA

Como estudado acima, o Direito Autoral tutela a forma de expressão, e não as ideias em si. Porém, esta linha demarcatória entre Propriedade Industrial e Manifestação Artística nem sempre é muito clara.

Basta observar que, no Brasil, o software – que está muito mais relacionado à indústria do que a uma forma de expressão artística – é tutelado pelo direito do autor. A suposta razão apontada para proteger os softwares sob o manto da proteção conferida aos autores é a de que o software consistiria em linguagem de programação, criptografada.

No entanto, DÊNIS BORGES BARBOSA retrata, com riqueza de detalhes, as pressões

políticas internacionais que marcaram a adesão do Brasil à proteção autoral do software139. Do ponto de vista prático, a proteção autoral acarreta duas consequências. A primeira delas, já abordada, refere-se ao extenso prazo de duração da proteção (cinquenta anos). A segunda refere-se ao fato de que, ao contrário das patentes, não há divulgação da informação ao público. Em outras palavras, os proprietários de softwares não são obrigados a conceder livre acesso ao código-fonte dos programas140.

No início do mercado de softwares, as empresas normalmente facultavam o livre acesso ao código-fonte, pois isso tornava seus sistemas mais atrativos aos consumidores. A tendência do mercado era a venda de hardwares, e não softwares.

cópia servil, que é indigna de proteção”. (BARBOSA, Dênis Borges, “Introdução à Propriedade Intelectual”, pg. 786)

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“No meio do mais quente da discussão jurisprudencial a lei foi fruto de uma definição política pelo internacionalismo; alinhando-se com o disposto no Trade Act de 1974, o CONIN, em sua reunião de 26 de agosto de 1986, havia se manifestado pelo direito autoral como meio de proteger o software, em voto unânime dos representantes da União, contra a tendência de escolher outro regime de proteção”. (...)O episódio, em toda sua robustez anedótica, merece ser narrado aqui. Um dia antes o autor, juntamente com um ilustre servidor do Itamarati, posteriormente Ministro das Relações Exteriores, haviam participado de um seminário nacional sobre a questão, afirmando ambos que a adoção de um regime específico para o software era a solução acertada para o país. De volta a Brasília, o autor reunira-se com o Ministro da Indústria e Comércio, de quem era assessor junto ao CONIN, para aconselhar o voto, na reunião da manhã seguinte, pelo tertius genus - nem direito autoral, nem patente, ao que o ministro concordou. Na solene sessão da manhã de 26 de agosto, doze Ministros de Estado presentes, surge um ajudante de ordens do Presidente da República, com documento sigiloso, que repassa, sem entregar, a cada um dos titulares, no instante exato da votação. Ao iniciar-se a tomada de votos, o Ministro da Indústria e Comércio, para a surpresa absoluta do autor e dos representantes da empresa privada nacional, pronunciou-se pela adoção do direito autoral - o que resultou na Lei 7.646/87”.

140 “Source COde: Computer programs or operating systems are originally written by a human being in a

programming language. This is called the source code of the softwar. To be actually used by a computer, the program has to be translated by the computer from source code into the machine language that the computer understands and can execute. This translation process is referred to as compiling” (http://iet.ucdavis.edu/glossary.cfm)

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O crescimento da importância econômica do software levou a que grupos de pressão exigissem a proteção autoral141.

RONALD J. MANN ressalta que este movimento ocorreu em meados da década de 1960, devido à crescente complexidade dos softwares e a escassez de mão-de-obra para que cada empresa fizesse seu próprio software.

Coube à IBM, em 1968, a radical decisão de separar os seus softwares de seus hardwares. A época, os Estados Unidos possuíam cerca de 1800 empresas produtoras de softwares142.

De todo modo, a questão de inclusão dos softwares na proteção autoral serve para demonstrar que as diferenças entre Propriedade Industrial e Propriedade Artística e Literária, outrora firmes, já não são tão estanques.

Esse movimento, no entanto, não é novo.

Desde a segunda metade do Século XIX e ao longo de todo o Século XX, ocorrem mudanças de paradigma importantes nas ciências naturais143.

Também no campo da arte, a partir de novos conceitos propostos primeira escola de design (a Staatliches Bauhauss, de WALTER GROPIUS, na Alemanha) nas primeiras décadas

do Século XX, há uma importante mudança de paradigma, passando a produção artística a

141 PAMELA SAMUELSON afirma que “IBM, for example, initially published interface specifications and

provided customers with source code to make its computer systems more attractive to those customers” (The

strange odyssey of software interfaces and intellectual property law, UC Berkeley Public Law Research Paper n.º 1.323.818, 2008, disponível em http://ssrn.com/abstract=1323818 p. 4).

142 “The industry is young. It generally is regarded as originating in the mid-1960s. The concept of the

software product—a product designed by firm A and sold to firm B for use on firm B’s computer—first originated because of the increasing complexity of software and a shortage of the labor needed for each hardware firm to make its own software. The most crucial event was IBM’s decision in late 1968 to “unbundle” its software from its hardware. Sales of software products grew rapidly throughout the 1970s. By the 1980s, the United States had a large and well-developed corporate software products industry with more than 1,800 firms.” (MANN, Ronald J., “Do Patents Facilitate Financing in the Software Industry?, In Texas law review”, Vol. 83, n.º 4, 2005, p. 968).

143 “Em seu livro, “A Teia da Vida”, F

RITJOF CAPRA argumenta que a ciência contemporânea estaria passando de uma mudança de paradigma, de uma visão de mundo mecanicista, associada ao pensamento de NEWTON e DESCARTES, para uma visão holística ou ecológica. Para ele, esta mudança já teria inclusive transbordado do âmbito das ciências para o campo dos valores e práticas sociais, constituindo-se numa verdadeira transição de paradigmas sociais. Sua origem estaria na percepção de que os problemas com os quais nos deparamos nos últimos anos não podem ser compreendidos de modo habitual, tomados isoladamente de seu contexto mais amplo: “São problemas sistêmicos, o que significa que estão interligados e são interdependentes. Segundo o mesmo autor, essa mudança de paradigmas seria perceptível em várias disciplinas científicas, mas não ocorreria no mesmo ritmo e da mesma maneira em cada uma delas. Ela corresponderia à passagem para um pensamento sistêmico, que teria começado a ocorrer a partir dos anos 20 na biologia e, depois, em outras áreas. A noção do mundo concebido como uma máquina, um mecanismo, estaria dando lugar a um modo de pensar em termos de relações, conexões, contexto [Capra, 1998: 33-45]”.

(GAMA CERQUEIRA, Hugo E. da Gama , A Economia Evolucionista: Um Capítulo Sistêmico da Teoria Econômica”, Belo Horizonte, UFMG/Cedeplar, 2000, disponível em http://web.cedeplar.ufmg.br/cedeplar/site/pesquisas/td/TD%20150.pdf)

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ser direcionada também para produção em massa (movimento que, ao fim e ao cabo, implicará em uma incorporação da arte pela indústria)144.

Tais importantes transformações contribuem em muito para uma maior diluição das fronteiras baseadas em divisões conceituais típicas do Século XIX. Essas mudanças de paradigmas têm um óbvio impacto nos conceitos das espécies de direitos albergados pela Propriedade Intelectual.

Com CLÁUDIO R. BARBOSA constatamos que, “atualmente, percebe-se que o

desenvolvimento das novas atividades empresariais, científicas e culturais torna o quadro anterior inteiramente defasado, em espaços muito curtos, deixando sem sentido a classificação por ramos dos “direitos de propriedade intelectual”. Não é preciso muito esforço para entender que uma nova percepção da realidade modificou completamente a consistência do quadro anterior, que ora pode ser organizado pela função da proteção de cada instituto”.

O autor propõe, então, um novo quadro, como segue:

Direitos de Propriedade Intelectual Instrumentos de Proteção Requisitos

Sinais Distintivos

Marcas Sinais que identifiquem bens e serviços Indicações Geográficas Sinais que identificam bens

Criações Industriais

Patentes Novidade, Atividade Inventiva, Aplicação Industrial Modelos de Utilidade Novidade, Ato Inventivo, Aplicação Industrial Segredos Empresariais Informações Comerciais e ou Industriais Confidenciais

Desenho Industrial Novidade, Caráter Ornamental, Aplicação Industrial Programas de Computador Registrados como Direitos de Autor

Propriedade Literária e Artística

Direito de Autor e Direitos

Conexos Obras Criativas e Originais Base de Dados Obras Criativas e Originais, Investimento na

Organização

144 A Escola, fundada pelo arquiteto W

ALTER GROPIUS em 1919, baseava-se em uma crítica à separação entre os processos criativos e produtivos, a qual havia sido imposta pela revolução industrial. Durante a época em que HANNES MEYER era diretor da Bauhauss, a escola travou diálogo com o Círculo de Vienna, por meio de um ciclo de palestras de OTTO NEURATH, HERBERT FEIGL e RUDOLF CARNAP, em 1929 – este último, um amigo pessoal de Meyer, ambos tendo sido influenciados pela Neue Sachlichkeit (Nova Objetividade Alemã). Como influências do Círculo de Viena, destacamos a crítica à filosofia metafísica (implicitamente, criticava- se HEIDEGGER, e sua visão existencialista fenomenológica, calcada na divisão entre o “ser” e o “ser no mundo”, entre “intelecto e vida”, entre “estética” e “função” – contrastar com em contraste com WITTGENSTEIN, o filósofo que “would bring words back from their metaphysical to they everyday use [PI§116]”), o que foi de encontro ao ideal da Bauhauss de promover uma maior proximidade entre arquitetura e ciência. Uma citação da palestra de CARNAP sobre “Ciência e Vida” exprime o espírito proposto: “I work in Science, you work in the creation of (visual) forms; both are just parties of one single

life”. (HANS-JOACHIM dahms, Neue Sachlichkeit in the Architecture and Philosophy of the 1920’s) e EDWARD

MINAR, “Heidegger, Wittgenstein and Skepticism”, (http://www.harvardphilosophy.com/issues/2001/Minar.pdf).

67 Proteção Sui Generis

Conhecimentos Tradicionais Conhecimento sistematizado e utilidade Direito de Cultivares Espécies com Descritores Estáveis

Circuitos Integrados Layout (Tridimensional) Original Ainda conforme CLÁUDIO R.BARBOSA:

“O quadro acima, especialmente pela ausência de bordas definidas entre as áreas, reflete de forma explícita a situação conhecida pela doutrina de que a propriedade intelectual encontra- se em grande e inequívoca mutação. Aliás, não se refere somente à falência da dicotomia entre a área civil e a comercial. Refere-se ainda ao surgimento de diversas novas espécies de bens intelectuais, e respectivos instrumentos de proteção. Estes novos objetos de proteção correspondem a um fenômeno que acompanha as modificações e evoluções dos produtos e serviços colocados em comércio, das empresas atuantes no cenário internacional, e como resultado, culmina na necessidade de criação de novas proteções “sui generis.A proteção das marcas tridimensionais, por exemplo, confunde-se com os desenhos industriais e com a proteção do direito autoral. As proteções às criações industriais na área de programas de computador implicam em conflitos com direitos autorais e patentes de invenção. A própria divisão entre o que é arte, o que é indústria, o que é orgânico, e inorgânico, o que é genética e o que é mero desenho de novas moléculas acaba cada vex mais se perdendo. Obviamente, os institutos jurídicos que deveriam proteger estas criações acabam também com suas fronteiras dissolvidas. Enfim, as modificações tecnológicas que presenciamos não nos autorizam a admitir que institutos jurídicos moldados no século XIX possam, perfeitamente, regulamentar toda a situação lançada pela constante evolução tecnológica”.

1.6.3. CONCLUSÃO SOBRE AS ESPÉCIES DE PROPRIEDADE INTELECTUAL. DELIMITAÇÃO