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RESULTADOS PISA 2018

4.3 A Educação Financeira frente aos conteúdos de matemática nos documentos curriculares oficiais

4.3.1 A Estratégia Nacional de Educação Financeira (ENEF)

O Comitê de Regulação e Fiscalização dos Mercados Financeiro de Capitais, de Seguros, de Previdência e Capitalização (COROMEC), que reúne quatro reguladores do Sistema Financeiro Nacional, quais sejam Banco Central do Brasil (BCN), Comissão de Valores Mobiliários (CVM), Superintendência Nacional de Previdência Complementar (PREVIC) e Superintendência de Seguros Privados (PREVIC), constituiu em 2007 o grupo de trabalho do COREMEC, com o objetivo de propor a Estratégia Nacional de Educação Financeira (ENEF). No dia 22 de dezembro de 2010, o Decreto Presidencial nº 7.397 estabeleceu formalmente a ENEF e, concomitantemente, criou o Comitê Nacional de Educação Financeira (CONEF) para definir planos, programas, ações e coordenar a implementação da ENEF.

A implementação dessa proposta no cenário nacional não teve o êxito esperado na sociedade, principalmente, porque escola e professores não foram incluídos no processo de implementação da ENEF e os currículos dos anos iniciais e finais do ensino fundamental e do ensino médio tão pouco sofreram transformações para inserir a educação financeira no contexto escolar.

A seguir, discutiremos com mais profundidade sobre os avanços e descompassos da 111 ENEF para a educação básica

A ENEF faz parte do processo de construção histórica da educação financeira no Brasil.

Ela tem contribuído para que pesquisadores em Educação Matemática venham a pensar e ressignificar a educação financeira para o contexto escolar, ampliando os olhares sobre as questões financeiras e incorporando novas perspectivas para a formação do cidadão- consumidor ético, responsável e consciente de suas atitudes na sociedade de consumo.

De acordo com o documento elaborado para explicar a implementação da ENEF, destacamos sua inspiração no conceito de educação financeira definido pela OCDE em 2005 e, ainda, sua menção de que está adaptado à realidade brasileira, conforme citação a seguir:

o processo mediante o qual os indivíduos e as sociedades melhoram sua compreensão dos conceitos e dos produtos financeiros, de maneira que, com informação, formação e orientação claras, adquiram os valores e as competências necessários para se tornarem conscientes das oportunidades e dos riscos neles envolvidos e, então, façam escolhas bem informados, saibam onde procurar ajuda, adotem outras ações que melhorem o seu bem-estar, contribuindo, assim, de modo consistente para formação de indivíduos e sociedades responsáveis, comprometidos com o futuro (BRASIL, 2013, p. 3, grifo nosso).

O que fica evidente nesta conceituação é o ponto central que destacamos, qual seja

“produtos financeiros” e, então, a preocupação de formar cidadãos com o propósito de serem consumidores ativos e fiéis das instituições financeiras, que consigam honrar seus pagamentos, sem colocar em risco o sistema de crédito.

Não discordamos com a importante necessidade de educar financeiramente os cidadãos largamente, mas ressaltamos que a educação financeira precisa de um alcance bem maior em relação ao documento “Orientação para a Educação Financeira nas Escolas” (Planejamento, financeiro, economia, serviços financeiros, crédito e juros, investimentos, previdência social, seguros, capitalização, e proteção e defesa do consumidor). Concordamos com Kistemann Jr.

(2020) ao destacar que

[...] a necessária implantação de ações sociais e pedagógicas de Educação Financeira que transcenda as diretrizes instrumentais, quais sejam de preparar estudantes para a realização de testes como o PISA para a geração de índices que traduzam o grau de literacia desses estudantes (KISTEMANN JR., 2020, p. 42).

Por isso, é nosso interesse analisar cenários que promovam a discussão em relação às desigualdades sociais e de gênero, que discutam o consumo ético e responsável em relação ao

meio ambiente e que promovam a disseminação da verdade, contra o falso e vantajoso para 112 benefício de minorias.

Desta forma, buscando a implementação da ENEF nos espaços escolares, foi criado o Grupo de Apoio Pedagógico (GAP), também estabelecido pelo decreto nº 7.397 e presidido pelo Ministério da Educação e Cultura (MEC), com o objetivo de fornecer orientação pedagógica a todas as ações da ENEF.

Neste sentido, coube ao GAP-MEC a deliberação consultiva de avaliar e validar todo o material didático utilizado e difundido pelo Programa Educação Financeira nas Escolas. A gestão desses programas ficou sob a responsabilidade da Associação de Educação Financeira do Brasil (AEF-Brasil), também responsável pela captação de fundos para os projetos da ENEF e o desenvolvimento de conteúdos e tecnologias sociais direcionados ao público em geral.

De acordo com o guia de implementação da ENEF, no Portal do MEC, a parceria entre CONEF e AEF-Brasil, além de coordenar programas da ENEF, estabeleceram como critério que, em um primeiro momento, a educação financeira fosse disseminada nas escolas de nível fundamental e médio, visando o alcance de professores e alunos; em um segundo, mulheres assistidas pela Bolsa Família; e, por último, o grupo dos aposentados.

Inicialmente foi desenhado o modelo pedagógico de Educação Financeira nas escolas para estudantes de ensino médio, para oferecer a esse público informações e diretrizes:

(i) para construir um pensamento financeiro sólido, e (ii) desenvolver comportamentos autônomos e saudáveis, permitindo que eles sejam os protagonistas de sua própria história, com total capacidade de decidir e planejar para o que eles querem para si mesmos, suas famílias e os grupos sociais aos quais pertencem (BRASIL, 2013, p. 12).

Evidentemente, não discordamos dessas orientações, mas sugerimos que, para

“construir um pensamento financeiro sólido”, é necessário que os conteúdos da Matemática Financeira sejam explorados de acordo com as vivências dos estudantes, que aproxime a Matemática de sua realidade, trazendo questões que justifiquem sua presença no currículo e em sua vida. Isso requer, por exemplo, mudanças na forma que os livros didáticos de ensino médio, que fazem parte do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), reorganizem sua abordagem em relação à Matemática Financeira, pois apresentam conteúdos muitas vezes padronizados e desconectados das realidades sociais e econômicas dos jovens. É fundamental que a Matemática Financeira seja tratada incorporando os princípios norteadores da educação financeira, por exemplo, contextos que sejam reais para o estudante.

Tais evidências estão presentes em Trindade (2017, p.126), que destaca a “necessidade 113 de Organizações Didáticas que provoquem o aluno a refletir e discutir assuntos relacionados à educação financeira, não restringindo-se a simples resolução mecânica, por meio de substituição de fórmulas”.

Desta forma, observamos que essas evidências vêm sendo destacadas em pesquisas e artigos publicados pela comunidade acadêmica, as quais possibilitaram um avanço no tratamento dado à educação financeira. A BNCC aborda a temática explicitamente em suas orientações para os anos finais do ensino fundamental, enquanto, no ensino médio, sugere a Matemática Financeira integrada à realidade em diferentes contextos. Cabe ressaltar que, antes, nos PCN, orientávamo-nos pelos temas transversais, em particular, Trabalho e Consumo, para tratar questões da valorização do trabalho frente ao consumo responsável e consciente, dos direitos e deveres do cidadão na sociedade e sua conduta ética em relação ao meio ambiente.

Agora ao observamos a BNCC, percebemos que esta propõe novos olhares na elaboração do currículo de Matemática da educação básica, propondo a realidade como referência, levando em consideração as vivências cotidianas dos estudantes, os impactos dos avanços tecnológicos e as transformações que vem acontecendo na sociedade diante de novas necessidades de consumo, interação e tomada de decisão.

Desta forma, percebemos que a educação financeira tem um papel importante para promover o letramento matemático do estudante, pois amplia as possibilidades para que ele consiga formular e resolver problemas em diversos contextos, controle de gastos, impostos, inflação e deflação, IDH, aposentadoria, direitos trabalhistas, investimentos e financiamentos, entre muitos outros, com mais autonomia e recursos matemáticos, quais sejam números, pensamento algébrico, representação gráfica e dados estatísticos.

Portanto, concordamos com Kistemann Jr. (2020) quando esclarece que:

[...] é necessária uma aproximação do poder público e privado, de modo a estabelecer parcerias que possam promover cenários de educação financeira que não fiquem restritos às práticas de consumo. Educação Financeira não é ensinar conteúdos de Matemática Financeira para a tomada de decisões somente, nem tampouco é uma educação para o consumo que busca conquistar sonhos e desejos, em geral, de forma alienada e às custas da economização das práticas de consumo e do desequilíbrio ecológico (KISTEMANN JR., 2020, P. 44).

E ainda, com Coutinho e Almouloud (2020), que complementam que em relação a educação financeira escolar é preciso, primeiramente, uma abordagem direcionada para a vida pessoal do estudante e, ainda, “um posicionamento também quanto à consciência quanto a aspectos do consumo consciente e sustentável. Podemos dizer que estamos diante de uma

definição que pode ser não definitiva, mas um ponto de partida para uma reflexão mais 114 aprofundada sobre o tema” (COUTINHO; ALMOULOUD, 2020, p. 78).

A descrição citada nos leva a dialogar com Artaud (1998), na qual é possível concluir que as evidências servem de condições ecológicas para a sobrevivência da educação financeira em um ecossistema de ensino, levando em consideração que o foco da ENEF está no desenvolvimento e implementação de programas para três públicos-alvo: crianças, jovens e adultos. Portanto, o alcance desses sujeitos, dar-se-á principalmente por programas a serem desenvolvidos em escolas de ensino fundamental e médio.

4. 3.1.1 Diretrizes e objetivos da ENEF

Inicialmente, destaca-se que a ENEF se consolida como um documento de referência nacional pela origem das fontes que foram consideradas para avaliar as principais necessidades da proposta, qual seja uma pesquisa nacional de educação financeira, experiências de outros países e dados de consumidores coletados pelo Serviço de Atendimento ao Cidadão do Banco Central.

Novamente, deparamo-nos com um contexto em que a educação financeira encontra condições de existência no cenário educacional brasileiro. De acordo com a ENEF, é necessária uma política permanente do Estado para a educação financeira.

Desta forma, destacamos dois, dentre os três objetivos da ENEF (BRASIL, 2013), os quais compartilham com nossa visão:

Promover e fomentar uma cultura de educação financeira no país;

Ampliar a compreensão dos cidadãos para que possam fazer escolhas bem- informadas sobre a gestão de recursos (BRASIL, 2013, p. 11).

Quanto ao terceiro objetivo, “contribuir para a eficiência e solidez dos mercados financeiro, de capitais, de seguros e de fundo de previdência” (BRASIL, 2013, p. 11).

Discordamos dessa intenção, primeiro por acreditarmos que toda proposta de educação financeira em ambiente social ou escolar não pode servir aos interesses dos mercados financeiros, nos quais grande parte de seus lucros são provenientes da prestação de serviços caros para o consumidor com pagamento de juros e, segundo, por ferir o direito de escolha do cidadão, direcionando seu consumo financeiro.

Assim, com esse arcabouço, existirá um direcionamento para que as propostas da ENEF e as orientações da BNCC consigam ser apreciadas e discutidas com mais interesse e lucidez

nos espaços sociais e ambientes escolares, conseguindo alcançar os diferentes contextos da 115 sociedade.

Um ponto bastante relevante da ENEF é quanto a definição dos objetivos e competências, que tomam como base a Dimensão Espacial (DE) e a Dimensão Temporal (DT).

Sobre essas dimensões (figura 6), o documento nos esclarece que:

A dimensão espacial engloba os conceitos de EF baseada no impacto de ações individuais no contexto social, e nas consequências dessas ações nas condições econômicas e financeiras desses mesmos indivíduos. A dimensão espacial é organizada nos campos de cobertura social, do mais restrito (individual) para o mais amplo (global). Na dimensão temporal, os conceitos são discutidos tendo como base a noção de que decisões tomadas no presente afetam o futuro. Os espaços são cruzados pela dimensão temporal, que conecta o passado, o presente e o futuro, em uma corrente de inter-relações. Essa corrente torna possível a percepção do presente não apenas como um resultado de decisões tomadas no passado, mas como o momento em que certas iniciativas foram tomadas, e os resultados e consequências dessas iniciativas – positivos e negativos – serão coletados no futuro (BRASIL, 2013, p.11- 12).

Figura 6 – Dimensão espacial e temporal da Educação Financeira

Fonte: ENEF (2013, p. 11)

Esta arquitetura possibilita pensarmos na educação financeira escolar a partir dos anos iniciais do ensino fundamental até o ensino superior, visando o letramento financeiro do estudante ao longo de sua vida. A dimensão espacial começa com o foco na formação do cidadão crítico, que exerce direitos e deveres de forma ética e responsável em relação ao consumo individual, familiar e em diferentes culturas, permitindo instrumentalizar para

Global

Nacional

Regional

Local

Individual

PASSADO PRESENTE

FUTURO

planejar em curto, médio e longo prazos. Tal forma de educar, pensando o consumo por meio 116 de relações intertemporais, contribui para que o estudante desenvolva competências para tomar decisões financeiras social e ambientalmente responsáveis. Assim, durante toda sua trajetória, o estudante desenvolverá autonomia para compreender que não existem receitas prontas para guiar suas decisões de consumo, mas orientações que possibilitarão harmonizar desejos e necessidades, refletindo sobre os desdobramentos de suas ações no passado, presente e futuro, e atuar como disseminador dos conhecimentos e práticas da educação financeira.

Neste contexto, é imprescindível que os futuros professores de Matemática, ainda em formação, possam compreender essa proposta juntamente com as orientações da BNCC, as quais direcionam para o letramento matemático do estudante e a formação de cidadãos críticos, cientes de suas responsabilidades sociais.

Ademais, precisamos de materiais que possam contemplar as dimensões espacial e temporal, promovendo mudanças didáticas na organização das atividades praticadas no contexto escolar, já defendidas nas pesquisas de Oliveira (2017), Santos (2017) e Silva (2018), que apontam os estudos de Ole Skovsmose (2008, 2013, 2014), propondo o convite por parte dos professores para que seus estudantes participem e/ou criem um cenário para investigação.

Acrescentamos também a visão norteadora da BNCC para os anos finais do ensino fundamental, quando esta enfatiza que:

[...] o processo de aprender uma noção em um contexto, abstrair e depois aplicá-la em outro contexto envolve capacidades essenciais, como formular, empregar, interpretar e avaliar – criar, enfim – e não somente a resolução de enunciados típicos que, são muitas, meros exercícios e apenas simulam alguma aprendizagem (BRASIL, 2018, p.

277).

Conectados a essa descrição, incorporamos que a ênfase dada apenas à resolução de exercícios de Matemática Financeira, não suscitará o letramento financeiro de estudantes em nenhum nível de escolaridade, conforme pesquisa de Kistemann Jr. (2011), o qual investigou como os indivíduos consumidores, com formação de ensino fundamental ao grau de doutorado, justificam suas escolhas para consumir e usar os produtos financeiros ofertados pelas instituições financeiras, confirmando que o ferramental da Matemática Financeira não foi usado como empoderamento na tomada de decisão das escolhas dos sujeitos de pesquisa.

Assim, a questão que surge é qual matemática deve ser estudada hoje para que se adquira a cultura básica exigida pelo interesse social?

Concordamos com Chevallard, Bosch e Gascón (2001, p.121) ao afirmarem que “a tarefa da escola e, em particular dos professores, é a de criar as melhores condições possíveis

para que os alunos possam estudar – e, portanto, aprender – os conteúdos apresentados na 117 proposta curricular (grifo nosso). Para tanto, acreditamos ser fundamental a estruturação do conteúdo de estudo de acordo com esses autores, a partir de conteúdos curriculares que estão postos na sociedade.

Deste modo, a BNCC (BRASIL, 2018), propõe a educação financeira como um tema transversal, incorporando situações didáticas que dialogam com várias áreas do conhecimento e exploram contextos relevantes do cotidiano para os estudantes e para a sociedade. Logo, a necessidade de refletir o ensino envolvendo questões de consumo e sustentabilidade financeira, especificamente aquelas que colaboram com o letramento financeiro do estudante, são retratadas anteriormente na ENEF pelos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) de 1998, a partir do terceiro ciclo do ensino fundamental, ao abordar a temática trabalho e consumo, para que os alunos aprendam a se posicionar criticamente diante de questões envolvendo a precificação dos bens de consumo e sua relação com o custo benefício na aquisição de uma mercadoria.